A Herdeira de Zaatros escrita por GuiHeitor


Capítulo 22
Capítulo 21




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Octogésimo sétimo dia do segundo mês, ano 7302.

 

Cena I – O Retorno de Aurora.

07 horas em ponto. Reino Humano – Feltares. Divisa com Ramavel.

 

Centenas de pessoas cercavam o Dragão Azul enquanto caravanas com mais centenas não paravam de chegar dos dois lados da fronteira.

Aurora, ou o que pensavam ser Aurora, caminhava livre entre os presentes. Todos os Guardiões das Chamas se encontravam ao seu redor e Ezerk gritava contando uma bela história de resgate do qual participaram:

—Harkuos os enganou por mais de sete mil anos! Ela não passa de uma feiticeira, seu poder divino é na verdade dos quatro Deuses Dragões, filhos do Dragão Primordial. A bruxa os mantêm presos em contenções mágicas as quais sugam todo o poder de cada um dos Dragões Azuis e o envia para ela. PARASITA, é o que Harkuos é de verdade!

Nós, Guardiões das Chamas, depois de muita pesquisa, descobrimos o cativeiro de Aurora. Na missão que trouxe a liberdade de nossa Deusa Dragão Azul Alado, uma de nossas companheiras pereceu… mas nós sabemos que sua alma reencarnará envolta em luz e graça, pois ela deu a vida para salvar uma divindade!

Irmãos… há tempo de nos unirmos. Harkuos pode ser poderosa, mas não é invencível! Se o fosse, não estaria escondida em uma torre no alto da montanha mais inacessível de Zaatros. Juntos a faremos confessar a verdade antes de guilhotinarmos sua cabeça e incendiarmos seu corpo!

 

Os feltaranos concordavam. Os ramavenos estavam balançados, uns veementemente contra, outros cogitando ficar a favor.

A grande cartada estava dada e agora só restava a invasão ao Monte Nublado.

 

***

 

Cena II – Duelo de Oponente Comum.

14 horas e 40 minutos. Reino Humano – Feltares. Pátio Interno, Palácio Real.

 

—Já lhe disse que NÃO! -Gritou Kaegro, furioso. -Magia não é para mulheres, salvo as legítimas feiticeiras!

—Mas, mestre, essa lei caiu! E Meline é genial, aprendeu muita coisa sozinha! -Atentou Príncipe Franco. Ele discutia com Kaegro enquanto Meline observava quieta.

—Lei? Não nego o pedido por leis! Nego-o por ética. O assunto está encerrado e você, como punição, trará para mim notícias sobre as bruxas mais perigosas do século passado. Quero duas para cada década, copiadas a mão, nada de me trazer jornais antigos.

Meline tocou de leve o ombro de Franco, como quem pede calma. Não queria prejudicá-lo ainda mais.

—Eu pago o dobro do que recebe para que ensine a mim e a ela. -Ofertou o príncipe.

—Eu disse não! Pelos Seis Demônios, basta! Não serei comprado, pare de me importunar!

—Eu posso mandar prendê-lo por desobediência! -Ameaçou.

—Você ainda não é rei e, mesmo que o fosse, nas minhas aulas mando eu! -E riu, debochando de Franco enquanto dava as costas, pronto para sair e deixá-lo falando sozinho.

—Eu o desafio para um duelo!

—Como? -E caiu em gargalhadas. -Eu derrotei nascidos feiticeiros, que chance teria você, um aprendiz de mago, contra um mago completo? Nenhuma. -Disse lentamente. -Faço uma proposta melhor: desafio sua amiga a um duelo. Se ela é genial como você diz, conseguirá ao menos resistir por dois minutos.

—Franco!… -Murmurou ela puxando-o.

—Se Meline vencer, ensinarei aos dois até a qualidade de mago completo, recebendo só metade do que o rei me paga hoje… mas, se eu vencer, ela jamais poderá estudar magia e, como garantia, drenarei toda o seu mana.

—Meline, é sua chance. -Disse o príncipe, virando-se para ela.

—Eu não tenho chance alguma contra ele. É muito poderoso, lendário até… ouvi histórias a seu respeito.

Franco parou para pensar por alguns segundos, sorriu e voltou a encarar seu mestre: -Eu proponho um duelo de oponente comum!

Neste tipo de duelo, são dois contra um. A dupla de magos só tem direito a uma recompensa caso vença, enquanto o mago solitário recebe duas. Os três envolvidos devem aceitar o desafio e a dupla deve vencer sem que um de seus membros esteja fora de combate.

—Realmente andou estudando… eu aceito. -Kaegro disse de pronto. -Além do que havia combinado como recompensa, quero a quebra do contrato que firmei com vosso pai, Rei Juan. Voltarei a Ramavel, combaterei ao lado de minha imperatriz para vingar a morte dos antigos monarcas e, ainda assim, continuarei recebendo pelo serviço como mestre de magia.

—Eu aceito. -Disse Franco. -Vamos, se Cris conseguir amarrá-lo nós vencemos! -Sussurrou ele a Meline.

Meline pensou um pouco antes de dizer:

—Eu aceito sob meus termos.

—E quais seriam? -Perguntou Kaegro, interessado.

—Duelaremos amanhã, às sete horas, na Clareira Maior da Floresta Sussurrante. Somente armas mágicas são permitidas, cada combatente pode levar apenas uma, nada de arsenal não-mágico. Não será permitido atacar adversário caído. Qualquer ofensiva anterior ao horário do duelo será tida como manobra covarde. Se um dos duelistas não se apresentar na Clareira Maior em até dez minutos após o horário combinado, será considerado desistente. Qualquer descumprimento de regra implica desqualificação imediada e vitória do adversário.

—Ora, ora, não estou diante de uma completa ignorante, afinal. -Zombou Kaegro. Pois bem, eu aceito. Minha arma será Magneticam Incursu. -Disse exibindo o bracelete prateado com a pedra redonda alaranjada.

—Eu aceito. -Disse Franco. -Escolho como arma meu Anel Geada.

—Minha arma será o Natura Mater. -Disse Meline.

Kaegro franziu o cenho, parecia não conhecer o artefato. Franco a olhou assustado.

—Todos de acordo com o duelo de oponente compartilhado. -E pôs a mão sobre o peito, os demais o imitaram e um círculo de luz os envolveu. Estavam definidas as regras do combate.

 

Mais tarde, Franco a questionou sobre a escolha das armas:

—Porque não escolheu Cris, Meline? -Estava temoroso.

—Cris foi criado por mim, totalmente por acidente, não queria exigir tanto dele.

—Mas o que faz esse Natura Mater? -Quis saber Franco.

—Eu não sei exatamente, mas é algo que me liga com os protetores da natureza. O poder é muito intenso; logo, só usei-o uma vez para testar.

—E prefere confiar seu futuro a uma arma da qual pouco conhece?!

—Não só a ela, mas também à floresta. Não escolhi duelar na mata por acaso… meu enfoque mágico é a natureza, lá estarei mais forte, e você também, assim que se conectar e for aceito pela floresta. -Meline sorriu como sorri quem tem uma carta na manga. -Vamos até a Clareira Maior. Lá te explico tudo, alteza.

—Já disse que pode me chamar de Franco.

—Eu sei, mas gosto da cara que faz quando ouve “alteza”. -E riu. -Vamos logo! -Disse pulando os degraus do palácio, deixando o príncipe para trás e correndo em direção aos portões.

 

***

 

Cena III – Revelações Subterrâneas.

18 horas e 15 minutos. Reino Elfo – Eyrell. Ilha Espinheiro.

 

Depois de Ezerk exibir Garras em peles de Aurora, o clã se dividiu. Miguel e Darius foram à Ilha Espinheiro em buscas de respostas sobre seus ancestrais e em dar fim à maldição que os envolvia; o restante partia para as Muralhas de Oroada, com a falsa Aurora, em busca de mais aliados.

Na Ilha Espinheiro escurecia rápido. Era muito montanhosa e a Astral, àquela hora, se escondia atrás de uma das elevações; pouco se via de sua luz entre a copa das árvores. Tinha esse nome pelo excesso de plantas portadoras de espinhos e por ser lar de uma espécie incomum de cacto, os cactos-tatu. Curiosamente esse tipo de planta tem a habilidade de se locomover; medem em média de trinta a quarenta e cinco centímetros e, sem mais nem menos, enrolam-se sobre si mesmos e rolam pela mata. As raízes são fortes e não encontram dificuldade em escavar novamente a terra após o rolamento. As singulares plantas só existem na ilha e, dizem, por sua causa o lugar é inabitado, uma vez que seu passatempo favorito é destruir outras plantas, o que dificulta o cultivo das lavouras.

 

Os Quendra exploravam a mata, vez ou outra sendo atingidos nas canelas pelos cactos:

—Esta é a cachoeira onde encontrei o caco de diamante. -Disse Miguel. Tinha a forma de poço amplo onde uma cascata pequena, mas com grande fluxo, derramava suas águas.

—Vai entrar? -Perguntou Darius, espantado, vendo o irmão se despindo.

—Ora, e por que não?

—É noite e a água deve estar um gelo.

—Por isso mesmo entrarei! -Dito isto, Miguel pulou. -Tem medo de água, Darius? -Zombou emergindo.

—De água não, do frio.

—Fraco!

—Nanico… -Disse revirando os olhos. -Use a luz dos sais pra iluminar o fundo talvez haja mais fragmentos.

—Boa ideia. -Miguel mergulhou e, em seguida, a água se iluminou com um forte brilho prateado.

Darius subiu em uma árvore buscando se manter fora do alcance das investidas dos cactos-tatu. Ali esperou alguns minutos até Miguel reaparecer animado:

—Você precisa ver uma coisa! Há uma abertura, uma passagem!

—Sei… -Respondeu o elfo desconfiado.

—Eu falo sério, vamos!

—Vá lá você, eu espero aqui.

Miguel atirou um sai no galho onde o irmão estava sentado, entre suas pernas. Com o susto, Darius caiu para trás, sobre um cacto que corria por ali.

—Ficou maluco, seu gnomo de jardim?!

—Pare de reclamar, vamos logo. Olhe para a mochila, os cacos da maldição estão agitados, aqui tem coisa… -De fato estavam se movendo e tilintando.

Muito contrariado, o ladino tirou as calças e a camisa para pular na cachoeira.

—Se for mentira, um desses cacto vai parar em um lugar que eu garanto não ser nada confortável para você.

—Pula logo!

Darius mergulhou na água gelada, tremendo de frio instantaneamente ao tocá-la. Logo pôde ver a luz prateada a sua frente. Miguel o guiava para o fundo e depois para trás de uma pedra enorme que escondia uma passagem para baixo, a qual funcionava como um ralo por onde a água escapava. O elfo-duende fez desaparecer os sais, apagando a luz, e os dois passaram pelo buraco.

Estavam, agora, lado a lado, de pé e com aguá pelos joelhos em completa escuridão. A julgar pelo eco de suas respirações, encontravam-se em uma ampla galeria subterrânea que se estendia a perder de vista. Miguel segurou a respiração e cobriu o nariz de Darius com a mão, fazendo-o entender o recado e prender também o fôlego…

O único barulho que deveria haver agora era o som da água correndo pela caverna, porém havia ainda o som de uma respiração pesada e forte no ambiente. O elfo pressionou o braço de Miguel e, num segundo, ele chamou seus sais mirando na direção do som e iluminando a gruta inteira.

A frente deles, a pouco menos de três metros de distância, havia uma humana de aproximadamente quarenta anos. Estava de costas contra a parede da caverna e usava um vestido branco e luminoso que refletia o brilho prateado dos sais. Seus olhos tinham um ar maldoso tal qual seu sorriso. Os cabelos longos, ondulados e castanhos, com boa quantidade de fios brancos, estavam encharcados com a água da cachoeira. Fora essa parte normal da aparência da desconhecida, existia também aspectos perturbadores sobre seu corpo…

Era pálida, quase se poderia dizer albina, como quem nunca pegou Astral na vida. Os olhos tinham íris vermelhas, também pela falta de pigmento causada por uma vida inteira na escuridão. Embora estivesse viva, tinha o peito empalado por uma espada dourada. Na verdade, a única parte visível da arma era sua empunhadura, toda a lâmina estava enterrada no coração da mulher e, o que o transpassava, dentro da pedra atrás dela. Como se isso não bastasse, veias escapavam do ferimento, crescendo como trepadeiras sobre pedras às costas da senhora, pelo cabo da espada e pelo chão da caverna, de onde se espalhavam até tocar a água aos pés dos Quendra, submergir e desaparecer.

Os irmãos trocaram olhares com a mulher por longos segundos, até que ela soltar uma risada arrastada e quebrar o silêncio:

—Meus parabéns! Com exceção da minha filha e da minha neta, são os primeiros a me ver em setecentos anos.

—Diga qual é o seu nome, bruxa! -Mandou Miguel.

—Miguel, calma, eu deixei minhas adagas e o arco lá em cima… -Sussurrou Darius, recebendo de volta um olhar de desagrado. -Foi mal…

—Pelo visto, a imprudência continua sendo marca forte dos Quendra… nada mudou! Vejam só, o híbrido só possui um Charme e nem sabe qual é. -E riu largamente.

—O que? Como sabe meu nome? Espera… Miguel, como assim não conhece seu Charme?! -Indagou Darius.

O irmão se atrapalhou ao dar uma resposta ao elfo e a bruxa prosseguiu:

—Reconheço um Quendra pela maldição. -Outra risada. -Sabiam que fui eu quem os amaldiçoou? Suas auras fedem.

—Atire, Miguel! Mate-a! -Gritou o elfo.

—Espere aí. Então você é “A Traída” que o pergaminho menciona? A avó de Aço Voador? -Perguntou Miguel, atirando sais nas paredes para que todo o lugar fosse iluminado.

—Em carne, osso e magia!

—Darius, escute. -Pediu Miguel, afastando-o da mulher empalada e encarando-o com a firmeza de um irmão mais velho (ainda que não fosse nem um mês mais velho). -Esta aí é a mulher da lenda que te contei outro dia. Ela foi casada com um ancestral nosso e traída por ele, foi trocada por uma mulher mais jovem e amaldiçoou não só ele, mas também todos os seus descendentes. Ela deve ter o restante do círculo, nós podemos pegá-lo, tenha calma…

—O círculo de diamante? A escritura da maldição? -Perguntou ela. -Está aqui. -Disse, apontando para cima.

Os dois olharam a tempo de ver materializar-se, acima da cabeça da mulher, o círculo, pouco maior que um prato, com dois pedaços a menos.

—Querem ouvir uma história, queridos?

—Antes queremos saber seu nome. -Cortou Darius.

—Ah, isso não. Nomes são coisas poderosas, são portas abertas para magias muito nocivas.

—Conte-nos a história. -Disse o ninja.

A feiticeira pigarreou e se pôs a narrar com entoação dramática:

—A cada geração, um dos filhos homem herda a maldição do pai. Tudo teve início há cerca de setecentos anos, lançada por uma feiticeira traída por um Quendra… eu. O meu poder e a minha mágoa fizeram o agouro reverberar ao longo de todos esses anos, provavelmente tornando-o indestrutível.

O afetado vive, inconscientemente, em função de se deitar com o maior número de mulheres possível, engravidado-as e gerando filhos, dos quais, um assumirá a maldição logo após o nascimento; esta se manifestará logo no primeiro amor da criança.

O portador da pena deixará todas com quem se relacionar extáticas no princípio e, depois, por alguma razão, a largará, a trairá ou de qualquer outra forma partirá seu coração. Isso causa mal às esposas, evidentemente um efeito que não previ na minha fúria, mas também aos filhos e ao próprio Quendra, os quais eram, de fato, meu alvo.

Normalmente o primogênito herda a maldição, embora haja outros fatores que implicam sua transmissão, como o hibridismo. Por alguma razão que me foge o conhecimento, a sina prefere os puros. Não se tem registro da maldição em nenhum estudo, nem antigo nem atual, então, ela prossegue oculta a todos, inclusive aos que carregam o sangue ou sobrenome Quendra.

O registro da maldição foi gravado em runas por mim, em uma placa circular de diamante. Sendo o diamante quase indestrutível e imune à magia, eu perpetuei assim a Maldição Quendra para sempre. Impossível quebrá-lo por meios tradicionais.

Não sei se notaram, mas o sobrenome que carregam está escrito na pedra transliterado em runas de cargas negativas: Carma, Ultraje, Erro, Nefasto, Dor, Rancor e Azar; Cuendra. Infelizmente, a ausência da letra “Q” do antigo alfabetoélficono alfabeto rúnico lhes deu brechas na maldição. Esta geração possui dois afetados... vocês. O elfo puro concebido primeiro, mas o híbrido elfo-duende nascido primeiro devido às diferenças nos tempos de gestação entre as raças humanoides. Pouco tempo os separam, no máximoum mês, eu diria; mas os dois carregam em doses quase iguais a danação que roguei sobre os Quendra! Isso foi demais para o círculo suportar, ele se partiu por não resistir ao imprevisto que não consta na escritura, levando a um novo enfraquecimento da maldição: uma vez partido o círculo, cada runa que falta se transforma em seu oposto quando nas mãos do amaldiçoado. Portanto temos Azar e Rancor fora da escritura, metamorfoseando-se em Sorte e Perdão.

Ao que os fragmentos despencaram do círculo e caíram na correnteza, devem ter sido arrastados para o mar onde provavelmente vocês devem tê-los achado. Não importa.

—Eu reivindico direito ao círculo. Não pode negar agora que a encontramos. -Disse Miguel. -Eu conheço as leis mágicas e sei que é direito do amaldiçoado ter a chance de desfazer sua sina, se ele assim desejar, após encontrar o rogador ou a escritura. Meu irmão e eu encontramos a ambos.

—Eu não posso negar-lhes o círculo nem o quero. A chance de morrerem tentando é alta e muito me apetece.

—Quero saber como não morreu depois de perfurada por essa espada. -Disse Darius.

—AH! É outra grande história! -Exclamou a bruxa. -Conhecem a lenda sobre o ouro vampírico?

Os dois assentiram, sem nada dizer.

—Não é bem uma lenda. Esta espada foi forjada com ouro vampírico, é mais antiga que a atual organização dos reinos. A lâmina mantém, portanto, todas as propriedades do metal mágico. Quem a empunhasse absorveria força e vitalidade dos inimigos que ceifasse com ela. Eu precisava de energia para alimentar a maldição; logo, tive a brilhante ideia de me suicidar com a Espada Vampírica, transpassando meu coração e a escritura com um só golpe para que ela absorvesse meus poderes e os usasse como fonte de energia para a maldição.

Então eu prendi a escritura na rocha atrás de mim e me posicionei aqui mesmo onde estou, pronta para desferir o golpe que selaria o destino dos Quendra. Contudo imprevistos acontecem; quando eu me cortei com a lâmina, ao mesmo tempo eu feri e fui ferida, houve um movimento reflexivo. A espada tira a vitalidade do atacado e a transfere para o atacante… mas o que acontece quando ambos são a mesma pessoa? Bem, isto… Aqui estou, a mais de setecentos anos drenando minha energia para depois absorvê-la. Sou um parasita de mim mesma.

—Você é um monstro… -Corrigiu Darius.

—Nessa época eu já era mãe, tinha uma filha, também feiticeira, de 19 anos com o Quendra traidor da história a qual lhes contei. Alguns anos depois, minha filha se casou com um gigante, me dando uma neta mais tarde. Quando a criança nasceu, ela a trouxe para cá e eu senti na menina uma energia conquistadora, era ela quem iria se vingar por mim. Dei a minha neta muitos dons quando a batizei. Tal batismo ocorreu às escuras, aqui mesmo, pois eu já estava presa à rocha; somente a mãe a madrinha e eu estávamos presentes e só nós sabíamos o nome verdadeiro da menina, sua única fraqueza.

Alguns séculos mais tarde, ela retornou a esta caverna. Estava linda, era adulta e poderosíssima! Disse-me que havia se desentendido com a madrinha e que ela a chantageava, ameaçando entregar seu verdadeiro nome aos que queriam derrotá-la.

Eu, então, disse a ela que matasse todas as servas da madrinha, que a deixasse sozinha para morrer por último e, feito isso, que me trouxesse a alma dela presa em um prisma de jade. Minha neta assim o fez, com a alma de Medusa construí uma das armas mais poderosas do mundo, Aura Paralisante… hoje nada pode pará-la, não importa se vocês têm ou não o círculo da maldição, ela é uma semideusa com poderes de causar inveja à própria Harkuos! E o círculo da maldição de Aço Voador pertence a ela, vocês nunca o terão e, muito menos, descobrirão o seu nome verdadeiro. Só há duas pessoas vivas que o conhecem: ela mesma e eu. Quanto orgulho sinto! Aço Voador, a invencível, a impenetrável, a exterminadora de górgonas e agora a Imperatriz de Ramavel!

—A Rainha das Górgonas foi madrinha de Aço Voador!? -Quis confirmar Miguel.

—E quem mais seria? Não estava prestando atenção?

—Como sabe que ela se tornou imperatriz? -Perguntou Darius.

—Com séculos e séculos de vida, acha mesmo que eu não domino infinitas artes mágicas, dentre elas a telepatia? Estou sempre nos pensamentos da minha neta, sei de tudo que se passa no mundo, ainda que esteja encarcerada aqui.

—Isso é tudo. -Cortou o ninja. -Dê-nos a escritura.

—Como queiram… -E o círculo se materializou diante deles. -A única chance que têm de derrotarem minha neta levará vocês e muitos outros junto… boa sorte! -Finalizou em tom debochado.

—Miguel, vamos remover a espada. -Disse Darius, resoluto avançando rumo à lâmina.

—Com a mágica em execução? Acabará sendo absorvido por mim, boa sorte! -Escarneceu a senhora.

—Não toque nisso! -Ordenou o híbrido.

—É um blefe! -Rebateu o irmão.

—Hum… será um blefe? -Murmurou a bruxa para si mesma.

—Não toque! -Repetiu Miguel. -Se você se mover mais um centímetro na direção dessa aberração, eu vou pregar sua mão na parede com um sai!

—Não me dê ordens, Miguel!

—E EU FALO SÉRIO! -Gritou o elfo-duende, disparando um tiro de aviso, tão preciso que chegou a arranhar as costas da mão do ladino.

—Vai mesmo fazer isso? -Indignou-se Darius.

—Vou… Volte, por favor. -Implorou Miguel. -Não quero machucá-lo, mas prefiro que seja eu a fazê-lo do que essa maldita bruxa…

Darius abaixou a mão. O rosto, envergonhado, acompanhou o gesto. Voltou para lado do irmão em silêncio.

—Domado. -Começou a mulher. -Completamente domesticado pelo irm… -Porém não terminou. Um sai atravessou a rocha ao lado de seu pescoço, perigosamente próximo, tão próximo que uma das lâminas secundárias lhe roçava a carne da garganta.

—Calada, bruxa! -Sentenciou Miguel.

 

Os irmãos deram as costas à Bruxa da Cachoeira e seguiram o curso da água. Ao fim, o rio subterrâneo desaguava em uma baía pedregosa, mais a leste do local por onde haviam entrado e impossível de ser vista até se estar dentro dela devido à densidade da mata. Caminharam de volta à cachoeira, recolheram as coisas que Darius deixara à margem do poço e voltaram à fortaleza, fazendo uso do feitiço que as Bruxas Siamesas tinham gravado em um pergaminho.

 

***

 

Cena IV – Cães.

21 horas em ponto. Reino Gigante – Ramavel. Centro de Recrutamento.

 

Eu não faço ideia de como eles fizeram, mas, com certeza é uma fraude! -Berrava Aço Voador flutuando de um lado para o outro diante das filas de tropas. Vestia um traje semelhante a um maiô de couro branco e um colete azul-ramavel, também de couro, por cima. -Aurora NUNCA ficaria contra Harkuos e Harkuos JAMAIS atentaria contra Aurora. Fui clara?!

—SIM, IMPERATRIZ! -Responderam os soldados.

—É nosso dever exterminar esses hereges, pela lâmina ou pelo raio! Os senhores, as senhoras e as senhoritas estão aqui para defender não só um brasão, uma bandeira e um país, mas também a honra de uma Deusa.

Aço parou um momento, incomodada com certa inquietação pelos meios das filas. Ergueu uma das mãos e trouxe por telecinese o causador do tumulto para próximo de si.

Tratava-se de um jovem gigante, possivelmente na casa dos dezoito anos. Magro e desajeitado dentro da armadura, tinha os olhos vermelhos, provavelmente de choro.

—O que há de errado senhor Antipali? -Perguntou ela lendo o sobrenome no uniforme após pousá-lo no chão. -Contenha essas impurezas de espírito, você é um gigante! Não deve transparecer sentimentos fracos como estes.

—Não quero ir à guerra. -Respondeu, tremendo.

—Não quer vingar as coroas do seu reino que foram assassinadas?

—Não! -Disse agora com muita firmeza. -Vingança vai causar outra retaliação que causará outra e outra infinitamente.

—Desta vez vamos purgar o mundo de toda a escória, não restará ninguém para dirigir vingança contra nós.

—NÃO! -Berrou, caindo em choro novamente. -Eu não tenho nada a ver com essa maldita guerra.

—Mais respeito, está se reportando à Imperatriz de Ramavel!

—EU ME RECUSO A LUTAR! EU NÃO VOU TIRAR UMA VIDA SEQUER!

—Como ousa?! -Espantou-se a imperatriz. -Prendam-no!

—No dia que eu matar em nome de um rei, tenha a certeza de que não é apenas em nome dele. Sem dúvida haverá motivos muito maiores que uma coroa tirana e um brasão mentiroso… -Disse ele, com tanta convicção que sobressaltou Aço e, por um instante, fê-la imaginar que ele sabia de toda a sua trama. -Nesta vida, não tenho motivos para matar! VOCÊS, QUE SÃO CÃES, QUE SE MORDAM! -A mão, ainda trêmula, desembainhou a espada.

—Não me ferirá com isso, imundo! Se eu quisesse, já estaria morto agora, mas guardo um fim pior para você!

—OUÇAM-ME! ISTO É UMA VIOLÊNCIA DESMEDIDA! -Gritou aos outros soldados. -TROUXERAM-ME A FORÇA PARA LUTAR CONTRA PESSOAS QUE TAMBÉM NÃO QUEREM LUTAR! -Virou-se para Aço e gritou: -REPITO: VOCÊS, QUE SÃO CÃES, QUE SE MORDAM! -A mão que empunhava a espada se aproximou do pescoço de seu dono e o decepou. Com um só golpe, a cabeça caiu aos pés de Aço Voador, separada do corpo.

—Covarde… -Murmurou ela, limpando com as mãos o sangue que respingara em seu uniforme. -Dando continuidade… -Foi novamente interrompida. Vozes começaram a se levantar, surgia um motim.

—VOCÊS, QUE SÃO CÃES, QUE SE MORDAM! -Gritou uma feiticeira também forçada a se alistar antes de tornar a mão intangível, transpassá-la pelo peito e esmagar o próprio coração, caindo morta no ato.

Em seguida, dezenas de outros soldados repetiram a frase para logo depois cometerem suicídio. Aço e seus comandantes nada puderam fazer além de assistir. No fim da cena trágica, foram contados duzentos e sete corpos gigantes sem vida.

 

***

 

Cena V – O Desabafo de Firenze Tandar.

21 horas e 43 minutos. Reino Gigante – Ramavel. Centro de Recrutamento.

 

“Eu nunca escolhi estar aqui. Em momento algum minha opinião foi considerada; impuseram-me isto. Sou forçado a ser soldado em Ramavel; “Mas que orgulho! Você foi considerado forte, apto e saudável para essa missão tão linda que é defender o Reino!” Dizem alguns. Não. É, na verdade, uma missão suicida, assassina e covarde! Não defendo reino algum sendo soldado, defendo (a contragosto, ressalto) interesses egoístas de uma imperatriz suspeita, que nem ao menos se preocupou em examinar os corpos dos antigos monarcas. Somente se nomeou imperatriz (ainda que não tenha parentesco algum com a realeza) no calor do momento, sem dar ao povo a chance de pensar sobre o assunto. Um tanto suspeito, torno a dizer. Nada me afasta da cabeça a ideia de que ela mesma os matou! Voltando ao rumo da conversa: se são interesses de Aço Voador, Aço Voador que os defenda. Pôr inocentes para morrer em seu lugar é, no mínimo, covarde.

Desprezo fortemente a selvageria a qual os militares são submetidos em treinamento; a mesma selvageria usada na abordagem aos civis. Caso você que esteja lendo faça parte disso, perdoe minhas palavras duras, mas mais dura é a sua mão ao empunhar uma espada.

Não me suicidarei como fez o corajoso e querido Antipali e tantos outros homens e mulheres minutos atrás. Não vale a pena marcar com essa violência todas as minhas reencarnações seguintes; mas venho, através desta carta, anunciar minha deserção. Estou abandonando Ramavel para sempre. Buscarei refúgio no seio da Salvaguarda Legítima.

 

Vocês, que são cães, que se mordam.”

 

—F.T.

 

***

 

Cena VI – O Golpe.

23 horas e 19 minutos. Reino Kvarbrakoj – Kaotheu. Fortaleza Real.

 

—Fez o que combinamos? -Perguntou Rei Néfor ao mercenário. O ambiente em meia luz, iluminado apenas por poucas tochas aqui e ali, escondia o rosto tenso do rei.

—Sim, majestade. -Respondeu o outro. -De acordo com o combinado!

—Alguém o viu?

—Creio que não, meu rei.

—Cuidou para encobrir os rastros? Ocultou o cadáver do monstro? -Quis saber Néfor, cauteloso.

—Com todo o respeito, majestade, sou um profissional…

—Muito bem. Está dispensado… seu pagamento está dentro do chafariz ao lado dos portões. Saia.


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