Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 8
Arco 2 - Parte 5




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O sol batia cálido em meu rosto, e a brisa salgada brincava com meus cabelos. Debruçado na amurada do navio, observava as águas a meu redor. A paisagem era quase monótona. Nada além de azul, fosse no céu sobre mim, fosse nos mares aos quais eu outrora pertencera. Já se passavam dois anos... Passavam-se dois anos desde a última vez em que eu vira Ariel, em que conservara com ele. A música que cantara em nossa despedida ainda ressoava em meus ouvidos. E eu muitas vezes me peguei fechando os olhos... imaginando o toque...

— Daren! — exclamou uma voz feminina, interrompendo meus pensamentos.

Uma jovem de cabelos negros curtos corria em minha direção. Ela tinha olhos vividamente azuis e vestia roupas pouco condizentes com seu porte físico. Jogou-se sobre mim, querendo me laçar pelo pescoço, mas era muito baixa e só alcançou meu peito. Feliz, enterrou o rosto em minha camisa branca, aspirando seus odores como se eles a encantassem. Em seu encalço vinha um amontoado de pelos que ela chamava de cachorro.

— Gosto tanto do seu cheiro. — Ela sussurrou, esfregando o rosto em mim.

Eu a afastei.

— Erika, o que eu já lhe disse sobre correr no convés?

— Ah, não enche, Daren! — Erika fez beicinho. — Até você? Por que todos aqui acham que podem ficar me dizendo o que eu posso e o que eu não posso fazer?

Não pude evitar um sorriso.

— Talvez seja porque você é uma princesa.

O beicinho outra vez.

— Não fale assim! Parece que está me diminuindo.

Comecei a rir e pousei minha mão sobre os cabelos dela. Ainda não estava acostumado com o contraste do róseo de minha pele com as mechas negras.

— É sério! — Ela afastou minha mão. — Eu tenho 23 anos. Sei muito bem o que estou fazendo.

Olhei para ela. Erika era uma garota baixinha, mas cheia de personalidade. Adorava viajar de navio, mesmo tendo de argumentar com o pai para ganhar permissão para tanto. Como uma princesa, ela deveria permanecer no castelo, aprendendo sobre seu povo e sobre como reiná-lo. No entanto, preferia passar as tardes correndo pelo convés com suas botas de couro e as roupas masculinas. Quem a visse de longe, pensaria que era apenas um menino.

— Os marinheiros ficam preocupados, Erika. E eu também.

Ela desdenhou de mim.

— Tenho o Max para me proteger — riu, fazendo carinho no cachorro.

Eu me sentei contra a amurada, e ela fez o mesmo. Conversamos durante um longo tempo. Gostava de conversar com Erika. Ela era uma garota muito inteligente e culta. Nós sempre trocávamos ideias quando estávamos juntos em um navio. E isso, para ser sincero, acontecia com certa frequência. Desde que eu salvara um dos capitães da frota do Rei James, era convidado a participar de toda a sorte de missões especiais. Erika vinha a tiracolo, aproveitando-se da confiança que o pai depositava em mim. Por algum motivo, ela acreditava que estaria segura a meu lado.

— De onde você veio, Daren? — perguntou pela centésima vez.

— De longe.

— Longe quanto?

Apenas sorri.

— Muito longe.

Não era exatamente uma mentira. Minha origem eram as profundezas do mar. Era lá que eu vivia antes de decidir me transformar em humano e procurar por respostas em terra firme. Não as encontrara ainda, mas não desistiria de procurar.

— Às vezes eu acho que você está procurando alguma coisa, Daren — dizia Erika, sempre muito perspicaz. — O que é?

— Eu... quero saber quem eu sou de verdade. Por isso estou viajando. Por isso nunca fico parado no mesmo lugar por muito tempo.

Ela franzia o cenho, mordendo o lábio.

— Isso é vago demais. Seja mais específico!

Naquele dia, eu toquei seu rosto com um movimento breve.

— Roubei seu nariz — anunciei.

— Está pensando que eu sou criança, é? — bradou Erika, furiosa.

A noite caiu fria sobre nós. Muitos dos marinheiros buscaram calor na bebida, mas eu tinha um plano melhor. Coloquei uma pequena caixa de madeira no convés e joguei uma toalha branca sobre ela. Erika sentou-se toda serelepe e empertigou o corpo antes de começar a cantar.

Os marinheiros pararam de beber. Olharam para ela. Apenas olharam. Escutando e se aquecendo com sua voz.

 

— Daaaaren! Ô, Daaaaren!

Eu resmunguei, revirando-me na rede. Um dedinho fino cutucava meu rosto. Era Erika, aquela passarinha que acordava com os primeiros raios de sol. Sua grande filosofia de vida era: se eu estou acordada, o Daren tem de acordar também para conversar comigo.

— Daaaaaren! Ô, Da...

— BUH! — fiz, sentando-me com um salto.

Ela gritou.

— Ai, Daren! Não faz isso! Quase me matou de susto!

— Eu sinto pelo “quase” — respondi, esfregando o rosto.

Estávamos sozinhos no dormitório. Todos os outros marinheiros já estavam trabalhando. Pus-me de pé, espreguiçando-me, e busquei uma camisa limpa e um par de botas. Enquanto terminava de me vestir, Erika tagarelava sobre futilidades. Ela nunca calava a boca por um maldito segundo, de modo que, a seu lado, eu nunca conseguia pensar em meus próprios assuntos. E isso era bom, pois meus assuntos normalmente envolviam Ariel.

Eu não queria pensar nele.

— E aí o Max vomitou tudo em cima do vestido da princesa Chiara. Foi hilário! Mas meu pai me deixou de castigo por eu ter dado risada.

— Seu pai não se preocupa de você passar tanto tempo entre homens?

Erika fitou-me com seus olhos azuis. Deu de ombros.

— Acho que não. Ele meio que já desistiu de mim.

Suspirei.

— Você continua sendo mulher. E, segundos atrás, estava cutucando um homem seminu enquanto ele dormia. Acha que ele gostaria disso?

Erika abriu um sorriso travesso.

— O homem nu ou o meu pai?

Sorri de volta.

— Você é incorrigível, sabia?

Subimos para o convés e tomamos nosso café enquanto a brisa da manhã nos cumprimentava. Mesmo depois de tantos meses, eu ainda me encantava com o gosto do pão, essa comida estranha que os humanos criaram. Erika devorava o seu sem um pingo de classe, lambendo os dedos ao terminar de comer.

— Ei, Daren — chamou-me com a boca ainda cheia. — Por que você sempre volta para o meu reino? O que tem de interessante, lá?

Droga. Essa garota sempre faz as piores perguntas. Que faço eu, mainha?

— Não há nada de interessante. Eu apenas aceitei ser contratado por seu pai. Ele paga muito bem.

Era verdade. O Rei James logo descobriu o quanto eu poderia ser útil na navegação. Ele não sabia, é claro, mas eu tinha uma compreensão dos mares que ia além da capacidade humana. Até mesmo os capitães mais experientes faziam uma reverência respeitosa quando me viam. Eu era famoso. Cobiçado. Mas permanecia fiel a meu rei. Não aceitaria nenhum outro emprego.

— O que te prende aqui, Daren? — insistiu Erika.

Suspirei outra vez. Sabia tão bem quanto ela que aquela conversa só se encerraria quando eu desse uma resposta minimamente decente.

— Existe algo que eu quero por aqui — disse, virando o rosto para o mar. — Algo que me prende.

Erika piscou seus olhos, analisando-me.

— Alguém que você ama?

Garotinha maldita.

— Eu não disse nada sobre amor.

— Não precisa. — Ela limpou os dedos no tecido das calças. — Está nos seus olhos, Daren. Você sempre fica aqui, debruçado, olhando as águas... como se procurasse alguma coisa — hesitou por um instante. — Como se procurasse alguém — corrigiu.

Eu me agachei. Não muito, apenas o suficiente para ficar na altura do rosto de Erika. Os olhos azuis dela quase me queimavam.

— Nós somos assim, Erika. Somos pobres almas desafortunadas procurando algo que nos complete. Eu vim até aqui para descobrir quem eu sou, mas, às vezes, é muito difícil nós nos desprendermos de quem éramos.

Ergui-me, satisfeito com minhas palavras. Elas ressoavam em minha mente como uma música, preenchendo-me com seu sentido. Eu tinha a sensação de que havia dito algo profundo e incrível que deixaria até mesmo o mais nobre dos homens perdido em pensamentos sobre o mundo. Por isso, não pude não ficar um pouco decepcionado quando Erika se afastou dizendo:

— Baboseira.

 

Entardecia. Faltava pouco para atracarmos no porto de nosso reino. Alguns dos marinheiros conversavam, e o Capitão Alfred continuava silencioso como sempre. Erika corria de um lado para o outro no convés, gritando com uma vozinha fina irritante.

— Daren! Daren! Daren! Olha!

— O que é, desgraça? — A expressão era dela. Eu só copiei.

— Olha só essas gaivotas! Elas são lindas! — exclamou a garota, estendendo os braços.

Eu olhei para o céu. O branco das gaivotas brilhava no manto do crepúsculo. Elas grasnavam umas para as outras. Prensei os lábios. Em um rompante, corri até a popa.

— Capitão Alfred, temos um problema! As gaivotas...

— Sim, meu filho, eu sei. — Ele virou o rosto para mim. Era um velho lobo do mar com barba e cabelos grisalhos. Os olhos miúdos brilhavam com uma esperteza única. — Esta será uma noite agitada. Por favor, avise aos vagabundos aí embaixo que não temos tempo para festa. — Ele apertou levemente o timão. — Teremos que suar um bocado se não quisermos virar isca de peixe. Que o Rei Tritão ouça nossas preces.

Não respondi que o Rei Tritão detestava seres humanos desde que alguns deles assassinaram sua esposa. Achei desnecessário. Em vez disso, apenas desci as escadas e gritei com meus companheiros.

— Muito bem, homens! Preparem-se! Há uma tempestade a caminho, e ela será desastrosa. — Todos pararam de conversar. Olharam fixamente para mim. — Obedeçam às minhas ordens e talvez cheguemos em segurança a nosso reino.

Eles escutaram atentos enquanto eu passava as diretrizes. Precisávamos agir rápido, antes que a noite caísse por completo e o mar ficasse revolto. Eu estava correndo com eles, cuidando dos mastros e das velas, quando alguém tocou meu ombro.

— O que vai acontecer com a gente? — perguntou Erika. O cachorro estava em seus calcanhares outra vez.

— Erika! Você não pode ficar aqui. — Larguei as cordas que carregava nos braços de um dos homens e a segurei pelo cotovelo. — Venha comigo. Esta noite você terá de ficar no seu quarto. É mais seguro.

— Ai! — Ela exclamou enquanto eu a puxava. — Está doendo, Daren! Solte-me.

— Você não entende, garota? — bradei, agarrando-a pelos ombros. — Nós podemos morrer aqui! Eu preciso garantir sua segurança. Preciso mantê-la viva. Obedeça-me sem contestar!

Os olhos dela faiscaram. Tenho certeza de ter visto duas lágrimas se formarem.

— Está doendo, Daren. Solte-me — ordenou.

Soltei-a. Abri a porta que conduzia aos aposentos reais e fiz um gesto para que ela entrasse. Erika fuzilou-me por cima do ombro, mas obedeceu. Ela e o cachorro entraram no cômodo escuro. Tranquei a porta por precaução.

— Muito bem — murmurei, fitando as gaivotas. — Pode vir. Estamos prontos.

 

Caos. Não havia outra palavra que pudesse descrever a situação. A tempestade caía cruel sobre nós, e as águas golpeavam o navio com violência. Encharcado, mal enxergando em meio àquela escuridão, eu gritava até ficar rouco, instruindo meus companheiros sobre como agir. Um deles já desistira. Estava encolhido em um canto, rezando.

— Preciso de todos vocês! — berrei, puxando o maldito pela camiseta. — Todos — repeti, encarando-o.

Não lembro em que momento exatamente eu avistei os rochedos. Eles ainda estavam distantes, mas não demoraria muito para nos aproximarmos. Meu medo era de que colidíssemos com ele. Morte certa. Se não batêssemos com a cabeça nas pedras, certamente nos afogaríamos. Os marinheiros, pelo menos. Eu retornaria à minha forma original caso caísse na água.

— Estão todos seguros — murmurei. — Ficarão todos seguros. Todos seguros...

— Daaareeeen!

Virei-me, apavorado. Erika corria na minha direção, lutando para manter o equilíbrio no navio que era atirado de um lado para o outro. Sua camisa branca estava encharcada e era possível ver as ataduras que ela usava por baixo para cobrir os seios. Atrás dela, eu via a porta do dormitório real pendendo de forma precária.

— O que você fez, garota? Quebrou a maldita tranca? Volte para lá imediatamente! — gritei, tentando me fazer ouvir no estrondo da tempestade.

— Daaareen! Eu estou com medo!

Ela chorava. Acho que estava chorando. Naquela escuridão, era difícil distinguir as lágrimas da chuva. Corri até ela. Tudo o que queria era abraçá-la e dizer como estava sendo estúpida por abandonar seu abrigo. Eu corri até ela... Mas uma onda poderosa atingiu o navio, empurrando-o para o lado. Eu vi os homens caírem. Eu vi os homens rolando pelo convés. Eu vi Erika flutuando lentamente no ar, rolando sobre a amurada... e caindo nas águas ao nosso redor.

— Erikaaaaaaaa!

Ninguém me ouviu. Estavam todos ocupados demais com a própria segurança. Aqueles desgraçados, nenhum deles deu atenção a ela. Nenhum deles sequer percebeu que Erika estivera gritando, assustada, apavorada como uma criança pequena que tem medo de trovões.

Eu não pensei. Só me dei conta do que tinha feito quando a água do mar me preencheu.

As pernas desapareceram. Seriam inúteis em meio àquela fúria marinha. Eu vi as botas e os restos de minhas calças dançarem a meu redor quando os tentáculos surgiram. Eles me deram impulso para chegar mais rápido ao corpo pálido de Erika. Abracei-a. Puxei aquela garota para perto de mim como se aquele simples gesto pudesse protegê-la do mundo.

— Está tudo bem — sussurrei, mesmo sem saber se ela podia me ouvir. — Eu vou te salvar.

Retornei à superfície. Um dos marinheiros nos viu e gritou para nós. Jogou uma boia, e eu fiz o possível para apoiar o corpo inerte de Erika sobre ela. A garota estava inconsciente. Precisava de mim. Ela precisava de mim para não morrer. Aterrorizado, virei o rosto para o navio.

— Pelos mares...

Os homens gritavam. Os homens caíam na água. E o Capitão Alfred mantinha-se firme em posto, como um guerreiro. O navio chocava-se contra os rochedos, desfazendo-se em pedaços.


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Notas finais do capítulo

Yo, people! Como estamos? Espero que tenham gostado do capítulo. Foram meses de suor e madrugadas não dormidas, mas ela finalmente está aqui, a tão pedida segunda temporada! Como podem ver, temos uma nova personagem: a Princesa Erika. A princípio, minha ideia era que ela fosse apenas uma versão genderbend do Príncipe Eric, mas, conforme escrevia, a Erika assumiu a personalidade da minha OC Arrietty, uma velha conhecida dos que acompanham minhas fanfics de Hunter x Hunter. Então, eu decidi que a Erika seria a Arrietty com a aparência ligeiramente diferente e um novo nome. Para todos os efeitos, considerarei a Erika uma OC, ok? Foi muito divertido utilizá-la nessa história. Como o background da "Arrietty-Erika" é bem diferente do passado sombrio da "Arrietty-original", eu pude explorar um lado mais lúdico dessa personagem que amo tanto. E, é claro, não poderíamos esquecer a mascote! Eu até pensei em substituir o Max pelo Kurode (um labrador dourado, outro velho conhecido dos meus leitores em Hunter x Hunter), mas depois mudei de ideia e decidi me manter mais fiel ao filme.

Outro detalhe importante é que eu resolvi mudar a organização da long, dividindo-a em arcos para facilitar a localização de vocês quando estiverem "folheando" os capítulos. Mas vocês ainda podem chamar os arcos de "temporadas", que eu vou entender.

Bem, por enquanto é isso. Até a próxima! ;)



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