Descobrindo Sombras escrita por Lucy Devens


Capítulo 6
Impala




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/718615/chapter/6

— Eu sei que essa é a sua estação favorita, mas não precisa exagerar, né?- Disse Ronnie assim que eu entrei no dormitório dela.

Olhei para as minhas roupas. De novo eu estava usando calça jeans e o moletom da Universidade de Portland. Ronnie fez o mesmo e naquele momento passou em sua cabeça que eu pudesse estar deprimida.

— Eu coloquei botas novas - Eu disse e mostrei minha bota de cano curto e salto alto, tentando parecer mais animada.

— E cairia muito bem com um vestido e meia calça - Ela completou e voltou a se concentrar nos livros.

Eu me joguei em sua cama e fiquei olhando para o teto.

— Então, quais são os planos dessa sexta feira? - Perguntei.

— Mey Anabelle querendo sair em uma sexta? Há, essa é nova.

Me ajeitei na cama dela e lhe lancei um olhar de reprovação. Pelo menos eu estava tentando. E depois dessa semana bizarra de aulas com John sem olhar na minha cara e Lucio olhando demais para ela, eu precisava relaxar. Mas parecia que esse não era o plano das minhas amigas. Mesmo sem que Ronnie dissesse algo, eu já sabia que ela tinha uma resenha para terminar e Vanilla tinha que cuidar dos irmãos mais novos.

— Deve ser um saco ter a família morando perto de você na faculdade - Comentei sobre Nilla.

— Deve mesmo. Mas, hey, amanhã teremos uma festa naquela fraternidade. Parece que eles estão precisando de dinheiro para algumas reformas.

— Hm...

Minha amiga se virou para mim por um segundo e respirou fundo.

— Tudo bem - Ela se levantou e foi em direção ao guarda roupa - Vamos para o Honor's. Podemos ficar lá uma hora, depois vamos voltar para casa.

— Ótimo!

Ela se arrumou rapidamente. Mesmo em 5 minutos ela conseguiu ficar melhor do que eu. Ronnie também me obrigou a passar um pouco de rímel e um batom vermelho escuro com a desculpa de que era sexta feira e muita coisa podia acontecer em uma hora. Entramos no carro dela e fomos direto para o nosso restaurante/pub favorito.

Entrei no Honor's com o pé direito e logo a recepcionista veio nos receber com um sorriso ensaiado. Ela estava cansada daquele emprego e das pessoas que a tratavam como se ela não tivesse sentimentos.

— Bem vindas ao Honor's, a casa dos estudantes nota A - Ela repetiu o que o seu chefe cansou de dizer para ela repetir.

Ronnie quase deixou uma risada escapar.

— São dois lugares, por favor - Eu disse da maneira mais amigável que pude.

— Me acompanhem - Ela disse e pegou dois cardápios.

Assim que pude entrar de fato no restaurante eu percebi que nada havia mudado durante as férias. A iluminação baixa ainda era mesma, ainda haviam posters de atores e cantores dos anos 70 e 80. A atendente nos levou até uma poltrona larga. Ali caberiam seis pessoas. Mas eu não disse nada, gostava do espaço.

Ronnie e eu nos sentamos uma de frente para a outra, eu foquei no cardápio, fingindo que estava lendo alguma coisa enquanto Ronnie caçava algum bonitão com os olhos.

— Gato loiro, quarenta e cinco graus - Ela disse.

Eu me virei para a direita e meu sangue gelou. Era Lucio, ele estava jogando sinuca com alguns amigos. No momento em que ele iria se virar e me ver, eu voltei a me concentrar no cardápio.

— Lucio Hank? Ele é meu professor de Antropologia Egícpia - Disse sem o menor entusiasmo.

— Talvez eu devesse me inscrever em algumas matérias a mais...

— Mas não tem nada a ver com a sua graduação, sem contar que você não teria muito tempo para ler todos os textos.

Ronnie me mostrou a língua e eu não pude conter uma pequena risada.

— Acho que ele te viu - Ela sorriu para trás de mim.

Merda, merda, merda! Lucio estava vindo em nossa direção. Respirei fundo.

— Boa noite, meninas - Disse ele assim que se aproximou de nossa mesa.

— Boa noite, professor - Disse minha amiga - É tão estranho ver professores fora do campus.

Fiz que sim com a cabeça e forcei um sorriso, sem tirar os olhos do cardápio.

— Eu que o diga - Disse ele - Já se embolou nos textos, Mey?

Olhei para ele e, de novo, mais uma imagem veio a minha mente. Dessa vez eu parecia sair de um filme medieval. Com um longo vestido marrom e o cabelo enrolado em uma enorme trança. Eu estava chorando, meu rosto estava inchado de tanto chorar e eu soluçava.

Um arrepio passou pela minha espinha.

— Acho que Mey está ansiosa com esse semestre, não é? - Minha amiga me salvou e aquela imagem saiu da minha cabeça. - Afinal, ela tem várias matérias complicadas, inclusive a sua, professor.

— Não seja por isso. Pego leve com você, Mey.

— Já sabem o que vão pedir? - O garçom apareceu ao lado de Lucio.

Pele bronzeada, cabelo escuro, olhar e mente impenetráveis. John. De novo.

Essa noite fica cada vez melhor, pensou Ronnie.

— Não tivemos a oportunidade de olhar o cardápio - Eu respondi e ele fez que ia embora, então eu me adiantei, não queria que ele saísse dali - Alguma sugestão?

— Bom, parece que é a minha deixa, preciso voltar ao jogo - Disse Lucio - Boa noite, senhoritas.

Assim que Lúcio saiu fora eu soltei o ar que nem sabia que estava prendendo.

— Acho que alguma coisa salgada - Disse minha amiga - Parece que a sua pressão caiu, Mey.

John olhou para mim, por um segundo achei que ele pudesse parecer preocupado, mas logo sua expressão voltou a ficar séria.

— Batata Frita - Disse minha amiga - Com chedar e bacon a parte. Nossa amiga aqui é contra comer carne.

John deu um sorriso enquanto anotava os pedidos.

— E duas cervejas - Completou minha amiga.

— Uma porção de batatas e duas cervejas no caminho- Disse ele e se retirou.

Eu me encostei no banco e respirei fundo. Tanta tensão em menos de cinco minutos. Ronnie me olhava como se eu pudesse lhe dar algum tipo de resposta. Eu apenas dei de ombros.

— Tanta tensão sexual por aqui. Acho que eu deveria ter pedido água e muito gelo - Ela deu risada.

Eu revirei os olhos.

— Hey, esse cara não é aquele que te levou para o seu dormitório na semana passada?

— Por que todo mundo só fica falando nisso?

— Eu não sabia que todo mundo estava falando sobre isso - Ela se encostou no banco também. Sabia que ela estava se divertindo com isso.

— Mas, sim - Eu sorri - John Ionahee é o nome dele. Faz pós graduação na Universidade de Portland. É tudo o que sei.

—---------------------------------------------------------------------------------------------------------

Depois de terminarmos a porção de batatas e pedirmos mais algumas cervejas, chegou a hora de Ronnie ir embora.

— Bom, está na hora - Ela disse - Vamos?

— Na verdade, eu acho que vou ficar mais um pouco. Pego o último ônibus. Essa fica por minha conta.

— Tem certeza?

Fiz que sim com a cabeça. Minha amiga deu de ombros e pegou as suas coisas.

— Te vejo amanhã na festa, tudo bem?

— Te vejo lá.

E logo ela saiu.

Eu aproveitei para dar uma última olhada no local. Estava quase todo vazio. Por sorte, Lucio já tinha ido embora há um tempo e eu tive alguns minutos de paz, sem pensamentos de outras pessoas, sem imagens estranhas, sem nada. Peguei um pequeno caderno que sempre levava comigo na bolsa e comecei a desenhar. Desenhei a imagem que Lúcio havia pensado, tentando me lembrar de cada detalhe. Aquilo havia me perturbado, se eu apenas pudesse colocar no papel, fora da minha cabeça, talvez aquilo fosse embora.

Eu me sentia maluca, muitas vezes. Por muito tempo eu me perguntava se realmente era possível alguém ler mentes. Lembro de quando eu era pequena e falava sobre isso nos orfanatos ou lares adotivos e sempre ficavam com medo de mim. Depois de ter que passar por psiquiatras e tomar remédios que eu não precisava, desisti de falar sobre isso. Talvez eu realmente fosse louca, talvez aquilo tudo fosse só impressão. Mas algo no fundo me dizia que não era. Não podia ser.

— Posso ver a conta? - John apareceu do nada e eu me assustei - Desculpe, não queria te assustar. Nós vamos fechar logo.

— Já? - Peguei meu celular na bolsa e vi que já era quase uma da manhã.
— Merda - Sussurrei para mim mesma.

Ótimo, eu havia perdido o último ônibus. Abri o aplicativo de táxi para ver se havia algum na região.

— Desculpe a demora, acho que eu me distraí.

— Sem problemas - Ele disse - Bonito desenho. É você nele?

Apaguei a tela do celular e olhei para o meu caderno.

— É, eu acho. Uma imagem que apareceu na minha cabeça.

John bufou com um sorriso irônico. Eu olhei para ele, no fundo dos seus olhos e tentei descobrir o que ele estava pensando, mas ele continuava a olhar o meu desenho e um silêncio parecia estar rondando ele.

— Vou pegar a conta. Parece que você precisa de uma carona. Pegar um táxi essa hora não parece uma boa ideia.

— Ah, não precisa, de verdade.

— Eu insisto - Ele sorriu.

— Tudo bem - Foi tudo o que eu disse antes dele ir embora.

Semana passada ele parecia amigável, depois passou a semana toda me ignorando e agora parecia amigável de novo. Sem entrar em sua mente eu jamais entenderia aquele homem.

Guardei meu caderno de volta na minha bolsa e fui até o balcão pagar a minha conta. Chegando lá descobri que alguém já havia pago. Um funcionário, a menina da recepção disse. Ela estava sorrindo, mas por dentro estava magoada. Ainda alimentava algum tipo de esperança com John.

Logo ele saiu da cozinha usando sua calça jeans, uma jaqueta de couro e as mesmas botas que eu havia visto no metrô. Ele me guiou até o seu carro, um Impala 67. Como alguém que trabalhava em um restaurante e estudava conseguia ter pago por um carro daqueles? Ele abriu a minha porta, como um bom cavalheiro. No fundo eu achei legal, mas eu havia estranhado. Nunca ninguém abriu uma porta de carro para mim. Eu poderia abrir as minhas portas, obrigada, mas resolvi não dizer nada.

Entrei no carro e senti um cheiro de couro e baunilha. Parecia que eu já conhecia aquele cheiro há muito tempo, me dava a sensação de estar em casa. Qual casa, eu não sabia, pois nunca tive um lar.

— Carro bonito - Eu disse assim que ele girou a chave - Acho que só vi carros como esses em exposições.

— É uma herança - Disse ele.

— Seu pai?

Ele olhou para mim e sorriu, mas não respondeu. Não entendi, mas sorri de volta. Não tinha como não retribuir aquele sorriso.

— Obrigada por ter me levado para casa na semana passada. Eu queria poder lembrar da primeira vez que entrei nesse carro - Eu disse e olhei para a estrada.

— Não tem problema - Disse ele.

— Acho que qualquer cara veria a oportunidade de fazer alguma coisa, mas você foi legal - Deixei escapar.

— Eu não fui legal, Mey. Eu só fui decente.

Acenei com a cabeça. O clima ficou tenso de novo, eu podia sentir ele se fechando mais uma vez.

— Vai ter outra festa lá amanhã - Eu disse antes que ele fechasse a última porta - Eu não vou beber tanto, aquilo foi só para comemorar o começo das aulas.

— Ou afogar as mágoas do fim das férias - Ele disse e sorriu para a estranha.

Eu dei uma risada para mim mesma. Na verdade eu gostava de ter aulas e não gostava das férias, mas não precisava falar isso para ele, pelo menos não naquele momento. Logo chegamos na frente do meu dormitório.

— Obrigada pela carona - Eu disse e abri a porta.

— Te vejo lá amanhã - Ele respondeu.

Eu saí e me controlei para não sorrir. Só pude me deixar sentir todas aquelas borboletas no estômago e sorrir feito boba assim que entrei no meu quarto.

O que era John Ionahee?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Descobrindo Sombras" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.