Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 2
Arco 1 - Parte 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/716862/chapter/2

Sentado em meu trono, eu observava o jardim. Plantas feitas de almas lamuriavam-se do triste destino que sofreram. Era uma canção fúnebre que eu apreciava com os olhos fechados. Após vinte anos, finalmente encontrara meu lugar neste mundo. Eu vivia sozinho nos rochedos submersos, preparando poções e feitiços para as pobres almas desafortunadas que me procuravam. Os pedidos eram sempre os mesmos. Amor, fortuna, beleza. Eu nunca deixava de me surpreender com a futilidade do povo do mar. Quando não estava atendendo os clientes, buscava abrigo na sala dos fundos, onde guardava os corais em homenagem à minha falecida mãe.

— Mainha querida — murmurava, olhando para o teto escuro sobre mim. — Sinto tanta saudade.

Os dias arrastavam-se melancólicos. Eu queria ir atrás de Tritão e vingar a morte daquela que eu mais amava. Acontece que eu tinha medo. Eu havia visto o poder daquele monstro. Não era páreo para ele. Um pária como eu jamais teria força sequer para causar arranhões no grande rei dos mares. Por isso eu vivia escondido, apenas esperando o momento em que a sorte me agraciaria com sua benção. Mal sabia eu que a sorte bateria à minha porta na forma de um tritão à flor da juventude.

— Olá? — Ele chamou, nadando por meu jardim. — Tem alguém aí? Pelos mares...

O tritão estancou, fitando amedrontado as pobres almas que choravam para ele. Seus cabelos ruivos flutuavam ao seu redor, e o verde de sua cauda era quase tão intenso quanto o de seus olhos.

— Ariel — sussurrou uma peixinha amarela que o circundava. — Estou com medo. Vamos voltar para casa.

— Mas aquelas enguias disseram que o bruxo do mar vive por aqui. Ele pode nos ajudar, Lilly.

— Mas Ariel! — rebateu Lilly com urgência. — Olhe só essas plantas esquisitas. Elas parecem... conscientes... Ariel, por favor! Vamos para casa!

— Não, Lilly — respondeu Ariel, resoluto. — Nós temos de seguir em frente. Vamos, venha comigo. Eu te protejo.

O tritão abriu um sorriso meigo, mas era visível que o medo gritava dentro dele. Um sorriso também surgiu em meu rosto, e ele não tinha nada de meiguice. Eu me deleitava observando aqueles dois da janela de meu quarto. Percebia em Ariel uma força que nunca vira antes, exceto por uma única vez... Sim. O filho do Rei Tritão nadava calmamente ao meu encontro.

 

— Olá? — chamou Ariel, adentrando meu humilde salão. — Com licença? Estou procurando o bruxo do mar. Ele está aqui?

Eu abandonei as sombras e fiz minha entrada triunfal. Ariel arrepiou-se de medo ao ver que eu tinha tentáculos negros no lugar de uma cauda e cabelos brancos que contrastavam com minha pele arroxeada. Tenho de admitir que o jovem tinha coragem. Muitos tritões e sereias mais velhos do que ele encolhiam-se diante de meu olhar.

— Ariel, meu caro. — Minha voz reverberou pelo pequeno salão enquanto eu estendia os braços. — Seja bem-vindo ao meu palácio!

Ele moveu a cabeça de um lado para o outro, examinando os rochedos com um olhar fascinando. Um pouco atrás dele, a peixinha Lilly tremia.

— Ariel — sussurrou. — Vamos voltar. É perigoso!

— Perigoso? — Eu me desloquei habilmente até eles e abri meu melhor sorriso. — Não há nada de perigoso aqui. A não ser que... — Fiz uma pausa e levei a mão ao peito. — Não estão falando de mim, estão?

Os dois amigos responderam em uníssono:

— Sim, você parece bem perigoso! Com licença, mas nós vamos embora!

— Não! De forma alguma, senhor... Senhor...

— Daren — respondi com um tom amável.

Ariel ergueu um pouco o rosto. Seus olhos verdes pareciam brilhar.

— Prazer em conhecê-lo, Daren.

— Diga-me, meu caro Ariel. — Eu pousei uma de minhas mãos em seu ombro. — O que te aflige?

Aqueles olhos foram coloridos pela tristeza. Ariel abaixou o rosto.

— Meu pai.

Eu respirei fundo.

— Conte. Conte-me tudo.

Ariel contou. Contou depositando em mim uma confiança digna da ingenuidade de alguém que não conhece os males do mundo. Disse que sua grande paixão era a música. Ariel vivia para cantar.

— Mas eu sou um tritão, e apenas as sereias podem cantar no coral do reino — concluiu, choroso.

— Isso é uma terrível e profunda lástima — lamentei, tocando seus ombros. — Por que tantos insistem em se colocar entre você e seu grande amor?

— Eu também não sei! — bradou Ariel, cerrando os punhos. — Às vezes eu tento cantar escondido. Sebastião, o conselheiro real, é bem compreensivo. Ele é meu cúmplice. Mas há limites para o que ele pode fazer. Ele não pode me colocar no coral do reino...

Eu movi a cabeça lentamente, examinando aquele rosto juvenil. Toquei seus cabelos ruivos com toda a leveza que podia e, ao falar, deixei que a compreensão transbordasse em minha voz.

— São todos tolos. São tolos por não te deixarem ser quem você é.

O jovem ergueu o rosto para mim. Os olhos verdes brilhavam.

— Cante, Ariel — sussurrei.

Ele cantou. Sentou-se em uma das rochas diante de meu trono e cantou com toda a sua voz. Até as almas no jardim pararam para escutar. Meu covil nunca estivera tão silencioso.

— Magnífico! — exclamei, erguendo os braços. — Divino! Ariel, você tem um talento incrível, imensurável! Como seu pai pode ser cego a isso?

Eu segurava suas delicadas mãos com as minhas. Ariel enrubesceu. Certamente, não estava acostumado a receber elogios.

— Obrigado, Daren.

— Ariel — grunhiu Lilly, a peixinha irritante —, vamos embora!

— Veio buscar ajuda, não? — sussurrei calidamente. — Diga-me, o que eu, Daren, posso fazer por você, minha pequena musa?

Ele abriu um imenso sorriso. Estava encantado com minhas palavras.

— Eu estava pensando que... — disse, tímido. — Se eu fosse uma sereia...

— Ariel! — exclamou Lilly. — Pelos mares, não, Ariel! Se o seu pai escuta isso... Oh, pelas barbas do Rei Tritão!

Olhei de soslaio para a peixinha irritante. Queria transformá-la em mais uma planta para meu jardim. Contudo, havia algo de conveniente em sua fala.

— Sua amiga tem razão — entoei, atraindo os olhos verdes para mim. — Eu jamais poderia realizar tamanha perfídia! Transformar você, um tritão tão perfeito, em uma sereia? — Balancei a cabeça com vigor. — Jamais! Daren apenas corrige os erros deste mundo. E você, Ariel... — sussurrei, tocando seu queixo de leve, erguendo seu rosto para mim. — Não é um erro.

Ele ficou em silêncio, observando-me. Seus olhos brilhavam; eles nunca se cansavam de brilhar. A boca abriu-se de leve, mas nenhuma palavra escapou. Foi Lilly quem me respondeu.

— Nós agradecemos muito a sua atenção, senhor bruxo do mar, mas precisamos ir embora.

— Sim. — Eu me afastei. —Por favor, sintam-se à vontade para voltarem quando quiserem.

— Sim, sim, obrigada, senhor bruxo do mar — respondeu Lilly, empurrando Ariel pela cintura. — Venha, vamos embora, Ariel. Falta pouco para o jantar.

Ele ficou em transe por alguns segundos antes de se virar para retornar ao castelo. Quando alcançou a porta, olhou para trás, olhou para mim. Seus cabelos ruivos flutuavam ao seu redor.

— Até logo.

Eu fiz uma profunda reverência.

— Até logo, minha pequena musa.

Eles partiram. Sozinho em meu covil, eu me permiti abrir um sorriso.

 

Não demorou muito para que Ariel retornasse. Ele sempre atravessava o jardim com uma expressão tristonha e confusa, chamando por mim com sua voz baixa e tímida. Quando entrava no meu salão, continuava suave, como as ondas que batem levemente nos rochedos da superfície, cantando solitárias.

— Seja bem-vindo, Ariel! — Eu cumprimentava com uma reverência. — Em que posso ajudá-lo hoje?

— Eu... — Ele esfregava as mãos, envergonhado. — Achei que poderia cantar para o senhor hoje, se não se importar.

Eu arregalava os olhos, fingindo surpresa.

— Ah, mas é claro. Seria um deleite!

E o sorriso de Ariel era tão branco quanto meus cabelos.

Ele cantava para mim, sempre tão cheio de calor e paixão. Parecia deslocado em meu covil escuro e frio. Eu apenas escutava com um sorriso no rosto, examinando desde seus cabelos ruivos até sua cauda verde e brilhante. Ariel sempre fechava os olhos quando cantava e só voltava a abri-los após a última nota.

— Bravo! — Eu exclamava, batendo palmas. — Bravíssimo! Divino como sempre, minha pequena musa.

E Ariel virava o rosto, mordendo os lábios.

Até que a maldita peixinha amarela começava a empurrá-lo pela cintura, insistindo para que retornassem ao castelo. Ela ainda desconfiava de mim e nunca ficava muito feliz quando Ariel decidia me visitar.

— Até logo, senhor Daren — dizia o jovem por cima do ombro antes de sair pela porta.

— Até logo, Ariel! — Eu respondia com entusiasmo.

Então, eu nadava para meu laboratório e continuava a preparar as poções, cantarolando baixinho.

 

Certa vez, Ariel apareceu sozinho em meu salão. Parecia triste, desanimado. Eu me aproximei com uma expressão preocupada e pus a mão em seu ombro.

— O que houve, minha pequena musa?

Ariel balançou a cabeça.

— Eu e a Lilly brigamos. Ela não quis vir comigo hoje.

— Ora, mas que lástima! Que terrível e profunda lástima! Venha, Ariel. Sente-se comigo. Cante um pouco para mim.

Ele se sentou, mas não cantou nenhuma música. Apenas olhou para baixo e moveu levemente a cauda. Eu prensei os lábios. Precisava pensar em algo. O sucesso de meu plano dependia da confiança daquele tritão ingênuo. Se eu ao menos pudesse...

— Meu pai arranjou uma noiva para mim. Uma sereia de outro reino.

— Ah, é mesmo? — perguntei, interessado, empurrando para ele um prato de aperitivos que deixara sobre a mesa entre nós. — Quer um pouco? Eu preparei hoje cedo.

Ariel meneou a cabeça.

— Estou sem fome, obrigado.

Ele ficou em silêncio, e eu me esforcei um pouco para pensar no que dizer. Lá fora, as almas estavam quietas. Elas sempre ficavam quietas quando Ariel me visitava.

— Ariel... — chamei em tom solene. — Você quer se casar com ela?

Ariel meneou a cabeça de novo, lutando contra as lágrimas. Cerrou os punhos, com força.

— Eu não a amo. Sequer a conheço. Eu não quero me casar.

Encarei-o. Sério.

— Talvez você só precise conhecê-la. Quem sabe não venha a amá-la?

— Não! — exclamou Ariel, abaixando a cabeça. — Você não entende? Eu não quero! Eu simplesmente não quero! Eu nunca vou amar aquela sereia!

Passei a mão por meus cabelos. Aquela era uma situação desconfortável, mas eu precisava agradar Ariel. Ele era a minha chave para atingir o Rei Tritão e vingar a morte de minha mãe.

— Como pode ter certeza, Ariel?

Ele esfregou o rosto antes de olhar para mim.

— Porque eu não gosto de sereias, Daren. Eu só gosto de música.

Quanta paciência exigia aquele jovem tritão! Lutei comigo mesmo para não suspirar.

— Só de música?

Desta vez, Ariel abaixou tanto a cabeça, que inclinou o corpo para frente. Eu tinha certeza de que seu nariz estava tocando sua cauda, mas tudo o que via era seus cabelos flutuando.

— E de outros tritões.

Mainha, tu não me preparaste para isso.

 

Naquela noite, eu caminhei sozinho pelo jardim, ouvindo o choro das almas que recolhera. Precisava de um plano, mas não conseguia imaginar nenhum. Se deixasse Ariel escapar, perderia minha única chance de derrotar o Rei Tritão. Eu já tinha a confiança de Ariel. Só faltava o contrato. Um contrato que Ariel não pudesse cumprir. Assim, o Rei Tritão viria a meu encontro. E, em troca da alma de seu filho, eu exigiria a alma dele.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Pobres almas desafortunadas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.