Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 5
Arco 1 - Parte 4




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Sentado em uma caverna submersa, eu observava o contrato que Ariel assinara antes de subir à superfície. Não podia retornar ao meu covil, pois ele estava sendo vigiado pelos guardas do Rei Tritão. Com um suspiro, enfeiticei um peixe para que ele levasse uma mensagem a meu inimigo. Quando o pobre ser me deixou, olhei para trás e vi a pequena planta quieta no frasco em que eu a prendera. Ela não emitia uma só lamúria.

 

O Rei Tritão concordou em me encontrar a sós. Ele mandou esvaziar meu covil e me encontrou sozinho no pequeno salão de entrada. Eu me sentei de frente para ele e depositei o frasco com a alma de Ariel na mesa que havia entre nós. Em um primeiro momento, Tritão fitou o filho com desconfiança, mas logo o brilho do reconhecimento dominou seus olhos.

— Liberte-o, Daren, e ninguém sairá ferido.

— Temos um contrato, Tritão. Pretende mesmo passar por cima dele como fez com a minha mãe?

O rei suspirou, cansado.

— Sua mãe era uma bruxa perversa que se aproveitava da fraqueza dos outros. Mereceu o que teve.

— Eu faço o mesmo que ela. Mereço morrer também? — indaguei, estreitando os olhos em censura.

— Eu não quero feri-lo, Daren.

— Não me conte mentiras.

Ele alisou a barba. Parecia me examinar dos olhos às pontas de meus tentáculos. Pela primeira vez, seu olhar estava tão profundo quanto o de Ariel.

— Lilly disse-me que você teve todas as chances que poderia querer de se apossar da alma de meu filho. Por que só agora?

Cruzei os braços.

— Por que só agora? — Deixei escapar uma risada. — Porque eu queria a confiança dele. Porque eu queria esfregar na sua cara que tive algo que você nunca teria.

Tritão fitou-me com cautela. Pude perceber que ele segurava o tridente com força. Um movimento em falso e ele me dizimaria.

— E o que seria esse algo?

Abaixei os olhos para a alma de Ariel. Ela me encarou silenciosa.

— Compreensão. Eu o compreendi de uma forma que você jamais conseguiria. Dói, não dói?

Tritão fechou os olhos, exausto.

— Liberte-o, Daren. Eu lhe imploro.

Descruzei os braços. Fitei meu inimigo com toda a raiva que consegui reunir.

— Ele já é livre. Só você não consegue enxergar. O nosso contrato... — Ri sem humor. — É uma farsa... Ele já estava terminado antes de o prazo começar.

— O que quer dizer com isso? — Tritão franziu o cenho.

Abaixei o rosto. Não sentia qualquer desejo de explicar. Seria humilhante demais.

— Saia daí, Ariel — ordenei. — Volte para casa.

Ele fitou o pai por alguns segundos. E retomou a forma de tritão. Segurou-se na mesa para não cair e recolheu a cauda como podia para perto do corpo. Estava de costas para mim.

— Oi, pai.

Tritão encarava-o com assombro.

— Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui?

Eu me levantei. No mesmo instante, Tritão ergueu seu tridente, apontando-o para meu peito.

— Aonde pensa que vai? Não terminamos ainda.

— Terminamos, sim — rebati no mesmo tom. — Aí está o seu filho. Livre, seguro e são. Tente não perdê-lo outra vez. Agora, se me dá licença, gostaria que vocês se retirassem.

O rei dos mares encarou-me, hostil. Só recuou quando Ariel tocou seu braço, dizendo:

— Vamos embora, pai. Acabou.

Relutante, ele acompanhou o filho. Quando alcançaram a porta, Ariel olhou para mim, prensando os lábios. Seus cabelos ruivos flutuavam belos ao seu redor.

Eu sorri em resposta.

 

— Tolo. Como fui tolo — disse a mim mesmo enquanto lançava os feitiços em meu jardim. — Eu já devia ter imaginado. Eu deveria saber que não seria capaz... — Parei, encarando todos aqueles tritões e sereias que me fitavam encolhidos. Depois de passarem tanto tempo presos ao chão como plantas rasteiras, não tinham ideia de como reagir à liberdade. Irritei-me. — O que estão esperando?! São burros demais para entender que devem ir embora? Seus contratos foram cancelados! Deem o fora daqui!

Assustados, todos debandaram. Meu jardim ficou vazio. Eu olhei a meu redor, acostumando-me com a ideia de que nunca mais teria de ouvir as lamúrias daquelas pobres almas.

— E não voltem! — bradei para a escuridão. — Não voltem nunca mais!

 

Eu já imaginava que Ariel retornaria. Ele apareceu sem aviso, invadindo meu pequeno salão em silêncio. Mesmo sem saber, eu esperava por ele. Fiz um gesto para que se sentasse diante de mim, na mesma pedra em que sempre se sentava quando vinha me visitar.

— Dois meses, não é? — Ele disse com aquela voz cálida.

— Sim... Já faz algum tempo... — respondi, melancólico.

— Soube que parou com as poções e feitiços... — Ele brincava com os dedos enquanto falava. — E libertou todas as almas...

Esfreguei o rosto.

— Elas me irritavam. Lamuriavam o dia inteiro depois de você partir.

Ariel abaixou a cabeça, sereno.

— Meu pai cancelou o casamento. Achei que gostaria de saber. Eu não preciso mais fugir dele. Cibelle ficou um pouco triste, mas... Ela entendeu. É uma boa sereia....

Assenti, solene.

— Fico feliz por você.

— Daren... Eu posso me casar com quem eu quiser agora. Depois de tudo o que aconteceu, meu pai se deu conta de que tem muito medo de me perder. Ele até vai me deixar cantar no coral do reino!

— Mas... — murmurei, sentindo a melancolia em sua voz.

— Eu não estou feliz. Falta alguma coisa.

— O que falta, Ariel?

Ele me encarou com seus olhos verdes. A essa altura, eu já acreditava que passaria o resto de meus dias olhando para eles.

— A sua resposta.

Eu segurei sua mão por cima da mesa.

— Você já a tem.

Ariel esfregou o rosto pela última vez.

 

Desculpe, mainha. Eu não fui capaz de completar a vingança. Desculpe por quebrar a promessa. É que eu não posso mais mentir para mim mesmo. E é por isso que eu estou cantando com ele agora.

 

Ariel não queria se despedir de mim. Ele queria ficar e me fazer companhia. Veio com o mesmo discurso de antes de que não faria bagunça, de que arrumaria a própria cama, de que prepararia o jantar... Não deu certo. Eu tinha de partir, e ele sabia disso. Antes de ir embora, abraçou-me uma última vez, e seus cabelos ruivos dançaram diante de meus olhos.

— Perdoe-me por tudo — sussurrei, abraçando-o de volta.

Ele balançou a cabeça.

— No fundo, eu já sabia. Eu só estava bravo porque você foi um covarde e não admitiu que me ama. — Ariel afastou-se, suspirando. — Você foi muito estúpido.

— Você foi mais — respondi no mesmo tom. — Aceitou entrar no frasco mesmo sabendo que não era necessário.

Ele exibiu um sorriso travesso.

— Eu queria voltar para o mar. Sentia saudades de meu pai e de Lilly. Sentia saudades de casa. Sentia saudades de você...

Balancei a cabeça.

— Achei que estivesse bravo por eu tê-lo enganado.

— Só enganou a si mesmo, Daren.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Toquei o rosto de Ariel para dizer adeus. Ele segurou a minha mão.

— Para onde você vai amanhã? — perguntou, sereno.

— Para algum lugar. Descobrir o que pretendo fazer agora que tudo isto acabou. Descobrir quem eu sou... Descobrir o que quero... — Suspirei, erguendo o rosto. — Existe muito mais do que nós conhecemos, Ariel. Eu quero explorar este mundo. Quero encontrar meu lugar nele.

O silêncio retornou. Não havia nenhuma música, apenas os sentimentos que calávamos. De alguma forma, ele entendia. Acho que também estava procurando por seu lugar no mundo.

— Você voltará, Daren?

— Um dia, quem sabe.

Ele me fitou com aqueles olhos verdes. Parecia desconfiar do que eu estava dizendo.

— Eu estarei te esperando.

— Estará mesmo?

— Talvez. — Ele deu de ombros. — Algumas coisas mudam, outras, não. Se, quando você voltar, nós ainda formos apaixonados um pelo outro, eu gostaria de tentar de novo.

— Eu também gostaria — disse com sinceridade.

Ariel abriu um sorriso cálido como a sua voz, e eu reuni coragem suficiente para beijá-lo. Era estranho estar assim tão perto do filho de meu pior inimigo. Mas eu não via Ariel dessa forma. Há muito tempo eu não o via assim.

— Adeus — disse, abaixando o braço.

— Adeus. — Ele sussurrou, afastando-se de mim.

Eu fui embora. Peguei minha trouxa com as poções e os cadernos de feitiços e nadei o mais depressa que pude para longe dali. Enquanto me distanciava, ouvi aquela voz cantando. Sempre tão bela e serena, estava preenchida por um misto de tristeza e felicidade. Eu me perguntei se algum dia nós nos encontraríamos de novo. Se algum dia nós seríamos mais do que amigos. Estranhos amigos, mas amigos. Era irônico imaginar aquele jovem tritão como meu amante.

— Minha pequena musa... — murmurei.

Desculpe, querida mãe. Eu sempre fiz de tudo para manter as suas tradições, para levar adiante tudo o que você me ensinou. Mas, no fim das contas, parece que a única pobre alma desafortunada sou eu.


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