Você Nem Deveria Estar Aqui escrita por L C Crimson


Capítulo 4
Talvez eu seja hipócrita




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Não sei como, mas duas horas depois eu estava na casa de Lilian, na suíte de Lilian, com as amigas de Lilian e a própria.

Eu chamo de sequestro consentido.

Ela disse “Zachary, estou sem tempo pra você, então venha comigo” e eu respondi “Quê?” e então já tinha entrado na limousine branca e prata e já estávamos descendo o vale em direção ao mar.

A casa dela era a maior e mais próxima da praia, seu quintal era a areia e isso me fez pensar que, se eu tivesse o que ela tem, eu não seria mal-humorado e mal-agradecido como ela é.

As três meninas foram tomar banho e trocar de roupa enquanto eu esperava com os dedos entrelaçados

—Nem me apresentei, não é? - A de cabelos cacheados e ruivos que tomou banho no banheiro da suíte se aproximou. -Sou Leah Beppler, melhor amiga de Lilian.

—Prazer, sou Zachary.

—Ah, sim, eu sei! - Ela deu de ombros e dobrou a toalha que usou. -Lily já te xingou muito!

Revirei os olhos.

—Não entendo direito… não sei o que tem de mais em eu ser eu.

—Ah, é um pouco mais profundo do que uma simples implicância, mas Lily vai te explicar tudo.

Leah parecia ser uma doce menina com sua voz aveludada e seus grandes olhos verdes azulados. Sem falar em seu jeito de andar que destoava completamente de Blanché: era leve, sem preocupações, quase como se flutuasse. O de Lilian, pelo contrário, eu identifiquei quando ela estava no meio do corredor de tão pesados que eram.

—Vou ter que chamar o pedreiro de novo pra consertar a banheira da suíte dos meus pais! - Blanché secava os cabelos quando entrou no quarto. -Cadê Amana?

—Tô aqui! - A negra chegou. -A água do banheiro do corredor parece uma cachoeira, Lily! Minha meta de vida é ter igual na minha casa!

—Todas cheirosas então estamos prontas pra começar! - Lilian pegou as toalhas das outras duas e foi até a sacada pendurando-as no guarda-corpo para secar ao sol. -Vamos fazer algumas coisas mais fáceis de resolver até Susana nos chamar pro almoço. Depois, podemos pegar pesado.

—Amana e eu vamos procurar músicas pra gente montar os números que faltam. - Leah retirou o notebook de Lilian da mochila da loira e o ligou.

—Perfeito! - Blanché bateu palmas. -Eu vou arrumar meu desktop porque não consigo trabalhar com bagunça!

Ela foi na direção de uma das duas portas duplas que tinha naquele quarto. Uma eu soube minutos antes que era o closet a outra me causou uma surpresa enorme: era uma grande biblioteca particular.

Até me coloquei de pé, tamanha surpresa. As estantes iam do chão até o teto e tomavam as paredes laterais inteiras. A parede do fundo era onde tinha uma grande janela com um banco cheio de futons azul-turquesa e amarelo (como outros detalhes do quarto de Lilian) na base, na parede onde ficava a porta de entrada, ficava a mesa de trabalho.

A ampla mesa tomava toda a parede e tinha o iMac de Lilian bem no centro. Era praticamente vazia se não fosse um pequeno porta-lápis e canetas e uns blocos de notas. Na parede tinha uma faixa horizontal de cortiça onde a dona pregava tudo o que fosse importante para ela.

Eu nunca, nunca, nunca esperaria que um lugar daqueles pertencesse àquela patricinha.

Blanché retirou algumas pastas de uma das gavetas e colocou todas de forma organizada sobre a madeira (e também óculos com armação tartaruga).

—Não sabia que usava óculos…

—Tem muita coisa que não sabe sobre mim, Zacky. - Ela sorriu e foi estranho.

Após o almoço e a sugestão de Amana e Leah para que as líderes dançassem Uptown Funk e Really Don’t Care, elas voltaram a se concentrar. E eu voltei a ficar atoa.

Uma sessão de bufadas e socos na mesa começou. Elas vinham da biblioteca. Beppler e Kleier se entreolharam e suspiraram como se nada pudessem fazer. Olhei para elas com o cenho franzido e apontei na direção do cômodo das lamentações.

—Lilian tá cuidando de muita coisa nesse início de ano – Amana inclinou o corpo na minha direção e sussurrou. -Por causa do estresse muito grande, é assim que ela reage ultimamente.

Levantei-me e andei na direção dos sons. Blanché me lançou um olhar animalesco e pensei que fosse o fim da minha vida, mas ela só retirou os óculos Tiffany & Co e os jogou de qualquer jeito sobre a mesa.

—Posso te ajudar? - Indaguei prendendo a respiração.

—E o que você acha que consegue resol… - Ela prendeu as palavras, sacudiu a cabeça devagar e apontou para fora da biblioteca.

Eu estava pronto para sair e deixá-la em paz quando ela proferiu:

—Pega uma cadeira no quarto e senta aqui.

Apenas obedeci.

—Eu não sei como alguém pode confundir decoração primaveril com outonal! - Ela disparou assim que me sentei. -Primavera é tudo colorido, vivo! Outono é tudo marrom e morto! Eu pedi claramente uma decoração primaveril! Por que pediria decoração outonal se vamos entrar na primavera?!

—O que eu tenho que fazer? - Mudei de assunto porque não estava entendendo.

—Essa pasta maior – apontou – tem os nomes de todos os alunos do Arabella. Essas outras mostram os clubes do colégio e o nome de quem participa dele. Aí, na pasta dos alunos do colégio, você vai anotar na frente de cada nome cada clube que esse aluno participa. Entendeu, Zacky?

—Sim, senhora! - Ajeitei a cadeira e procurei uma caneta.

—Aqui… - ela percebeu o que eu procurava e entregou uma caneta cor-de-rosa com plumas na minha mão. -Não vai estragar tudo, Zachary! - Seu tom era bravo, mas sua expressão era ligeiramente divertida.

—Vou tentar. - Dei um pequeno sorriso.

—Depois tem mais coisas, mas concentra nisso primeiro.

O tempo que passei escrevendo, Lilian passou discutindo pelo telefone com a empresa que contratou e mandando referências de decoração primaveril, não outonal, pelo seu iPad. Ela também mandou e-mail para uma empresa que confeccionava roupas e também ficou furiosa quando soube que a produção nem tinha começado. Ela estava tão brava que às vezes se enrolava nas palavras e eu não ser o motivo de toda sua fúria fez algumas coisas se tornarem cômicas.

Ela percebeu meu riso e eu percebi que ela iria me matar.

—Desculpe. - Baixei o olhar.

Blanché baixou seu iPhone e me preparei para ouvir até as orelhas ficarem quentes. No lugar disso, recebi um leve tapa de raspão na parte de trás da cabeça.

—Não, não, não, não! As blusas têm cores diferentes, mas têm a mesma estampa, A MESMA! - Lilian arfava de raiva. -O mesmo símbolo, a mesma frase, só muda a cor! Ah, quer saber? Estou cancelando o serviço! Vou pegar o dinheiro dos alunos de volta amanhã e já vou contatar meu advogado caso vocês queiram dar mais problema! - Encerrou a chamada. - Leah, pega o número da outra estamparia, por favor, mas me entrega só amanhã! - E se jogou na cadeira.

Passou as mãos no rosto como se quisesse tirar todo o estresse com elas. E me encarou em seguida. Sua pele perfeita estava ligeiramente avermelhada e, nesse curto tempo de estresse, tinha ganhado suaves olheiras.

—Anda, me fala sobre você. - Endireitou-se.

—Bom, há dois anos, na virada do ano, eu fui ver os fogos na praia com a minha mãe e a minha irmã (eu não moro com meu pai). Sem querer, entramos numa praia particular e eu vi as pessoas no deck da casa se divertindo, com uma visão privilegiada e sem tumulto. Eu vi a casa toda iluminada e as roupas brancas muito bonitas… Sou pobre a ponto de não ter o privilégio de poder ter uma roupa pra cada ocasião: o que eu tenho é o que eu tenho e é isso que vou usar. “Ah, mas não deve usar preto na virada do ano!” mas o que vou fazer se não tenho roupas brancas?

Os olhos dela se arregalaram um pouco.

—Eu queria ter a vida deles. Eu queria poder ter as coisas. Eu ainda quero tudo isso! Não quero poder comprar alguma coisa de mais de mil reais só uma vez por ano e ainda parcelado em doze vezes como é agora. Então, pensei em parar de estudar pra arrumar um emprego, mas minha mãe vedou a ideia, disse que se eu quisesse crescer financeiramente, eu só conseguiria se estudasse. Aí mudei meus planos. Arabella virou minha obsessão. Afundei a cara nos livros e nem no dia do meu aniversário eu parei. É o início das mudanças da minha vida… É mais do que importante pra mim!

—Como você estudou? Digo… você disse que nem tem dinheiro pra roupas…

—Na biblioteca municipal.

—Existe uma biblioteca municipal?! - Ela franziu o cenho.

—Se eu tivesse tantos livros como você, também não saberia! - Permiti uma zombaria e retomei o tom sério. -É muito frustrante pra mim ser tratado como sou no colégio. Eu tenho orgulho de quem eu sou, tenho orgulho de ter entrado lá, da minha bolsa de 100% que quase ninguém na mesma situação que eu conseguiu! E pra vocês, eu sou um lixo que não presta nem pra reciclagem! Não entendo o conceito de vocês!

—Existe uma explicação.

—Existe?!

—Olha, você tem orgulho da sua mãe, certo? Você se orgulha por ela trabalhar e te criar tendo tão pouco.

—Óbvio!

—Agora imagina o que nós, filhos, netos, tataranetos de gente muito rica sente em relação a própria família. Nós sentimos um orgulho ainda maior do que você pode imaginar porque, além de trabalhadores, eles são bem-sucedidos! Muitas vezes os melhores da cidade, do Estado, do país no que fazem! Temos orgulho dos nossos parentes, dos nossos contatos, dos lugares que frequentamos! É um tanto revoltante alguém como você entrar lá. Mesmo que seja por mérito do seu esforço, sabe? Você não faz parte do nosso estilo de vida!

Minha boca se entreabriu. Eu fiquei completamente sem reação. Demorou alguns minutos para eu processar todos os pensamentos e ter uma atitude que foi:

—Você é estúpida, Lilian! - Pus-me ereto. -Você e todos os que pensam igual a você! É uma garota mimada! A sua função na vida é gastar o dinheiro dos seus pais! Não sabe o que é passar dificuldade, não sabe o que é tentar conquistar um lugar melhor e conseguir!

—E você é um hipócrita! - Ela cuspiu. -Não vem tentar se fingir de correto pra cima de mim, Baker! Você reclama das atitudes dos outros, mas é só te dar uma oportunidade que você age igual!

—Eu ajo igual?!

—Age! Acabou de dizer que sou mimada e que minha função é gastar o dinheiro dos meus pais, mas você nem sabe a verdade! - Lilian deu fortes cutucadas com o indicador na minha clavícula. -Acabou de me julgar sem me conhecer e reclama quando fazem isso com você! É muita hipocrisia!

—É realmente difícil acreditar que você é algo diferente disso!

Blanché se levantou, girou nos calcanhares e caminhou para pegar algo que estava pregado na cortiça. Ela praticamente atirou o leve porta-certificado no meu rosto.

"Agradecemos por sua participação na seleção de bolsas de estudo para alunos que cursarão o Ensino Médio.

O Instituto Educacional Arabella Alighieri tem o enorme prazer em dizer que qualquer estudante que aqui frequenta torna-se parte de um grupo seleto de jovens com futuros promissores e isso se prova com nossa excelente média nos Exames de Admissão a Cursos Superiores.

Temos o enorme prazer em dizer também que a senhorita LILIAN BLUEBELL BLANCHÉ foi APROVADA com 100% de desconto nas mensalidades. Aguardamos a presença da senhorita Blanché junto com seu responsável até dia 31/01/2016 para quitar o valor dos materiais e tornar possível sua presença nas aulas a partir do dia 02/02/2016.

Assinado Diretor Harin Bernardelli."

Era igual ao que recebi. As únicas diferenças era o nome (que no meu estava escrito “ZACHARY SANDERS BAKER”) e o gênero das palavras.

Eu não esperava por isso.


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Notas finais do capítulo

geeeeeente, e aí?



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