Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 15
Bônus: O sequestro de Hugo




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Ariel abriu os olhos de leve, tentando reter na memória as últimas notas da música, mas elas se esvaeceram como a areia deslizando por entre os dedos. Virou o rosto e encontrou aquele sorriso íntimo, o sorriso de Hugo. Ele estava debruçado sobre sua cama.

— Bom-dia, dorminhoco.

— Oh, não. Não. Isso é terrível. A ordem do mundo entrou em colapso. Você acordou antes de mim.

— Não seja dramático, Ariel. — Hugo ergueu-se. — Vamos. Hoje é o dia.

O príncipe espreguiçou-se. Ainda conservava as imagens oníricas em suas retinas. Buscou o colar de concha sob o travesseiro para colocá-lo no pescoço.

— Você preparou tudo?

— Está duvidando de mim? Vamos, vamos comer alguma coisa e chamar a Lilly.

Ariel ainda estava sonolento quando eles se sentaram à mesa do salão das refeições. Attina já desistira de controlar as irmãs, que começaram a falar ainda mais alto ao avistarem Hugo. Ele sorriu para elas e afagou os cabelos de Arista.

— Ai! Para! Vai bagunçar!

— Você nunca faz isso comigo — reclamou Andrina.

— Claro, porque seus cabelos são curtos, então não tem graça. Mas a Arista aqui merece uma retaliação, porque ela sempre puxa os meus cachinhos.

— Attina! O Hugo está sendo mal comigo!

— Eu não me intrometo — respondeu a mais velha, bebericando seu chá.

— Attina!

Alana riu baixinho, uma verdadeira raridade. Hugo sorriu para Ariel, que não correspondeu. Ele sabia que o dia seria cheio, mas estava sem um pingo de fome.

— Ei. — Hugo segurou sua mão. — Não se preocupe. Ficará tudo bem.

— Eu... Desculpe... Obrigado, Hugo.

Após terminarem de comer, eles se dirigiram ao saguão de entrada para esperar Lilly. Hugo cantarolava baixinho a música que Arista lhe ensinara. Ariel fitou-o de soslaio.

— Sabe, eu acho que você canta bem.

— Não vamos ter essa conversa de novo...

— Mas é verdade, Hugo. Você só tem vergonha.

— Eu não gosto, está bem?

Ficaram em silêncio. Ariel prensou os lábios, tentando imaginar como escapar do desconforto. Felizmente, Lilly sempre aparecia na hora certa.

— Cheguei! Cheguei! Cheguei! Oh, bolhinhas...

Ela não conseguiu parar a tempo e esbarrou em Hugo, que apenas deu risada. Lilly afastou-se rapidinho e começou a tagarelice.

— Desculpem, desculpem! Eu passei pelo Sebastião, que está completamente louco com suas obrigações, e ele ficou me fazendo um monte de perguntas e...

— Está tudo bem, Lilly. Nós sabemos como o Sebastião é chato.

— Hugo... — repreendeu Ariel.

— Mas ele é chato. Ou você vai me dizer que não concorda?

Ariel meneou a cabeça. Desde que seu pai viajara para o Reino Encantado a fim de discutir o possível casamento de Attina, Sebastião tomara para si o dever de manter o castelo na mais completa ordem. E ninguém gostava nem um pouco disso.

— Bom, estamos todos aqui, então já podemos ir embora — anunciou Hugo.

— Sim, sim! Estou ansiosa pela aventura.

— Ótimo. Vamos.

Hugo fez menção de nadar até a entrada, mas Ariel estava olhando para trás.

— Meninos? — chamou Adella, saindo de um dos corredores. Seus cabelos estavam presos em uma trança. — Vocês vão a algum lugar?

— Sim, estamos com pressa. Até logo — despediu-se Hugo, tomando um novo impulso.

— Nós vamos explorar a superfície — disse Ariel.

Hugo estancou, cerrando os punhos e os olhos. Atrás dele, o rosto de Adella iluminou-se.

— A superfície? Vocês vão mesmo explorar a superfície?! Isso é tão legal! Eu posso ir junto?

— Claro.

— Não! — exclamou Hugo. — Você não pode.

Adella franziu o cenho.

— Por que não?

— Porque... porque você é menina.

— E qual o problema disso? — Ela o encarou.

— É verdade, Hugo — ponderou Ariel. — Não há problema algum em a deixarmos ir.

— Claro que tem. A superfície é perigosa. Não é um lugar para meninas.

— A Lilly vai e ela também é menina.

— É diferente.

— É diferente por quê?

— Porque é diferente. A Lilly não vai fazer besteiras.

— Eu também não — insistiu Adella.

Ariel colocou-se entre os dois.

— Hugo, seja razoável. A Adella quer se divertir também. Deixe-a vir conosco. Nós podemos protegê-la.

— Obrigada, irmão, mas não preciso ser protegida. Eu tenho tanta competência para explorar a superfície quanto vocês. Por que está sendo tão mau, Hugo?

— Porque eu não quero ter de lidar com uma princesinha chorando quando ficar com medo.

— Hugo! — repreendeu Lilly.

 Adella cerrou os punhos e mordeu o lábio. Por um instante, Ariel pensou que ela fosse chorar.

— Ótimo! Já que deseja tanto fazer um clube só dos meninos, divirtam-se. — Ela se virou em um rompante para retornar ao quarto. — E seu dente está sujo! — vociferou por cima do ombro.

Ariel pensou em ir atrás dela, mas Lilly tocou seu braço e meneou a cabeça. Eles olharam para Hugo, que cutucava os dentes.

— O que é?

— Muito bom, Hugo. Muito bom.

— Ah, vamos, Ariel! Você queria mesmo que ela viesse conosco?

— Mas é claro que sim. Ela é minha irmã.

— Só iria atrapalhar.

— Ela já tem 22 anos, Hugo.

— Não importa. A superfície não é um lugar seguro para sereias. Venha, vamos logo, ou ficará tarde.

Ariel suspirou. Não valia a pena discutir. Depois pediria desculpas a Adella.

Hugo não mentira quando disse que conhecia a superfície. Ele levou Ariel a lugares incríveis e contou histórias fascinantes. Lilly sempre ouvia tudo com muita atenção, não se importando que Hugo recontasse os mesmos feitos várias vezes. Os três também exploraram navios naufragados e encontraram alguns tesouros. Era divertido.

— Venha. Quero lhe apresentar um amigo.

Eles nadaram até uma pequena ilha e se aproximaram de uns rochedos que formavam uma estrutura curvada. No topo, Ariel avistou um ninho.

— Sabidão! Sou eu, Hugo! Desça aqui. Quero lhe apresentar alguém.

Durante alguns minutos, não houve resposta. Então, Ariel avistou uma confusão de penas, e dois corpos caíram nas rochas mais baixas. Lilly apertou os olhos, sentindo a dor.

— Ora, mas que coisa — resmungou a gaivota, espanando a poeira das asas. — Esse ninho está com algum defeito.

Ela chacoalhou a pata até soltá-la da corda presa à pequena âncora. Inspirou fundo, estufou o peito e acenou contente para Hugo.

— Que surpresa ver você, rapaz! Há quanto tempo não me visita e... Oh! Vejo que trouxe um amigo.

Hugo exibiu um sorriso orgulhoso e empurrou Ariel para frente.

— Sabidão, este é Ariel. O Príncipe Ariel.

— Ariel? O filho do Rei Tritão? Mas que honra! — A gaivota fez uma mesura exagerada.

— Ariel, este é Sabidão. Ele me ensinou tudo o que há para se saber sobre os humanos. E esta... — Ele estendeu o braço. — É Lilly, minha melhor amiga.

— Me-melhor amiga? — Ela arfou de surpresa. — Oh, bolhinhas! Bolhinhas!

— É filha do Rei Tritão também?

— Não, seu louco! Lilly é só uma peixinha. É a melhor amiga de Ariel também.

— Mas que maravilhoso! Um trio de melhores amigos!

— É. Melhores amigos. — Hugo olhou de soslaio para Ariel com um sorrisinho zombeteiro.

— Sabidão, é um prazer conhecê-lo. Estou ansioso para ouvir suas lições.

— Que coincidência, meu garoto, pois eu estou ansioso para contá-las!

 

Os dias que se seguiram eram mágicos! Ariel pegava-se rindo o tempo todo. Adorava catar objetos perdidos nos destroços dos navios e levá-los para Sabidão. Pediu para que Aquata costurasse uma bolsa especial, sua bolsa de aventuras. Logo tinha sua própria coleção de peculiaridades, e as gêmeas faziam um escândalo para que ele as deixasse mexer em tudo.

— Essas coisas não são brinquedos, sabiam?

— Mas é claro que são. Elas são seus brinquedos, e seus brinquedos são nossos também — argumentou Arista.

— Não me lembro desse acordo.

— Ariel, você me dá aquela humana em miniatura? Ela é tão linda! Por favor, por favor, por favor — implorou Andrina.

— Pelos mares! Vocês são impossíveis!

As gêmeas pularam em cima de Ariel, fazendo cócegas em seu pescoço e em suas axilas. Ele se contorceu, rindo sem parar.

— Lilly, ajude-me!

— Está bem — disse a peixinha, e começou a fazer cócegas em sua cauda.

Ariel debateu-se até conseguir se desvencilhar delas. Rira até perder o fôlego. Ergueu o rosto para recuperar um pouco d’água e avistou Adella recostada na parede com uma expressão de desgosto.

— Adella — chamou, aproximando-se. — Não fique chateada.

— Chateada? Por quê? Só porque o seu namoradinho não quer que eu vá com vocês nas aventuras?

Ele ficou sério.

— Não fale do Hugo assim. Você sabe que ele não é...

— Um babaca?

As gêmeas levaram as mãos à boca.

— Ela disse a palavra com “b”!

— Adella... — disse Ariel em tom de aviso.

— Mas é verdade! Eu estou farta de vocês, meninos. Se me dão licença, vou ensaiar com a Attina!

Ela saiu do quarto batendo a cauda com força. Arista e Andrina trocaram olhares tristes.

— Não é sua culpa, Ariel. — Lilly tentou reconfortá-lo.

— Eu sinto que é...

Alana surgiu na entrada. Olhou ao redor para se certificar de que Hugo não estava por perto.

— Irmão, papai voltou de viagem ontem. Ele deseja falar com você.

— Obrigado, Alana. Eu estou indo, gêmeas. Não destruam minhas coisas.

— Está bem — elas disseram em uníssono.

Ariel seguiu para a Sala do Trono. Estava com um pouco de medo de conversar com o pai. Eles não dialogavam muito mesmo após o incidente com Daren.

— Pai? — chamou Ariel, dirigindo-se ao centro do cômodo. — O senhor queria me dizer alguma coisa?

— Filho.

Os olhos do Rei Tritão brilharam de forma triste. Fazia muito tempo que Ariel não via um brilho como aquele.

— Attina me contou que você e Hugo têm explorado a superfície com frequência. Isso é verdade?

Ariel prensou os lábios.

— Sim, pai.

— E vocês têm ido muito longe?

— Sim, pai — respondeu sem ousar encará-lo.

O Rei Tritão suspirou.

— Filho.

Ariel sentiu os lábios tremerem. Ergueu o rosto.

— Apenas prometa que vai se proteger. A superfície é perigosa. Tenha cuidado.

— Eu sei, pai. Não se preocupe. Eu e Hugo não nos aproximaremos dos humanos.

— Não façam isso em nenhuma circunstância! É uma ordem. — A expressão do rei tornou-se severa, mas a tristeza ainda estava ali. — Prometa-me, Ariel.

— Eu prometo, pai.

O Rei Tritão assentiu lentamente e alisou a barba.

— Pode ir. Deve estar cansado. Descanse um pouco.

— O senhor também, pai. Boa-noite.

Ariel virou-se para embora, mas o rei o chamou outra vez.

— Não esqueça... o que aconteceu com sua mãe.

Os olhos verdes de Ariel arregalaram-se. A ferida ainda doía. Doía como se fosse recente. Ou como se tivesse sido aberta naquele momento, por aquelas palavras. Ele não conseguiu falar. Apenas confirmou que entendera. E, no curto espaço de alguns segundos, Ariel compreendeu o que quase esquecera. O brilho era de amor.

 

— Eu não acredito no que estou vendo — murmurou Sabidão. — Sim, faz anos que não vejo... É uma bruguzumba!

Ariel franziu o cenho.

— Um brugu... O quê?

— Uma bru-gu-zum-ba. Os humanos usam esta belezura aqui para pentear os cabelos.

Sabidão aproximou-se de Hugo e enrolou os dentes do garfo em um de seus cachinhos. Puxou com um pouco de força.

— Ai! Isso dói.

— Maravilhoso, Ariel. Maravilhoso! Guarde-a bem.

— Guardarei, Sabidão. Obrigado!

Hugo ainda fazia uma careta emburrada quando retornaram ao fundo do mar, mas todo o mau humor sumiu diante do sorriso luminoso de Ariel.

— Minha própria bruguzumba... Viu? Eu disse que era valioso quando encontramos naquele navio, mas você disse: não, isso é besteira, Ariel, nem brilha direito!

— Desculpe se não sou especialista em invenções humanas. Então, o que pretende fazer com isso?

— Não sei... — Ariel girou o objeto em suas mãos. — Talvez guardá-lo sempre comigo, como um segundo amuleto.

Hugo pensou um pouco. Estalou os dedos.

— Já sei!

Ele arrancou algumas algas ali perto e ergueu levemente o braço de Ariel. Trançou-as com rapidez e destreza, formando um bracelete. Pegou a bruguzumba com cuidado e a encaixou em uma pequena fenda.

— Pronto! Agora você poderá nadar para onde quiser com a bruguzumba.

Os olhos de Arie arregalaram-se.

— Hugo, isso é maravilhoso! Eu adorei a ideia! Obrigado!

— Não há de...

Hugo emudeceu. Ariel jogara-se em seus braços. E os cabelos dele tinham um cheiro delicioso.

— Eu tenho muita sorte de conhecer você — murmurou Ariel.

O mundo parou de repente. Hugo não ouvia mais nada e a única cor era o vermelho dos cabelos dançando diante de seus olhos. Ele retribuiu o abraço.

— Não, Ariel. Eu é que tenho sorte.

 

xx

 

Fazia mais de um ano que eles exploravam a superfície. Ariel às vezes não acreditava em tudo o que se passara. Um mundo inteiro abrira-se para ele com possibilidades inimagináveis. Mas sentia saudades de Hugo. O tritão acabara de retornar de uma viagem ao Reino das Baleias. Em circunstâncias normais, Ariel invadiria sua casa para lhe dar um abraço de boas-vindas. Aquelas não eram circunstâncias normais. Antes de Hugo ir embora, eles haviam brigado.

— Não fique assim, Ariel. Não foi culpa sua — consolou Lilly.

— Eu sei que não foi, mas... Eu me sinto mal mesmo assim, Lilly. Já sabia que o Hugo ficaria chateado. Só que... parecia tão certo!

Eles estavam n’O Cemitério. Ariel recolhera-se em meio a um conjunto de pedras, e Lilly nadava de um lado para o outro sem saber o que dizer.

— Bolhinhas... Essa história de amor é mesmo algo complicado! Mas você não pode ficar desse jeito, Ariel. O Hugo está sendo um bobo, um grande bobo! Ele precisa entender.

— Eu sei. Eu sei. — Ariel prensou os lábios. — Seria tão mais simples se o Leon não tivesse dito aquelas coisas...

Lilly balançou a cauda com vigor.

— Ah, aquele tritão era muito atrevido! Era, sim! Eu disse a você que aquela boquinha ia nos colocar em apuros.

— É. — Ariel sorriu. — Mas o Hugo também tem uma língua bem afiada. Tenho medo do que ele vai dizer quando nos reencontrarmos.

— O Hugo vai te perdoar, Ariel. Não que haja muito o que perdoar, porque a culpa definitivamente não foi sua, mas... — Os olhos dela tornaram-se tênues. — O Hugo ama você.

Ariel ficou em silêncio. Calou-se por tanto tempo, que as palavras quase se perderam na água. Como se despertasse de um transe, fechou os olhos e suspirou.

— Eu sei, Lilly. É disso que eu tenho medo.

 

A senhora Runa abriu um sorriso encantador ao avistar Ariel e Lilly. Abraçou-os como se fossem seus filhos e encheu seus rostos de beijos.

— Que saudades senti de vocês!

— Também sentimos saudades, senhora Runa! — exclamou Lilly.

— Fazia muito tempo que eu não sentia meus arredores em tão perfeita paz. Foi um tédio absoluto.

Ariel gargalhou.

— Senhora Runa, a senhora é hilária.

Ela apertou sua bochecha.

— O Hugo está?

Os olhos dela faiscaram.

— Sim... Ele está no quarto desde ontem. Não saiu nem para comer.

— Entendo. Bom, acho que voltarei mais tarde, então.

— Ah, nada disso, mocinho. Você veio até aqui conversar com meu filho, então vai conversar com o meu filho.

— O quê? Ei, espere.

Runa segurou Ariel pelo braço e o arrastou pela casa. Era incrivelmente forte para uma sereia que passara tantos anos na forma de uma planta. Havia cicatrizes em suas costas das quais Ariel não ousava falar.

— Hugo! Hugo, acorde, seu preguiçoso. Temos visitas — anunciou Runa, praticamente empurrando Ariel para dentro do quarto.

— Mãe, eu já disse que... — resmungou Hugo, revirando-se na cama. Seu olhar encontrou Ariel. — Ah... Você veio.

— Não o cumprimente com esse “você veio” monótono. Ariel está preocupado com você. Trate de conversar com ele como um tritão!

— Não quero. — Hugo virou-lhe as costas.

— Não seja criança, Hugo. — Runa pôs as mãos na cintura. — Eu ordeno que vocês façam as pazes.

— A senhora não pode mandar em mim. Eu tenho 23 anos!

— E ainda não faz sua própria comida. Levante sua cauda daí, menino.

Hugo jogou os travesseiros para longe, bufando. Aproximou-se de Ariel e de Runa. Lilly escondia-se atrás deles.

— Não quero fazer as pazes com você.

Runa deu-lhe um pescotapa.

— Ai! Mãe! Isso dói!

— Senhora Runa, isso não é realmente necessário — interveio Ariel. — Nós podemos nos entender sozinhos.

— Ótimo — disse Runa, cruzando os braços.

Eles olharam para ela com expectativa, mas Runa não deixou o cômodo.

— Estou esperando.

Hugo inspirou fundo.

— Está bem! Desculpe ter sido teimoso. Foi... infantil da minha parte. — Ele mordeu o lábio. Cada palavra custava muito. — Eu... estou feliz por você ter vindo.

Os olhos de Ariel brilharam.

— Hugo, obrigado. Eu também estou...

— Que pedido de desculpas mixuruca, filho. Faça isso direito.

— Mãe! — Hugo enrubesceu.

— Eu te mostro. Veja. Ariel... — Ela se virou para o príncipe. — Eu fui um completo idiota. Não mereço uma amizade como a sua. Por favor, perdoe a minha insensatez. Prometo melhorar. Confie na minha capacidade.

— Mãe! — Hugo estava mais vermelho que as caudas das gêmeas. Empurrou Runa para fora do quarto.

— Espere, eu ainda não terminei. Repita comigo: eu sei que sou meio burro, mas juro que aprenderei com meus erros...

— Até logo, mãe!

Hugo empurrou-a até a entrada da cozinha — a pobre Lilly foi junto — e retornou ao quarto sem saber onde esconder o rosto. Ariel estava quase tão vermelho quanto ele.

— Olha, Ariel...

— Escute, Hugo...

Eles trocaram olhares. E desataram a rir.

— Eu achei que fosse morrer de vergonha! — exclamou Hugo, cobrindo o rosto. — A minha mãe não tem noção das coisas...

— Eu acho que nunca fiquei tão nervoso. — Ariel riu. — Ela estava mesmo falando sério.

— A minha mãe é louca! Você não viu o que ela me fez passar nessa viagem. Espero nunca mais voltar àquele lugar... É, sério, Ariel, você não sabe do que a minha mãe é capaz.

Ariel passou a mão pelos cabelos, tentando recuperar o fôlego. Os olhos verdes de Hugo encontraram os seus. Qualquer clima de hostilidade ou estranhamento desaparecera por completo.

— Ei, eu... Queria pedir desculpas pelas coisas que eu disse... antes de viajar... Minha mãe tem razão. Eu fui mesmo um idiota.

— Tudo bem, Hugo. Eu peço desculpas também. Mesmo que o Leon não tivesse dito aquilo tudo por mal, eu deveria ter...

— Ei. — Hugo tomou suas mãos. — Esqueça isso, está bem? Estamos juntos de novo, e é só isso que importa.

— Hugo...

Ariel umedeceu os lábios.

— Eu não quero ter essa conversa de novo.

Hugo abaixou os ombros e soltou suas mãos. Os olhos verdes pareciam opacos.

— Eu amo você, Ariel.

A voz ficou presa na garganta.

— Eu... Hugo, você sabe que eu também amo você, mas...

Hugo balançou a cabeça.

— Não precisa de “mas”.

Ele tomou suas mãos outra vez, e os olhos verdes estavam densos como sempre ficavam quando encarava Ariel. Seus lábios moveram-se devagar, sussurrando uma música antiga. E Ariel percebeu-se hipnotizado pela voz.

— Você é a minha musa, Ariel.

Os outros olhos verdes arregalaram-se. E de repente só havia os dois. Sozinhos em uma caverna.

— Eu fiz bolinhos de algas! — gritou Runa da cozinha.

— Meninos, venham almoçar! — entoou Lilly.

Hugo soltou as mãos de Ariel como se tivesse tomado um choque de água-viva. Nadou para fora do quarto sem olhar para trás. E Runa precisou gritar mais duas vezes antes de Ariel se lembrar de se mexer.

 

xx

 

Ariel mordeu o lábio. Hugo estava mais arisco desde a fatídica tarde. Fingia conversar normalmente, mas o brilho estranho ainda estava ali, no fundo de seus olhos. E não era um brilho de amor. Na maior parte do tempo, tagarelava sobre futilidades, nunca dando muito espaço para Ariel pensar. Lilly tentava controlá-lo, mas Hugo a interrompia como se não estivesse ouvindo.

— Eu quero chegar perto do reino dos humanos.

— Hugo, não! — respondeu Ariel com alarde. — É perigoso! Eles podem nos matar.

— Tolice. Somos mais espertos do que eles. Somos melhores. Além disso, Sabidão nos ensinou tudo o que precisamos saber.

— Não seja incauto, Hugo. Você conhece as histórias. Você sabe o que eles fizeram com a minha mãe. Por favor, tire essa ideia insana da cabeça.

— Está bem, está bem! — esbravejou Hugo. — Faremos do seu jeito, então.

Ariel franziu o cenho.

— Eu não gosto da sua atitude, sabia? Sua mãe tem razão. Você reclama que ela te trata como criança, mas você só sabe se comportar como criança. Você é melhor que isso, Hugo.

Eles se encararam. Lilly abaixou o olhar, temerosa.

— Você tem razão — anunciou Hugo, por fim. — Desculpe. Desculpe! Eu só... — Ele balançou a cabeça. — Eu estou tentando...

As lágrimas escorreram por seu rosto. Ariel sentiu o coração apertar.

— Eu sei. Vamos para casa, Hugo. Está ficando tarde. Você precisa descansar.

 

Os olhos de Ariel brilhavam de fascínio e terror. O casco do navio era como um monstro distante. Seduzia, mas também afastava. E ele sentia o corpo tremer.

— Humanos — sussurrou Hugo. — Tão perto de nós. Vamos!

Ele deu um impulso com a cauda, mas Ariel segurou seu braço.

— Hugo, ficou louco? Você está indo em direção ao navio!

— O que tem de mais? — Hugo sorriu. — Vamos, Ariel. É a nossa chance.

— É a nossa chance de fugir. Vamos embora, Hugo.

— Ariel. — Ele se desvencilhou. — Não foi você mesmo que me disse uma vez que seguiu um navio?

— Era diferente! Estava de noite, Hugo, e os humanos estavam dançando e cantando. Esses aí estão em silêncio. Parece que são... — Outro tremor. — Pescadores.

— É só tomarmos cuidado. Eles não vão nos pegar. Veja, eu vou tocar no casco!

— Hugo!

Ariel segurou seu braço outra vez e o puxou para perto de si.

— Isso é loucura! Por favor, não cometa esse erro. Vamos embora.

— Não seja frouxo, Ariel. Não tem perigo nenhum. Nós vamos até lá, tocamos o casco e voltamos. Imagine só que história fantástica! A Adella vai morrer de inveja.

— Isso não tem graça, Hugo. Por favor, vamos embora.

Os olhos de Hugo tornaram-se sombrios.

— Está bem. Eu vou sozinho.

— Hugo!

Ariel olhou ao seu redor, desesperado pela ajuda de Lilly. Mas Lilly não viera desta vez. Ficara no castelo, conversando com Attina. Ela prometera alcançá-los mais tarde.

— Hugo — sussurrou com urgência.

O outro se afastava cada vez mais. Seus olhos verde-musgo dilatavam-se de prazer. Um navio de humanos. Um navio de verdade. Se ele pudesse tocá-lo, seria o tritão mais corajoso de toda Atlantica! E Ariel teria orgulho dele.

— Nossa — arfou Hugo, sentindo os dedos tocarem a madeira. A sensação era incrível. Dezenas de vezes melhor do que jamais sonhara. Ele estava em êxtase. — Ariel tem se sentir isso. Ariel...

Ele olhou para baixo e avistou Ariel escondido entre as algas. Suspirou.

“Não tem jeito. Ele é mesmo um covarde...” pensou.

Hugo permitiu-se um toque derradeiro no casco e começou a nadar de volta para Ariel. Apesar de tudo, sorria. Estava feliz. Estava orgulhoso de si. Mas não previu a confusão de peixes que o arrematou com tanta rapidez, não conseguiu pensar enquanto seu corpo girava e era lançado de um lado para o outro. Ele fechou os olhos, tentando se proteger com os braços, mas os peixes estavam apertando o cerco. E Hugo sentiu o coração pulsar.

— Hugo! — exclamou Ariel, mas sua voz estava a quilômetros de distância. — Hugo!

— Ariel! — Ele bateu a cauda com força, tentando fugir daquele cardume que gritava de pavor. — Ariel, o que está acontecendo?

Finalmente vislumbrou o azul da água. Estendeu o braço, mas seu corpo encontrou a resistência de uma corda. Ele se debateu.

— Ariel!

— Hugo, acalme-se!

— O que está acontecendo?! O que eles fizeram comigo?!

— Você está preso.

Hugo abriu os olhos. Não percebera que eles estavam fechados. Apertou os dedos, sentindo a rede em suas mãos. Estremeceu.

— Não... Não... Não... — balbuciou sem parar. — Ariel. Ariel! Me tire daqui!

Ariel golpeava a rede com a bruguzumba, mas as cordas não cederam um milímetro.

— Me tire daqui! Me tire daqui!

— Eu estou tentando!

Ariel ergueu o rosto. Ele estava tão branco. Os olhos verdes arregalados. Hugo viu seu reflexo neles e se assustou ao perceber que estava branco também. A razão uniu-se à loucura. Ele entendeu. Entendeu o sentimento que o dominava. Hugo estava com medo.

— Por favor, por favor, eu imploro!

Ariel largou a bruguzumba e puxou as cordas. Fazia tanta força, que os nós dos dedos ficaram brancos.

— Por favor!

Ariel afastou-se de súbito. Olhou para cima com o mais puro horror e nadou para longe. Hugo estendeu o braço, gritando. Os homens estavam puxando a rede.

— Por favor! Por favor! Me tire daqui! Ariel! Por favor, me tire... Por favor... mamãe... não vá embora...

Hugo sentiu o medo despedaçar. Não cabia mais nada dentro dele. Estava preso no mesmo torpor que assombrara sua infância. Ele observou sem reação enquanto Ariel se tornava menor e menor. E alcançou a superfície.

Ariel estava petrificado. Não acreditava no que acontecera. Hugo estava bem ali. Bem ali. Como podia ter desaparecido em tão pouco tempo? Ele sentiu a dor em seu peito e nadou para a superfície. Escondeu-se atrás de algumas pedras. Os pescadores exclamaram ao puxar a rede. Haviam encontrado Hugo.

— Eu tenho de salvá-lo — murmurou para si. — Eu preciso!

Ele esperou uma chance, mas já sabia que ela não existiria. Seguiu o navio de longe. Seguiu-o por um dia inteiro. Estava exausto quando alcançaram a costa. Não se encantou. Não havia nada mágico no cais, ou na praia, ou no imenso castelo aos pés da colina. Os olhos de Ariel pertenciam a Hugo, que era cruelmente atirado em um pequeno barco. Ele gritava por socorro.

Ariel aproximou-se o quanto podia, sempre se escondendo atrás das pedras. Viu os pescadores se debruçarem por cima de Hugo para impedi-lo de virar o barco. Não demorou muito para que chegassem à praia. Os homens ergueram a rede e conduziram Hugo até a areia.

Não havia mais esperanças. Hugo morreria em breve. Sua voz já não tinha o mesmo vigor. Quase não era mais uma súplica. Não passava de um lamento. Ariel sentiu o peso de uma vida em seu peito. Acreditou do fundo de sua alma que não restara alternativa senão observar Hugo morrer. E ele prometeu não desviar os olhos.

 

Um pedaço de Ariel estava morrendo. O pedaço que pertencia a Hugo. Ele ouvia os berros dos homens, mas eram um ruído sem sentido. Em meio às trevas, reconheceu a voz. Seus olhos estremeceram. A pele estava diferente. O rosto estava diferente. E as pernas... Mas ele reconheceria aquela voz nos confins de seus maiores pesadelos. Daren aproximava-se dos pescadores.


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Notas finais do capítulo

Este foi o primeiro capítulo em que eu me senti verdadeiramente próxima do Hugo. Ele surgiu como um personagem secundário que aos poucos foi roubando cena até se tornar um dos principais. Hoje já não me é mais possível imaginar esta história sem ele.

Espero que não tenham se decepcionado por o último capítulo do ano ser um bônus. Queria ter postado mais, só que minha última prova foi às vésperas do Natal, e quis aproveitar essas semanas para arrumar o quarto, colocar as leituras em dia e passar um tempo com a família e o boy. Comecei a jogar um RPG muito legal chamado Fantasy Life. Os dedos já estão coçando para escrever uma fic baseada nesse jogo. Mas já tenho muitas coisas para escrever, a começar pela terceira temporada de “Pobres almas”. Sim, sim. Ainda teremos muitas aventuras pela frente. Até logo, pessoal. Feliz Ano Novo para vocês!



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