Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 9
Arco 2 - Parte 6




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Amanhecia quando a concha parou de brilhar em meu peito. Meus tentáculos desapareceram, dando lugar às pernas. Roupas surgiram em meu corpo em um passe de mágica e logo foram encharcadas pelas águas ao meu redor. Eu era humano outra vez.

Com Erika em meus braços, deixei o mar. Vestia os mesmos trajes que usara no navio — um feitiço de conjuração muito útil ensinado nos últimos cadernos de minha mãe — e caminhava em direção à praia. Olhava para baixo, para aquele rosto tão branco. Os olhos de Erika estavam fechados, e sua boca, levemente aberta. Ajoelhei-me na areia e a deitei no chão, atento aos movimentos de seu peito.

— Não está respirando — ofeguei. — Respire, pela graça dos céus!

Não sabia o que aquela expressão queria dizer, mas ela me pareceu adequada ao momento. Toquei as faces frias de Erika, chamando seu nome. Ela não respondia. Desesperado, realizei o procedimento que um amigo marinheiro me ensinara vários meses atrás. Vedei o nariz dela e toquei seus lábios com os meus. Empurrei um pouco de ar para seus pulmões. Ela não reagiu.

— Ah, mas que droga, Erika! Na única vez em que eu quero ouvir sua bendita voz, você faz isso comigo?

Eu não desisti. Não podia desistir daquela garota. Fiz massagem cardíaca, murmurando uma pequena prece. Em algum lugar ao longe, eu ouvia os latidos de um cachorro. Meus olhos não desviaram do rosto de Erika. Ela tossiu.

— Erika?

Continuou tossindo e vomitou algumas vezes. Piscou os olhos para mim.

— Eles estão aqui! Repetindo, eles estão aqui! — gritou alguém.

Os latidos continuaram.

— Daren — murmurou Erika, encarando-me. — Você me salvou.

Ela falava com apenas um fiapinho de voz. Fiquei emocionado. Um alívio imenso preenchia-me. Eu poderia abraçar aquela garota e não soltá-la nunca mais.

— Você está viva... Eu agradeço...

— Princesa Erika!

Alguns homens se aproximaram. Eram os guardas do rei. Junto com eles vinha aquele monte de pelos chamado Max. Pelo visto, ele conseguira escapar da fúria das ondas. Melhor assim. Erika ficaria arrasada se o cachorro morresse.

— Levem-na ao castelo — ordenou um dos homens. — Imediatamente!

— Espere — eu disse, mas acabei emudecendo. Não queria que levassem Erika para longe de mim. Lancei meu olhar sobre ela. — Roupas. Tragam alguma roupa para cobri-la!

Eles hesitaram. A camisa branca de Erika estava encharcada e transparente. Boa parte das ataduras havia se soltado. A intimidade dela estava em perigo.

— Deixem comigo. — Um rapaz ajoelhou-se a meu lado e jogou seu casaco sobre o corpo de Erika. Tinha certeza de já tê-lo visto algumas vezes no cais, conversando com os marinheiros e com a própria Erika, mas não consegui recordar seu nome. — Não é nada muito bonito, Vossa Alteza, mas é o melhor que temos por enquanto.

Erika sorriu quando ele a pegou no colo. Não posso negar que senti um pouco de ciúme. Ela era a minha menina. Apenas eu podia tratá-la com tanto carinho. O rapaz ignorou-me, preocupado como estava com a princesa.

— Max! — Ouvi a vozinha dela. — Tragam o Max!

— Vem, Totó — disse o garoto por cima do ombro.

Max lambeu meu rosto antes de seguir sua dona. Acho que era seu modo de agradecer. Fiquei de pé e observei enquanto Erika era escoltada de volta ao castelo. O braço dela pendia debilmente enquanto o rapaz a carregava.

— Senhor Daren. — O guarda que dera as ordens aproximou-se e fez uma reverência. Acho que se chamava Nathaniel. — Por favor, venha conosco. Sua Majestade gostará de olhar nos olhos do homem que salvou a vida de sua filha.

Passei a mão pelos cabelos úmidos.

— Não, obrigado.

Ele piscou.

— Perdão, senhor Daren?

Deixei escapar um suspiro.

— Eu não... Eu estou preocupado com meus companheiros. Se possível, gostaria de ir atrás deles.

— Senhor, nossa equipe de resgate está cuidando disso. Por gentileza, acompanhe-me até o castelo.

Outro suspiro.

— Acho que não vai me deixar em paz enquanto eu não o seguir, certo? Tudo bem. Vamos lá.

 

Eu apenas imagino o quão graciosa deveria ser a minha figura quando adentrei o castelo. Encharcado, descalço, quem sabe até coberto de algumas algas. Uma das criadas veio a meu encontro. Mostrou-me um quarto e um banheiro e me entregou roupas limpas, todas muito finas, dignas da realeza. Confesso que me senti um pouco desconfortável. Eu preferia os trajes de marinheiro...

Passaram-se dois dias. Eu ficava cada vez mais impaciente. Estava preocupado com meus companheiros. Estava preocupado com o Capitão Alfred. Estava preocupado com Erika. Ah, aquela garota travessa! Talvez, no final das contas, ela tivesse agido certo ao escapar do quarto. Eu não queria nem pensar no que teria acontecido se ela ainda estivesse presa lá dentro no momento da colisão. A morte de minha menina não era algo com que eu conseguiria lidar.

Na terceira manhã, eu finalmente fui chamado. Marchei até a Sala do Trono, onde o Rei James e a Rainha Helena aguardavam. Ajoelhei-me diante deles, mostrando o mais profundo respeito. Só ergui o rosto quando ouvi a voz grave dizer:

— Senhor Daren... Bendito o dia em que encontrei você.

Prensei os lábios, tenso. Eu só queria ver a garota. Só queria ter certeza de que ela estava bem.

— A minha dívida é imensurável — prosseguiu Sua Majestade. Seus olhos azuis brilhavam, límpidos como os da filha. — Eu poderia presenteá-lo com este castelo, com todos os tesouros do reino, com as roupas do meu próprio corpo, e isso, ainda assim, não seria suficiente.

Engoli em seco. Aquele agradecimento me constrangia.

— Meu rei, eu apenas cumpri meu dever. Vossa Majestade confiou a princesa a meus cuidados. — Fitei-o da forma mais educada que consegui. Devo ter fracassado miseravelmente; o fulgor em meus olhos era difícil de conter. — Daria minha vida por ela.

— Sua lealdade a nós é um grande tesouro — disse a rainha. — Agradecemos imensamente. Quero que saiba, Daren, que sempre encontrará neste castelo um verdadeiro lar. — Ela esboçou um sorriso. — É o que temos para lhe oferecer. Pode se hospedar aqui pelo tempo que precisar.

Não pude evitar um sorriso. A Rainha Helena sempre foi muito habilidosa com as palavras, mais até do que o marido. Quando ela olhava para mim com aqueles olhos castanhos e profundos, era como se minha alma fosse exposta. O homem mais dissimulado do mundo não conseguiria enganá-la.

— E, é claro — acrescentou o Rei —, que uma vaga em nossa ilustre Guarda Real não está fora de cogitação.

Engoli em seco outra vez. Abaixei o rosto.

— Eu... agradeço a gentileza...

— A Princesa Erika está bem. Graças a você. — A Rainha Helena interrompeu-me delicadamente, daquele modo que só ela sabia fazer. Quando menos se esperava, Helena dizia o que todos ansiavam por ouvir. — Ela está descansando agora, por isso não pôde comparecer a este encontro. Como mãe, eu transmito a você as palavras dela. — A rainha empertigou-se da mesma forma que a filha quando decidia cantar. Havia uma graça inigualável em seus gestos. — Obrigada, Daren.

Suspirei, aliviado.

— Eu agradeço suas gentis palavras, Rainha Helena. Aceitarei o convite para ficar no castelo. Quanto à Guarda Real, preciso pensar mais um pouco.

O Rei James assentiu solene.

— Pode se retirar agora, senhor Daren — informou. — Se precisar de qualquer coisa, a senhorita Angela e o senhor Grimsby poderão ajudá-lo.

— Obrigado, meu rei.

Fiz uma mesura e me retirei da sala. Tive o bom senso de esperar as portas se fecharem antes de comemorar.

 

Infelizmente, eu não tinha permissão para ver Erika. Seus pais ficaram muito assustados com o acidente — o que era bem compreensível — e a mantinham sob vigilância constante. Enquanto esperava a autorização para encontrá-la, eu perambulava pela cidade e pela praia e conversava com os marinheiros que haviam sobrevivido ao naufrágio. A Guarda Real fora exemplar em sua missão de resgate. Quase toda a tripulação foi salva. Mas Alfred continuava desaparecido.

— Seu velho estúpido... — resmunguei, fitando as águas. — Por que tinha de afundar com o bendito navio?

Eu sentia saudades daquele lobo do mar. Nós não éramos grandes amigos, mas costumávamos passar as noites bebendo juntos em um barzinho no coração da cidade. Ele me contava histórias com sua voz arrastada. Jurava até que encontrara monstros e sereias durante suas viagens mais ousadas. Eu escutava tudo com um sorriso bobo, assentindo de vez em quando. Nunca imaginei que o álcool me afetaria tanto. Em alguns momentos, eu até tinha a impressão de que Alfred ficava olhando para mim, como se pudesse enxergar através de meus olhos.

— Senhor Daren! — gritou uma voz masculina.

Virei-me. A certa distância, avistei o garoto que havia carregado Erika até o castelo. Seus cabelos castanhos estavam presos em um rabo de cavalo. Os olhos eram cinzentos como uma tempestade. Em termos de altura, era bem mais baixo do que eu. Tive de me conter para não socá-lo na cara enquanto o ciúme subia dentro de mim.

— Senhor Daren! — Ele inclinou o corpo para frente, apoiando-se nos joelhos. Ofegava. — O capitão da Guarda Real deseja falar com o senhor.

Ergui as sobrancelhas.

— E se eu não quiser falar com ele?

Desgraça! Eu só queria conversar com a Erika!

O pobre garoto pareceu confuso.

— Eu vou ter de insistir até o senhor aceitar.

Mainha, juro que ainda transformo esse moleque em um peixe!

 

O capitão da Guarda Real não me disse nada de mais. Apenas fez um convite para que eu me juntasse a seus homens. Com toda a educação do mundo, recusei. Disse-lhe que já tinha meus companheiros. Henrique apenas sorriu.

— Uma vez lobo do mar, para sempre lobo do mar, não é? — filosofou, alisando o bigode negro e espesso.

— Eu tenho uma ligação muito profunda com as águas. É o lugar ao qual pertenço. Não me sinto bem em terra firme.

O capitão serviu um pouco mais de chá em minha xícara.

— Eu compreendo. Sinto o mesmo, mas ao contrário. Não deixaria a terra por nada.

Nós estávamos sentados no pátio aberto do castelo. A brisa que nos envolvia tinha cheiro salgado. Ao longe, era possível ouvir o grasnar das gaivotas. Não conversei muito. Não havia nada de realmente útil que eu pudesse dizer àquele homem. Discretamente, entre uma bebericada e outra, eu erguia os olhos, buscando a torre mais alta. O quarto de Erika ficava ali. Eu tinha esperanças de que ela surgisse na janela.

— A paisagem que vemos deste pátio é muito bonita, não acha, senhor Daren? — comentou Henrique, sorrindo com os olhos pequenos e azuis.

— Sim — respondi, distante. — Muito bonita.

— Eu ouvi dizer que, certa vez, há alguns anos, os marinheiros ouviram uma sereia cantando na praia. Imagine só! Uma sereia! Eles provavelmente estavam muito bêbados.

— Sim... — Eu não prestava atenção. — Muito bêbados.

— Mesmo que sereias existissem — e eu não acho que elas existam — o que uma sereia estaria fazendo na praia?

— Eu não tenho a menor ideia.

— Aqueles marinheiros tolos...

Perdido. Eu estava perdido em pensamentos.

— Obrigado pela agradável conversa, senhor Daren. Espero ter a chance de tomar chá com o senhor mais vezes.

Eu pisquei, atordoado. Era hora de me levantar. Esbarrei na mesa, derrubei minha xícara, mas o capitão não percebeu. Apertamos as mãos em despedida. Enquanto ele ia embora, olhei para a janela uma última vez. Pensei ter visto uma silhueta por trás das cortinas.

 

O moleque se chamava Elliot. Ele tinha uma vozinha bem irritante para um rapaz, como se ela tivesse se esquecido de crescer com o resto do corpo. Para piorar, todas as tardes ele vinha atrás de mim puxar conversa. Durante longos minutos, ele tagarelava sobre seus sonhos, desejos e medos e fazia perguntas sobre quem eu era, de onde eu vinha e por que tinha cabelos brancos se ainda era novo. Acho que nem mesmo a paciente Rainha Helena conseguiria suportá-lo por mais de duas horas.

— Quer, por favor, calar a boca? — rosnei, tentando me afastar dele.

Elliot encolheu os ombros.

— Estou sendo inconveniente?

— Sim. Muito. Deixe-me em paz...

Eu fiz menção de seguir sozinho pelas ruas da cidade, mas o moleque apertou o passo.

— Sinto muito por isso. Eu tento não desagradar às pessoas, mas para mim é inevitável querer conversar com aqueles que me dão atenção. Quando você é baixinho e fraco como eu, todo mundo te olha meio torto...

Olhei torto para ele.

— Eu só... queria mostrar que sou um pouco mais do que todos veem... Sei lá...

Mainha, eu juro, juro, juro que ainda vou transformá-lo em um peixe. Ou quem sabe em um molusco.

— Eu queria ser como o senhor, que salvou a princesa e foi convidado pelo capitão para tomar chá... O capitão nem olha para mim direito! É como se... — Ele deu de ombros. — Estivessem todos esperando eu fazer alguma besteira... fracassar...

Desviei de um jovem que carregava um grande cesto de pão. Elliot por pouco não foi atropelado por ele.

— Ei, senhor Daren?

— O que é, desgraça?

Ele arregalou um pouco os olhos, mas logo voltou ao normal.

— O senhor acha que... eu algum dia poderia... você sabe, me tornar o guarda-costas da Princesa Erika? Mesmo sendo apenas o faxineiro da Guarda Real?

Estanquei. O garoto quase esbarrou em mim. Voltei-me para ele com a força de mil ondas.

— Não se atreva a olhar para ela, moleque! — rosnei sílaba por sílaba. A concha em meu peito brilhou, mas eu me controlei para continuar na forma humana.

— De-desculpe!

— Agora dê o fora antes que eu diga ao Rei James que você está cobiçando a filha dele!

— Es-está bem!

O moleque saiu correndo em uma velocidade impressionante. Trinquei os dentes enquanto fuzilava suas costas. Que molusco que nada! Eu ia transformá-lo em uma bendita esponja do mar!

 

A boa notícia é que eu quase não pensava mais em Ariel. A má notícia é que eu praticamente só pensava na Erika. A péssima notícia é que um acontecimento infeliz me fez pensar em ambos.

Eu passeava sozinho pela cidade. Comia pão com queijo, essa comida deliciosa que os humanos inventaram. Procurava flores para Erika. Ela gostava de orquídeas, mas eu não tinha a menor ideia de onde procurar orquídeas. Se tivesse um estoque de poções um pouquinho melhor, poderia conjurar um buquê...

— Senhor Daren!

Rosnei.

— Senhor Daren!

Contando até três, parei de andar. Elliot bateu em cheio nas minhas costas.

— Ah! — arfou, caindo no chão.

— Não sabe frear, moleque? — grunhi, encarando-o de cima.

— Senhor Daren! — Elliot exclamou, pondo-se de pé. — O senhor precisa ver isso! Os pescadores... eles encontraram um tritão!

Arregalei os olhos, assombrado. Vislumbrei a imagem de um jovem de cabelos ruivos e orbes verdes como sua cauda.

— O quê?!

O garoto resfolegou, ainda cansado de sua corrida.

— Encontraram um tritão! Na praia. Estão tentando levá-lo ao castelo.


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Notas finais do capítulo

Oxi momento ruim para finalizar o capítulo, num é? :v

Desta vez, tivemos vários novos personagens. Quem acompanha minhas fanfics de Hunter x Hunter talvez já conheça o Elliot, outro OC pré-existente que decidi aproveitar nesta long. Seu nome original é Icaro, mas eu escolhi mudar para Elliot porque sim. Acreditam que certa noite eu estava relendo o roteiro de um arco futuro de “Pobres almas” e percebi que tinha usado “Icaro” o tempo todo em vez de “Elliot”? Foi engraçado! Se em algum momento vocês se depararem com Arrietty ou Icaro nesta história, por favor, me avisem para eu corrigir. Bom, por enquanto é isso, pessoal. Abraços e até a próxima!



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