Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 7
Bônus: A canção de Ariel


Notas iniciais do capítulo

Este bônus encerra definitivamente a primeira temporada. Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/716862/chapter/7

O castelo do Rei Tritão nunca estivera tão agitado. Faltavam poucas semanas para a grande estreia de Ariel, e os criados não tinham um só minuto de sossego. De cima do banco de pedra, Sebastião coordenava tudo, distribuindo tarefas e exigindo prazos.

— A decoração! Precisa estar perfeita!

— Sim, senhor Sebastião! — exclamou uma das sereias, nadando a toda com o pequeno vaso de algas em seus braços.

— Os assentos de conchas!

— Estou arrumando todos, senhor Sebastião — respondeu outra sereia, organizando as enormes conchas coloridas.

— O ensaio de Ariel!

Silêncio.

— Ariel? — Sebastião olhou a seu redor, agitado. — Ariel? Ah, onde aquele tritão se meteu desta vez?

O dito cujo não estava muito longe dali. Buscando abrigo da confusão que era o castelo, escondera-se perto de alguns rochedos. Cantava em paz, sozinho, sem ninguém que o pudesse incomodar. A música fluía por seus lábios, cálida e envolvente.

 

Eu quero estar onde você está

Eu quero ouvir sua voz cantando...

 

Ariel calou-se. As lembranças de Daren ainda eram doloridas. O bruxo do mar não escutara seus apelos. Decidira ir embora, sabe-se lá para onde. E o que havia a dizer sobre isso? Os olhos dele pareciam tão nublados quando se despediu...

— Pare de se lamuriar, Ariel — resmungou o tritão. — Vamos, volte para casa.

Ele nadou em silêncio, mas não resistiu à vontade de olhar uma última vez para trás. Quase podia enxergar o covil de Daren. Não ficava muito distante. Era logo ali.

 

— Sei pai não o autorizou a cantar para que você ficasse faltando aos ensaios, Ariel! — bradou Sebastião, chacoalhando a batuta. — Onde já se viu? Que falta de responsabilidade. Como espera se sair bem sem ensaiar?

— Eu estou ensaiando, Sebastião — retrucou Ariel em tom monótono enquanto brincava distraído com uma das conchas decorativas.

— Isto é sério! — Sebastião jogou a concha para longe com um movimento rápido da batuta. — Você não quer impressionar todo mundo?

Ariel apoiou o queixo nas mãos. Não parecia zangado, mas a ofensa brilhou em seus olhos.

— Eu não quero impressionar ninguém. Não devo nada a eles. Eu só quero cantar, Sebastião.

O conselheiro real respirou fundo e abriu um leve sorriso. O jovem príncipe estava crescendo. Há alguns anos, era apenas uma criança travessa que nunca ouvia os outros. Agora... Olhe só para ele! Tão orgulhoso, tão seguro de si.

— Eu tenho certeza... — Cuidadosamente, Sebastião pousou uma de suas garras sobre os dedos de Ariel. — De que seu pai terá muito orgulho de você.

Os olhos de Ariel brilharam, felizes com o elogio.

— Agora, vamos repassar algumas notas — prosseguiu o siri, erguendo de novo a maldita batuta.

— Sebastião!

— Vamos lá! Cante comigo. Ehem! — O conselheiro real fez uma pose soberba e, de olhos fechados, começou a cantar. — Quando eu era criança, sonhava em ser grandão. Mas eu sou só um siri...

Ariel apenas balançou a cabeça e nadou para longe.

 

Ele afastou o cabelo ruivo dos olhos e mordeu os lábios. Estava procurando por Lilly havia horas, mas não a encontrava em lugar nenhum. Pensando bem, ele não conversara com ela nos últimos dias. Por onde a peixinha estaria nadando?

— Lilly? — chamou Ariel, seguindo pelos jardins do castelo. — Lilly?

Uma risada conhecida alcançou seus ouvidos, e Ariel virou-se na direção dela. Algumas poucas batidas de cauda separavam-no de Lilly, que conversava animadamente com um jovem tritão desconhecido. Ariel aproximou-se deles e cruzou os braços, mal escondendo o sorriso.

— Os seus cabelos são tão bonitinhos, Hugo — disse a peixinha. — Dá vontade de tocá-los o dia inteiro.

— Pare com isso, Lilly — respondeu o outro. — Vão achar que você é louca.

— Hum — fez Ariel. — Tarde demais.

Lilly espantou-se e deixou escapar um soluço. Em um rompante, ela se escondeu às costas do tritão, tremendo de medo.

— Ah — murmurou, espiando Ariel sob o braço de Hugo. — É só você...

— Não vai me apresentar seu amigo, Lilly?

— Oh, oh, claro! — Ela nadou até ficar entre os dois e fez uma pose bastante pomposa. — Ariel, este é meu amigo Hugo. Hugo, este é...

— Príncipe Ariel! — Hugo fez uma profunda reverência. — É um prazer imenso conhecê-lo!

Ariel encolheu os ombros, constrangido.

— Não precisa disso tudo... Hugo...

Ele examinou o jovem tritão. Não parecia ser muito mais velho do que ele. Hugo tinha uma cauda verde-escura que combinava com sua pele bronzeada. Seus cabelos louro-escuros formavam cachinhos rebeldes. Os olhos eram verde-musgo. E ele tinha sardinhas.

— Desculpe... — Hugo riu, sem graça. — É que eu não estou muito acostumado a, você sabe, conversar com príncipes e tudo o mais...

— Você é daqui do reino? Não me lembro de tê-lo visto antes.

Hugo prensou os lábios.

— Quando eu era criança, morava aqui com minha mãe. Mas ela desapareceu. Foi escravizada pelo bruxo do mar.

Ariel e Lilly trocaram olhares. O mesmo pensamento circundava suas mentes.

— Sem ninguém para cuidar de mim, acabei me perdendo quando saí para procurá-la. Aprendi a me virar sozinho... Passei a viver como um nômade, nunca me fixando em um único lugar... — Hugo balançou a cabeça, fazendo seus cachinhos dançarem de um lado para o outro. Ainda tímido, tentou abrir um sorriso. — Agora que o bruxo do mar se foi, a minha mãe finalmente voltou. Estamos morando em Atlantica desde então.

Ele esperou uma resposta, mas ela não veio. Ariel tinha os olhos verdes muito abertos, mas os lábios não se moviam. Receoso, Hugo moveu uma das mãos diante de seu rosto.

— Ah... — fez Ariel. — E-eu sinto muito, Hugo.

— Tudo bem. Eu soube que ele também fez coisas horríveis com você. Ai, aquele maldito... — Hugo cerrou os punhos. — Eu queria que o Rei Tritão tivesse matado ele! Você não acha?

O pobre Ariel abriu um sorriso amarelo.

— Bem, ele não era tão ruim assim, sabe?

— Claro que era! — bradou Hugo. — Ele tirou a minha mãe de mim! Eu o odeio! Às vezes, eu queria fugir e ir atrás daquele desgraçado só para dar um soco na fuça dele!

— Hugo. — Não foi Ariel quem chamou, mas Lilly.

O tritão não ouviu. Continuou com suas tagarelices, sempre movendo os braços com ferocidade e trincando os dentes.

— Hugo! — exclamou Lilly, assustando o amigo. Ela se aproximou e moveu calmamente as barbatanas. — Inspire. Expire. Inspire. Expire.

Ele acompanhou as ordens até se acalmar. Fechou os olhos verde-musgo, recuperando a serenidade, e abriu um sorriso leve.

— Obrigado, Lilly.

A peixinha sorriu também, satisfeita.

— Ei, Ariel. Eu soube que você está se preparando para cantar no musical. É verdade?

— Sim — respondeu Ariel, aliviado por fugir do assunto “bruxo do mar”.

Hugo coçou a nuca.

— Será que eu poderia... assistir aos seus ensaios?

Ariel meditou sobre aquele pedido. Ele preferia ensaiar sozinho, cantando apenas para si mesmo. O que mais lhe restava fazer quando aquele com quem mais desejava realizar um dueto estava tão longe? No entanto, seria útil ter a opinião de um ouvinte. Hugo parecia ser atencioso e gentil.

— Tudo bem — disse, abrindo um sorriso misterioso. — Mas você sabe o que dizem sobre o canto das sereias.

 

Hugo e Lilly eram uma presença constante nos ensaios. Os dois normalmente eram muito barulhentos, mas se aquietavam quando Ariel começava a cantar. Lilly juntava suas barbatanas, enamorada. Hugo observava, dominado pelo fascínio. O brilho em seus olhos não o deixava mentir.

 

Eu desejo... Eu almejo...

Te encontrar.

 

— Quem você quer encontrar? — perguntava Hugo, curioso.

Ariel apenas sorria.

— Minha musa inspiradora — respondeu certa vez.

— Uma sereia, então?

O príncipe simplesmente deu de ombros e nadou para seu quarto.

 

O dia da apresentação estava cada vez mais próximo. Ariel finalmente cedeu aos pedidos de Sebastião e se permitiu ensaiar com ele. O público de sempre estava por perto. Hugo e Lilly nunca se cansavam de suas músicas.

— Silêncio, vocês dois! — ordenou o conselheiro real, tocando o cavalete com sua batuta. — Quando quiser, Ariel.

Ele ergueu a cabeça, altivo. Fechou os olhos.

 

Quero saber onde ela está,

Aquela musa que me faz cantar...

Eu quero saber...

Não a quero perder...

Onde estarás?

 

Ariel abriu os olhos, despertando de seu transe. Hugo e Lilly sorriam para ele, mas Sebastião tinha o olhar fixo, quase perdido. O príncipe estava prestes a pedir desculpas por qual fosse o seu erro quando o conselheiro real enxugou uma lágrima.

— Perfeito — disse.

Apenas isso.

 

— Onde está Ariel? — perguntou uma das criadas.

— Ariel? — chamou outra.

— Príncipe Ariel!

— Ele não está no quarto! — exclamou uma pobre desesperada.

— Fugiu outra vez!

Instaurou-se o caos.

— Pelos mares... — murmurou Ariel ao retornar dos jardins. — Eu só estava pegando um pouco de água fresca antes da apresentação...

Ele nadou pelo castelo, ignorando a algazarra das sereias que o procuravam. Não queria distrações naquele dia. Precisava manter a serenidade para cantar com todo o sentimento que guardava dentro de si.

— Ariel!

A voz assustou-o. Não pertencia a nenhuma das criadas. Hugo surgiu de repente, como um borrão, e deslizou para perto de Ariel. Suas caudas roçaram-se com o movimento.

— Ah! — Hugo enrubesceu. — Desculpe, quase te derrubei. Venha, Ariel! Estão todos te esperando! O espetáculo já vai começar.

— Obrigado, Hugo.

O tritão sorriu e, sem pestanejar, segurou a mão de Ariel.

— Venha aqui um minuto. Quero te dar uma coisa.

Ele puxou o príncipe para um dos quartos de hóspede. Ariel sabia que Hugo estivera dormindo ali nos últimos dias, uma gentileza especial do Rei Tritão, que ficara satisfeitíssimo ao descobrir que o filho tinha um amigo de sua idade.

— Espere aqui.

Hugo soltou sua mão e nadou até a penteadeira. Abriu uma das gavetas e remexeu seu conteúdo até encontrar o que queria. Reaproximou-se de Ariel com as mãos escondidas atrás das costas.

— O que é? — Ariel tentou espiar.

— Não, não! Shiu! Feche os olhos. É uma surpresa.

Ariel revirou os olhos, mas obedeceu. Sentiu as mãos de Hugo ao redor de seu pescoço. Um objeto pequenino pesou sobre seu peito.

— Taraaan! — fez Hugo, estendendo os braços. — Um colar de conchas! Uma concha, na verdade... Eu sempre gostei de colecioná-las. Fazia isso com minha mãe quando era criança. Lilly me disse que você gosta de roxo. Quando vi essa concha roxa, achei que você ia gostar.

Ainda surpreso com o gesto de Hugo, Ariel tocou a concha. Ela era pequena, mas muito bonita. O contraste do roxo em sua pele clara era nostálgico.

— Ficou lindo em você! Oh, eu sabia que ficaria muito bonito! — vangloriou-se Hugo. — Ninguém neste castelo poderá dizer que tem um colar tão legal quanto o seu. Espero que te dê sorte. Você sabe, hoje no musical. Ah, não que você precise, mas... — Ele emudeceu por um instante. — Tudo bem, Ariel? Parece pálido...

— O quê? — O príncipe balançou a cabeça. — Eu... eu estou bem...

— Vamos, então? — Hugo fitou-o com seus olhos verde-musgo.

Ariel assentiu.

— Vamos.

 

Um dueto não é um dueto se apenas um canta. Ariel libertava todos os seus sentimentos, permitindo que sua própria alma falasse por meio das palavras. Os súditos do reino ouviam em silêncio, respeitosos. Para Ariel, era como se eles não existissem. Tudo o que lhe importava estava perdido em lembranças.

— Acabou — murmurou baixinho ao fim da última nota.

Ele abaixou a cabeça. Teve um leve vislumbre de sua cauda, mas a concha roxa estava em primeiro plano. Ao seu redor, um clamor elevou-se lentamente. Começou como um sussurro, mas logo se tornou ensurdecedor. Era o som das palmas.

 

— Ariel! Ariel! — gritou Hugo, algumas horas depois, nadando a seu encontro. — Foi incrível! Foi lindo! Ah, pelos mares!

Ele não conseguiu frear a tempo e desabou sobre o príncipe. Afastou-se com o rosto vermelho e passou a mão por seus cachinhos rebeldes.

— Desculpe! Desculpe! Desculpe!

— Tudo bem, Hugo... — riu Ariel, alisando seus cabelos também. — E... obrigado. Fico feliz por você ter gostado da minha música.

— Ei, Ariel?

Ele o fitou com seus olhos verdes.

— A sua musa? Quem é?

Ariel mordeu o lábio. Balançou a cabeça.

— Ela se foi.

Hugo ficou em silêncio. Eles estavam sozinhos no corredor que levava ao quarto do príncipe. As irmãs de Ariel já estavam indo dormir àquela hora. O dia fora agitado para todos.

— Talvez ela nunca tenha existido.

Ariel franziu o cenho. Não compreendia as palavras de Hugo.

— Você tem um talento natural, Ariel — explicou-se Hugo. — Talvez sua inspiração estivesse dentro de você este tempo todo.

— Dentro de mim?

Ariel pensou sobre aquelas palavras. Ele sempre gostara de cantar. Desde que ouvira sua mãe cantando pela primeira vez. Desde que cantara com ela, desafinado, mas feliz. Ela sorrira para ele e afagara seus cabelos ruivos.

— A sua voz é tão cálida — dissera, e mais cálido ainda era o seu sorriso.

O príncipe suspirou.

— Acho que tem razão.

Ele fechou os olhos, lembrando-se de todas as vezes em que ensaiara escondido, de todas as vezes que cantara sozinho, sem ninguém que pudesse apreciá-lo. Sentiu um toque leve em seu rosto. Voltou a abrir os olhos.

Hugo sorria-lhe com um brilho verde-musgo.

— Você se lembra — sussurrou — do que dizem sobre a canção das sereias?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Pobres almas desafortunadas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.