Crush do trem escrita por P B Souza


Capítulo 1
Capítulo único.




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Estava indo pro trabalho como todo dia, exceto pelo fato de ser sábado. O que me livrava da faculdade.

Normalmente pra ir até a paulista ali da USP, aonde moro e estudo, costumo ir de ônibus, mas hoje como eu pedi para conversar em adianto com Elisa, tive que fazer uma voltinha maior pelo Rio Pinheiros até a estação da Cidade Universitária, na linha 9, esmeralda de trem, pra depois baldear pra linha 4, amarela, do metro. Vou me encontrar com Elisa na estação Faria Lima da linha 4, e de lá descemos na Estação Paulista, pegamos o corredor subterrâneo que interliga as estações Paulista e Consolação (essa é da linha 2, verde) e saímos na Av. Paulista, no coração financeiro de São Paulo, aonde fica o Paulistano, jornal aonde trabalhamos. Então vamos ter uns 10 minutos para conversarmos só eu e ela.

Mandei uma última mensagem para Elisa avisando que estava saindo de casa. Olhei, pela janela da quitinete do meu irmão (dividimos o espaço para poupar gastos, mas brigamos muito. Quero um lugar só pra mim), para a USP. A greve na faculdade continuava, então eu continuava sem aulas. O que era ruim para meu futuro, mas bom para evitar ver Lucas, o menino que mexia comigo e tinha namorado já!

Na verdade acho que somos amigos agora, mas desde quando voltamos da praia não nos falamos mais… até deixei de ir no grupo de estudos que montamos por causa dele. Ou melhor, por minha causa. Minha vergonha e incapacidade de lidar com a visão de Lucas, conciliar as ações dele com as lembranças e a presença de Pablo (namorado dele) no grupo de estudo… é demais para mim, então estou estudando sozinho mesmo.

Elisa é uma fotografa no jornal, muito gente boa e não costuma trabalhar comigo, já que eu sou só um subeditor, mas como eu estou revisando a matéria da revista pra semana que vem, e ela quem tirou as fotos, quero ter uma conversa só com ela sobre as fotos e como retratar melhor o impacto das imagens na matéria do Fernando (outro cara do jornal, esse é repórter e editor, e também quem ganha crédito pela matéria depois de eu editar tudo).

Então deixei a casa naquele dia nublado com clima de chuva e fui pra estação de ônibus. O caminho tranquilo até chegar, de fato, na estação. Todas as estações são praticamente iguais, só muda os nomes. Passei pela catraca com o bilhete único e lancei um olhar para trás… ninguém que conheço.

A linha 9, esmeralda, é o que eu chamo de intermediária. Existem lugares como a Linha 1, Azul, aonde todos são feios, fedem suor e estão sempre com cara feia. E existem lugares como a Linha 4, amarela, aonde todos estão vestidos de social, perfumados, as estações são limpas, as pessoas bonitas e educadas. Ali na linha 9, esmeralda, é um meio termo. Às vezes tem gente feia, outrora gente bonita.

Então não é incomum eu olhar para um ou outro, coisa despretensiosa. Quem nunca?

Paixonites de ônibus e trens são comuns todos os dias. Ainda mais quando você está cheio de tesão por quase um mês porque seu dito amigo (estou falando do Lucas) fica atiçando sua curiosidade (estou falando do que ele fez na praia). E você não pode fazer nada, porque ele namora!

Então sim, eu estava procurando um cara bonito na estação, só pra olhar mesmo! Fui até os bancos e me sentei em um deles, olhei para o corredor da estação, nenhum trem vindo. Cruzei as pernas e peguei o celular para trocar a playlist, já passei pro facebook pra dar uma olhada na timeline. E quando ergui os olhos para olhar a estação novamente, nada de trem, mais um grupo de pessoas descia a escadaria da estação e vinha na minha direção, ocupar os outros bancos!

Vai demorar muito? Ainda tenho que secar o cabelo” Elisa me mandou no whatsapp. Abaixei a cabeça para olhar a visualização rápida e responder “Uns 15 minutos”. E então levantei a cabeça para olhar quem vinha chegando.

Uma idosa passou andando bem rápido para uma idosa. Então um cara com camisa polo e barriga de cerveja, duas meninas conversando sobre o show que teria na Vila Country amanhã, e atrás delas um cara que enrolava os fones na mão, e jogou-os na lixeira ao lado no “não reciclável” como se ele realmente seguisse essas regras. Então ele olhou para mim, e eu desviei o olhar na hora, olhando para o outro lado da estação, aonde a velhinha caminhava.

Ele passou por mim, sentou-se três bancos após o meu, e esses três estavam vazios, então não havia nada a fazer se não olhar para frente. Droga, você é bonito.

Tentei não encarar, mas era justamente essa a situação que eu estava procurando. Só que eles nunca correspondem aos olhares. Você é gay? Quis perguntar. Isso tudo era novo pra mim, não que eu não soubesse o que eu gostava, mas nunca havia “me assumido” até recentemente. Até a USP e Lucas!

Então usei a visão periférica para garantir que ele não estava me olhando, e com cuidado tentei olhar para ele. Qual seu nome?

Moreno, ou seria negro? A pele é uma clara mistura entre pai e mãe de etnias diferentes, uma mistura que resultou nessa tez perfeita. Se tinha espinhas, não vi nenhuma, mas também não olhei direito ou por muito tempo porque ele olhou de volta para mim. Ignora, fingi que não tá nem ai. Olhei não para ele, mas para o cenário ao redor dele, fazendo uma expressão de quem não se importa com o fato dele estar ou não ali. Na verdade, tentei simular que sequer estava vendo ele.

E ele sorriu.

Não um sorriso verdadeiro e cheio de dentes, foi algo bem simples, os lábios apenas se esticaram um pouco em um olhar direto para mim. Ele é sim! Pensei na hora, e desviei o olhar completamente, olhando para a frente, para o chão, para a linha do trem.

Merda. O que eu faço agora?

Ele é forte, mais baixo que eu, mas forte. Braços de academia, barba de um centímetro, desenhada, sem falhas. Os olhos são pequenos, e o nariz é um tanto que batata, mas cai bem no formato do rosto e com o tom de pele. Os lábios, cercados pelo bigode e barba rala, mas sem defeitos, ficam ressaltados em um tom mais claro que o da pele e o sorrisinho foi simplesmente encantador.

Então, revivendo o sorriso na minha cabeça, eu mesmo esbocei um pequeno sorriso espontâneo que tentei conter olhando para o lado contrário, a fim de evitar que o cara me visse assim, indefeso de certa forma. Então continuei ali, esperando o trem.

Meu deus, esse trem não vai chegar nunca?

Minha mente desejava apenas uma coisa, e a sensatez me fazia desejar algo diferente e apropriado. Então eu cedi aos desejos impróprio e olhei mais uma vez para ele. Você deve ter uns 23 ou 25 anos. Pensei olhando para ele. Definitivamente olhava para ele, diretamente para ele. Eu vou sorrir agora.

Mas ele não olhou de volta. Por favor.

Acho que quando virei a cara ele deve ter entendido errado. Ele deve pensar que sou hétero.

Afinal, passei a vida toda fingindo ser. Não deveria ser difícil acreditarem que eu fosse. E além disso, era perigoso o simples jogo, a possibilidade de um olhar furtivo podia significar amor verdadeiro ou ódio irracional. Era um jogo de extremos. Quando ele ousou me olhar, eu poderia ser qualquer coisa, uma incógnita para ele, poderia ser um possível interesse romântico, poderia ser um agressor cheio de ódio, poderia ser um desinteressado… e mesmo assim ele ousou olhar.

Tentei pensar na coragem necessária para se tomar a iniciativa, e como ele teve essa coragem, e eu dei um chega pra lá. Ele não vai olhar de novo. Percebi.

E o trem estava vindo.

Olhei mais uma vez para ele. Porque precisava olhar mais uma vez antes de entrar no trem Sentido Grajaú. E para minha surpresa ele ia entrar no mesmo trem. Se levantou também, não me olhou, apenas se locomoveu até a porta do trem, que parava.

Eu fiz o mesmo, mas para a porta ao lado. No meu bolso o celular vibrou com uma mensagem, provavelmente Elisa. Ignorei.

Queria olhar para ele de novo, mas o quão estranho isso soaria?

Então as portas se abriram, esperei que descecem os que saiam do trem para eu entrar, e nisso ele já havia entrado pela outra porta. Entrei fingindo não procurar por ele, e na verdade não procurei. Queria encontrar os monitores (paranoia de olhar se peguei o trem indo para o sentido correto). Assim que encontrei o monitor e confirmei o caminho que eu faria, olhei para o corredor na articulação entre um carro e o outro carro do trem. Ele estava ali, e como tinha mais gente entrando no trem, eu tive que andar.

Claro, poderia ter andado para o lado contrário ao dele, mas não o fiz. Fui até a articulação que uni os dois carros do trem. Ele encostado em uma parede, segurava o celular na mão, e batucava com os dedos na borracha da articulação dos carros. Eu parei na outra parede, frente a frente. Que idiotice eu to fazendo?

Olhei para ele de novo. Você precisa me notar agora. Pensei enquanto as portas se fechavam.

Cabo USB de três metros, carregador portátil e fone de ouvido. — Gritou um vendedor ambulante, desses que só começam a vender depois que as portas se fecham. — O mais caro é 10 reais. Testa na hora.

E ele notou que eu olhava para ele. Isso! Pensei, então olhei para baixo, para o chão entre nós, e tentando ignorar a vergonha, ergui os olhos com um pequeno sorriso, mas tarde demais.

Quer um? — O vendedor perguntou, e ele olhava para o vendedor ambulante que pegava um fone de ouvido na mochila. — De cinco ou de dez?

Qual a diferença? — Ele perguntou olhando para o vendedor como se eu não existisse ali.

Cinco é paralelo, dez é da samsung mesmo.

Mentira. Nenhum fone original custa dez reais, mas relevei.

Prestei mais atenção na voz dele, uma voz calma, não grossa, mas máscula e forte. Ele provou um fone.

Não tá funcionando — Ele disse para o vendedor.

Próxima estação; Pinheiros. — Disse a voz pelo alto-falante do trem. — Integração gratuita com a linha amarela do metro. Desembarque pelo lado esquerdo do trem. Ao desembarcar cuidado com o vão entre o trem e a plataforma…

Não, não, não, não. Pensei olhando uma última vez para ele. Me nota. Me nota, porra. Quis puxar ele pelo braço, fazer ele me enxergar, mostrar que eu estava respondendo ao sorriso na estação. Mas ele estava pagando o vendedor ambulante.

Vai esse então? — O vendedor havia dado outro fone para ele.

O trem chegava na estação. Eu comecei a andar para a porta.

Ele respondeu alguma coisa, não ouvi, já estava na porta para descer do trem.

Antes da porta abrir eu olhei para ele mais uma vez, agora que o vendedor já tinha ido embora. Ele me olhou de novo, sorriu. E só então reparei nos olhos verdes, e nas mãos sem aliança. Oi.

Sorri de volta, um sorriso bobo quase infantil. Ouvi a porta se abrindo. Você tem que descer. Um lado dizia. Vá falar com ele. Outro lado dizia.

Ele continuou me olhando quando eu virei a cara e desci. Olhei para trás, para dentro do trem quando a porta se fechou.

Droga. — Disse baixinho, parado na estação.

Eu devia ter continuado no trem?

Eu devo voltar nesse mesmo horário amanhã?

Talvez nesse mesmo horário nesse mesmo dia da semana, semana que vem?

A única certeza, entre todas essas dúvidas e desejos, é que eu perdi uma oportunidade ótima de tirar o Lucas da minha cabeça.

E ai outra dúvida.

Eu devo tirar o Lucas da minha cabeça?


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