Naquela manhã os garotos ainda queriam entender como eu havia conseguido o bracelete e como eu tinha evoluído pro nível 3 da noite pro dia, sem testemunha alguma — claro que como uma pessoa esperta, menti, dizendo que havia encontrado outro jogador e tinha aniquilado ele, portanto, me fazendo merecer o nível 3.

Coloquei o colar dos quatro elementos na mesinha que tinha na sala de treinamento, onde todos olhavam o mesmo com bastante curiosidade, tentando entender sua utilidade.

— Eu já vi um desses — disse Xander, a primeira palavra em semanas. — É o chamado colar Elemental. Todos os filhos de Hécate têm um.

— O que significa que existe só mais um igual a esse? — perguntou Utae.

Xander confirmou com a cabeça, voltando a ficar calado.

— Onde você achou isso? — questionou Kameel à mim.

Todas os olhares também se viraram na minha direção.

— Vibeke usava um, lembra? — digo. — Pois bem, fui até onde ela tinha morrido e lá estava, jogado na neve.

Então as atenções voltaram ao colar que irradiava poder e uma vozinha no fundo da minha cabeça se arrependia de ter mostrado o colar a eles. Seria bem mais fácil evoluir de nível e escapar dos monstros com tamanho poder, pensei, brava comigo mesma.

— Tudo bem, a gente pode resolver isso mais tarde. Kary, hoje você vai caçar com a gente — anunciou Utae.

— Quê?! — Malek parecia perturbado com a ideia.

— Ela têm se mostrado muito útil até agora. Acho que ela merece sair um pouco da cabana pra um pouco de aventura.

Aventura? Acho que já vivi aventuras demais aqui dentro da cabana. Imagine quando eu estiver fora dela, mordi o lábio com o pensamento.

— Se for assim, eu fico — protestou Malek.

— Pode ficar. Você precisa de um tempo sozinho pra aprender a não questionar minhas ordens.

Tudo o que vimos a seguir foi um Malek furioso saindo da sala de treinamento, batendo com força a porta ao sair. Me limitei a soltar uma risadinha antes de ver Xander também sair da sala, dessa vez com uma expressão diferente da habitual. Ele parecia... pensativo.

— Vamos nós quatro, tudo bem? — questionou Utae por fim.

Nós três assentimos e logo saímos da sala de treinamento e finalmente da cabana, segundos depois. Eu ainda possuía minha adaga que pegara na noite anterior com Kameel e o mesmo já estava equipado com um arco e uma aljava nas costas cheia de flechas.

Imma tinha um tridente — azulado e irregular, como se tivesse sido feito de coral com uma pedra branca ligando as três pontas — em mãos, enquanto Utae optava apenas por aquela sua espada gigantesca de ferro de dois gumes. Eu sabia que segurança era algo com que eu não deveria me preocupar já que eu tinha jogadores fortes pra me proteger — e que começavam a gostar mais de mim do que do Malek.

Utae e Imma começaram a andar mais a frente na floresta, deixando eu e Kameel pouco mais atrás.

— Sobre ontem, desculpa ter beijado você — disse Kameel por fim, um pouco baixo por talvez sentir vergonha de ter que admitir isso.

Claro, ele já deve ter sacado que sou a bobona da Natália Winter e que eu não valia aquele beijo idiota, pensei, brava comigo mesma por ter falado o que não devia na noite passada.

— Não tem problema. E se quer saber, eu gostei, mas eu entendo que esteja com nojo de mim agora porque...

— Nojo? — ele me interrompeu.

— É, nojo. Sabe, por ter descoberto quem eu sou.

Kame arqueou uma sobrancelha.

— Mas eu não descobri quem você é.

— Ah, não, é?

— Não. — Ele deu de ombros. — E mesmo se descobrisse, por que eu teria nojo de você?

— Por ser quem eu sou... — minha voz foi diminuindo, enquanto a cor no meu rosto foi só aumentando.

— E se eu te disser que é exatamente por isso que eu gosto de você?

Num segundo ele já estava pondo a mão livre no meu rosto e eu sabia que me beijaria mais uma vez. É, bem, ele pelo menos tentou antes de Imma nos interromper:

— Atrapalhei? Foi mal, mas tem um cervo vindo aí e ele tem carne das boas.

Kameel de imediato se afastou um pouco de mim e pegou uma flecha, posicionando habilmente no arco. Utae desembainhou a espada e Imma preparou o tridente e logo avistei a presa. Saquei a adaga.

Num tiro certeiro, Kame atinge o animal na barriga, fazendo-o correr mais alguns metros e desabar. Mesmo assim ele atirou outra flecha, pra ter certeza de que o animal estava morto. Corremos até o cervo e Utae tirou uma corda que estava presa à sua cintura, amarrando as patas do animal.

Assim que ele termina, algo inusitado acontece:

— Desculpa, mas isso aqui é meu — disse um garoto, literalmente brotando na nossa frente e chutando as mãos de Utae pra longe do animal morto.

O garoto possuía cabelos verdes e olhos de um azul vívido — mais um colar de arco-íris preso ao pescoço. Tinha um sorriso travesso nos lábios e começou a arrastar a carcaça pra longe de nós quatro. Por reflexo, comecei a congelar seus pés e seus passos foram se tornando mais pesados, até ele tropeçar nos próprios pés e cair.

Imma avançou, bravo e fomos rodeados por... Não sei explicar o que eram. Era como se tivéssemos espelhos gigantes ao nosso redor porque pra onde quer que eu olhava, havia uma imagem igual a anterior.

— Maldito filho de Íris! — gritou Utae e pela sua voz parecia irritado, mas aquela repetição de imagem estava confundindo tanto meu cérebro que mal consegui achar ele naquela jorrada de ilusões.

Corri pra dentro duma dessas ilusões e acabei esbarrando em Kame que parecia tão perdido quanto eu. Segundos depois a ilusão se findou, revelando que estávamos mais próximos um do outro do que imaginávamos. Dei um passo pra trás, bem a tempo de Kameel posicionar outra flecha, mirar e acertar bem na panturrilha do maldito garoto de cabelos verdes.

Ele gritou e soltou xingamentos enquanto nos aproximávamos dele. O garoto ainda tentou fazer um jogo de luz contra a gente, mas Kameel conseguiu drenar a luz para si, fazendo o garoto xingar e colocar a mão no peito. Parece que alguém perdeu a energia fazendo besteira, pensei, meio com raiva do garoto.

— Quem é você e por que estava roubando nossa comida? — questionou Utae, friamente, pousando sua pesada espada de ferro no peito do garoto. — Fale rápido antes que eu esfole essa sua garganta. — Então ele aproximou mais a espada na garganta do garoto.

— Bernard, filho de Íris. — O garoto engoliu em seco, parecendo assustado com a espada tão perto do rosto. — F-Foi m-minha chefe que m-mandou...

Bernard pressionou os olhos e vi uma lágrima escorrer por sua bochecha.

— Imma, mata ele — ordenou Utae e eu barrei Imma na mesma hora.

— Como é? — digo. — Vai simplesmente matar ele?

— Por que não deveria?

— Olha só pra ele! Ele foi ordenado a nos roubar.

Os olhos de Utae encontraram os meus e vi um raio cruzar o céu imaginário de sua íris e eu sabia que aquilo nunca significava boa coisa.

— Kary, olha, eu gosto muito de você, mas ainda sou o líder e já disse que odeio quando questionam minhas ordens.

— Só que você disse que o objetivo agora era conseguir mais aliados! E se ele for da nossa equipe? Vai mesmo dar oportunidade pra outra equipe vencer só porque você está com medo?

Vi Imma prender a respiração. Nem eu estava acreditando que eu havia desafiado Utae daquela maneira. Os raios dentro dos seus olhos se multiplicaram, me dando um aviso prévio de que ele ia explodir.

E eu estava certa.

Utae pegou um dos meus braços com força e eu senti descargas fracas correrem pelo mesmo antes dele vociferar:

— Eu não tenho medo. Eu nunca tive medo!

Quando vi já estava batendo no peitoral da sua brunea.

— Então me prove — falei tão firme e desafiadora que nem eu acreditei.

Ele me jogou no chão, embainhou a espada e pegou o garoto pela gola da cota de malha com tanta força que foram arrancados alguns anéis metálicos.

— Com cuidado — ousei dizer.

— Calada — respondeu ele, bravo. — Imma e Kameel, levem a carcaça.

E Utae saiu arrastando o garoto pela gola e não dava sinais de que iria parar com aquilo até chegar na cabana. Quando eu ia começar a andar pra seguir eles, alguém segura meu braço:

— Você não, gracinha — era uma voz feminina sussurrando em meu ouvido. — Você vem comigo.

Tentei gritar, mas ela tirou uma corda de uma bolsa presa à perna e disse algo numa língua que eu não entendi antes da corda magicamente começar a me amarrar, envolvendo todo meu tronco, incluindo meus braços. A garota posicionou o polegar e o dedo na boca e assoviou. Levou apenas segundos antes de um pégaso branco lindo pousar alguns metros de distância.

O barulho todo fez os três olharem pra trás — quatro, contando com Bernard sendo segurado pela gola.

— Chefe! — gritou ele.

A garota sorriu em resposta.

— Eles capturaram você, não é, Bernard? Pois bem, podem ficar com ele enquanto eu fico com essa daqui.

Inesperadamente, quando a garota conseguiu me colocar no pégaso — na verdade, não ela que me colocou, a corda simplesmente flutuou até me deixar no cavalo com asas —, Imma lançou seu tridente, mas fora em vão. A garota conseguiu pegá-lo com tanta facilidade que nem parecia que o próprio Imma havia jogado.

— Um filho de Poseidon atacando a própria irmã? — Ela balançou a cabeça. — Que feio. — E atirou o tridente de volta, cravando-o na neve aos pés de Imma.

A garota subiu no torso do animal e logo o pégaso começou a levantar voo. Consegui gritar algumas coisas antes de não restar nada mais do que pontinhos pretos numa imensidão do manto branco de neve. Só não entendi por que Kameel não atirou no animal já que possuía uma pontaria perfeita.

Bem, de qualquer forma, isso não importava agora. Eu tentava não entrar em desespero por estar a vários e vários metros longe do chão, então optei por fechar os olhos.

E me deixei ser levada pela criatura alada para o desconhecido.