Pobres almas desafortunadas escrita por Jude Melody


Capítulo 10
Arco 2 - Parte 7




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Elliot corria esbaforido atrás de mim. Eu quase não via a cidade ao meu redor, quase não sentia as pessoas em que esbarrava. Pensava apenas na praia, até que ela preencheu minha visão. Na areia, a poucos metros das ondas, um pequeno grupo de homens lutava contra uma rede de pesca. Por entre seus braços, tive o vislumbre de uma cauda verde.

— Ei, o que estão fazendo? — bradei, correndo pela areia. — O que pensam que estão fazendo?

As batidas em meu peito estavam aceleradas. Eu empurrei um dos pescadores para o lado, ansioso, temeroso. Arregalei os olhos para aquele tritão que me encarava, o mais puro horror brilhando em seus olhos verde-musgo.

Não era Ariel.

— Senhor Daren, veja só o que nós fisgamos! — exclamou um dos pescadores, sorrindo com orgulho. — É só uma pena que não seja uma sereia, não?

O pobre tritão se debateu, lutando contra a rede que o envolvia. A corda roçava em sua pele, ferindo as mãos e a cauda. Ele gritava em uma língua que só eu compreendia.

Me soltem! Me deixem em paz!

— Vocês por acaso são idiotas? — rosnei, dando um tapa na nuca do homem mais próximo. Ele largou a rede para esfregar a cabeça. — Vão matá-lo assim. É um bendito tritão, pelos céus! Fora da água, morrerá em pouco tempo!

Eu queria que eles o devolvessem ao mar. O pobrezinho chorava, revirando-se violentamente, usando toda a sua força para atingir os homens hostis com sua cauda. Eu observava, enfeitiçado. Queria salvá-lo, mas simplesmente não podia me entregar assim... Não sem antes encontrar a Erika.

— Escutem o senhor Daren — pediu o moleque, espremendo-se ao meu lado. — Ele não... — Seus olhos cinzentos arregalaram-se. — Uou... incrível...

O tritão parou de lutar. Encarou Elliot por um breve segundo, como se implorasse a ele. Seus lábios se moveram.

Socorro.

— O que foi que ele disse? — Elliot virou o rosto. — Que língua é essa?

— Criaturas do mar não entendem a língua humana — expliquei-lhe. — Ele não faz ideia do que estamos falando. Está assustado. Certamente acha que vai morrer.

Talvez morresse. Ele definhava aos poucos nos braços daqueles desconhecidos. Os olhos verdes começavam a se fechar. Eu tinha de fazer alguma coisa, tinha de agir logo. Ah, desgraça! Tudo bem! Era hora de acabar com o disfarce. Cerrei os punhos, preparado para desferir alguns socos e fugir.

— Deixem-no em paz!

Os homens ergueram os rostos, esquecendo-se do tritão por um instante. Eu os imitei. Olhei assombrado para a garota que corria pela areia.

— Soltem-no agora! — ordenava Erika com uma vozinha esganiçada.

Atrás dela, Grimsby tropeçava. Ele era o conselheiro real e — ela detestava admitir — o supervisor de Erika. Sua função era mantê-la em segurança nos arredores do castelo. Pelo visto, não a exercera muito bem. A princesa corria, levantando o vestido para que seus pés não enroscassem na renda. Seus cabelos negros estavam um caos.

— Devolvam essa pobre criatura ao mar. — Erika estancou a poucos passos de nós. — Imediatamente.

— Vossa Alteza! — arfou Grimsby, tocando seu ombro. — Tenha um pouco de bom senso! Uma dama como a senhorita não deveria jamais...

— Cale a boca, Grimsby. — E ainda me perguntam por que eu amo essa garota! — Eu mandei soltar o tritão. Vocês não ouviram?

Os olhos dela queimavam, queimavam cada um que estava ali. Os pescadores soltaram a rede, sentindo-se culpados. Deixaram o corpo inerte de sua presa cair na areia. Apenas Elliot continuava olhando para ele com um ar maravilhado.

— Eu disse imediatamente — prosseguiu Erika. — Ou darei ordem de prisão a todos vocês.

Houve uma comoção. Os homens lutavam entre si para soltar a pobre criatura e devolvê-la ao mar. Apenas nesse momento Elliot se deu conta de que a princesa estava por perto, e seu objeto de admiração passou a ser ela.

— Vossa Alteza... — murmurou Grimsby, tremendo. — O seu pai...

— Na ausência dele, eu dou as ordens, Grimsby. — Ela respondeu com uma autoridade que eu nunca tinha visto antes.

— Então, minha cara Princesa Erika, creio que seja o momento de dispensá-la.

Virei o rosto, buscando a origem daquela voz. Henrique parou ao lado de Grimsby e alisou seu bigode.

— Trago ordens do rei.

Erika mordeu o lábio inferior.

— E quais são elas, capitão? — indagou, pronunciando a última palavra com desprezo.

Henrique ignorou.

— O Rei James deseja que o tritão seja levado a seu encontro. Neste exato momento, a Guarda Real está providenciando uma banheira para o transporte.

— Uma banheira, Henrique? — Erika voltou-se para ele. Tenho de admitir que ela tinha muita garra. Mesmo baixinha, sustentava seu olhar. — É o melhor que podem fazer?

Ele a encarou de cima. Pude perceber que os sentimentos eram mútuos.

— Não poderíamos transportá-lo em uma caixa, não é mesmo? — Voltou-se para os pescadores. — Vocês ouviram, homens! — Henrique aguardou enquanto suas ordens eram cumpridas. Sua pose era impassível. — E quanto à senhorita, Vossa Alteza, creio que esteja na hora de retornar a seus aposentos.

O desprezo dela se refletiu em meus olhos.

— Vai pagar por isso, Henrique.

Era apenas um sussurro, mas eu escutei. Ele arqueou as sobrancelhas, descrente.

— Vou pagar por cumprir as ordens de seu pai? Não me faça rir.

A banheira não tardou a chegar. Os pescadores encheram-na com água do mar e jogaram o tritão ali dentro. Ele se mexeu ligeiramente. Com um movimento sincronizado, os homens ergueram-na e seguiram até o castelo, acompanhados de perto por Henrique.

— Princesa... — murmurou Grimsby, receoso. — Se me permite...

— Vá embora, Grimsby.

O pobre conselheiro encolheu-se diante da agressividade.

— A senhorita precisa retornar ao castelo. O Rei James...

Ela ainda mordia os lábios, frustrada. Elliot pareceu despertar de um transe.

— Eu a acompanho!

Erika olhou de soslaio para ele. A contragosto, permitiu que ele a acompanhasse até o castelo. Eu desejei com todas as forças que ele tivesse um pingo de sensibilidade, mas o moleque desatou a falar sobre o bendito tritão, ressaltando todos os detalhes.

— Ele parecia bem apavorado mesmo. Fiquei surpreso por ele ter cachinhos. Você viu? Estavam meio nojentos por causa da água e da areia, mas sem dúvida eram cachinhos.

A voz distanciou-se aos poucos. Na praia, só restamos eu e Grimsby. Até que Grimsby decidiu seguir a princesa, e eu fiquei sozinho. O sol se punha. Arrasado, lancei meu olhar ao horizonte. Pisquei duas vezes. Podia jurar ter visto um bater de cauda.

 

O tritão já havia sido levado quando eu finalmente recebi permissão para adentrar a Sala do Trono. Henrique estava parado em posição de descanso diante do rei e da rainha, que conversavam em voz baixa com Grimsby. Em um terceiro trono, mais baixo que os outros dois, Erika fazia uma careta emburrada. Ela me lançou um olhar cheio de súplica.

— Majestade — chamei educadamente.

— Meu caro Daren! Estávamos esperando você! — O Rei James abriu um sorriso luminoso. — Viu o tritão?

— Sim, eu vi, Majestade. Era justamente sobre isso que...

— Não é fabuloso? — Ele balançou a cabeleira negra, exultante como uma criança que acaba de ganhar um brinquedo novo. — Quantos outros reis podem dizer, como eu, que possuem um jovem tritão? Um tritão! Eu sabia que as histórias que minha querida mãe contava eram verdadeiras!

— Majestade... — tentei outra vez.

— Essa notícia se espalhará pelo mundo! — profetizou o rei, erguendo o dedo em riste. — Rei James, o capturador de tritões! O que acha, Capitão Henrique?

Henrique sorriu.

— Divino, Vossa Majestade.

— Vão construir uma estátua minha no centro da cidade! Rei James e seu tritão! Uma mascote muito mais interessante do que aquele cachorro babão, se querem saber...

— Querido — chamou a rainha com delicadeza. — Creio que o senhor Daren esteja tentando nos dizer algo.

O Rei James engasgou, envergonhado. Só então ele olhou de verdade para mim.

— Oh, sim, claro. — Pigarreou. — Pois não, senhor Daren?

Tive de conter um suspiro.

— Majestade, temo que não seja uma decisão sábia manter o tritão como nosso prisioneiro.

James voltou-se para mim com uma expressão levemente confusa. Parecia uma criança que não entendeu se ganhará ou não o brinquedo que tanto deseja.

— As criaturas do mar costumam ser amistosas, mas se mostram bastante ferozes quando um dos seus é ferido. Se mantivermos o tritão aqui, seremos caçados.

É claro que metade do que eu disse era mentira. Eu tinha sérias dúvidas de que o Rei Tritão mandaria suas tropas à superfície para resgatar aquele pobre jovem. Afinal, ele não buscou vingança quando a vítima foi sua esposa.

— Além disso — prossegui —, se o tritão for mantido fora da água, ele certamente irá morrer.

Os olhos do rei arregalaram-se.

— Pelos céus! Ouviu isso, querida? Nós precisamos providenciar uma prisão com água imediatamente!

Eu quase engasguei. Aquilo só poderia ser brincadeira! Até mesmo Erika olhou para o pai como se ele fosse louco.

— Se me permite, Majestade — disse Henrique, sempre com o mesmo tom de voz irritantemente calmo —, esse problema já foi resolvido. A pequena torre sobre as colunas de pedra possui um chafariz que podemos transformar em uma piscina em poucos dias. É um bom lugar para manter o tritão enquanto decidimos o que fazer com ele.

— Excelente ideia, capitão! Grimsby, quero que você comande a obra. Precisamos de uma piscina para o tritão imediatamente! Tem minha permissão para iniciar os trabalhos hoje mesmo.

— Sim, Majestade! — exclamou o conselheiro, fazendo uma mesura e deixando a sala logo em seguida.

Fiquei parado, estarrecido com o absurdo daquela situação. Pelos mares! Estávamos falando de uma vida! Estávamos falando de um jovem assustado que fora conduzido ao cativeiro por conta de um capricho! Cerrei os punhos, a raiva subindo meu peito. Tenho quase certeza de que a concha mágica começou a brilhar.

— Você só pode estar de brincadeira!

Olhei para o lado. Erika estava de pé. Também cerrava os punhos.

— Ele está com medo, papai. Liberte-o agora!

— É “senhor” para você, Erika. — O rei repreendeu-a, seco. — E não se esqueça: quem dá as ordens aqui sou eu.

— Mas o senhor tão pode fazer isso! — A vozinha dela ficava esganiçada de novo. — Ele é uma pobre criatura. Tenha piedade! Ele certamente tem uma família em algum lugar que está preocupada com seu desaparecimento.

— Bobagem... — O rei fez um gesto de desdém, como se dispensasse a filha.

— Mãe! — Erika voltou-se para a Rainha Helena. — Por favor, a senhora sempre foi mais sensata. Liberte o tritão, por favor!

— Sente-se, Erika — respondeu a rainha.

Os olhos azuis brilharam enquanto grossas lágrimas se acumulavam neles. Erika voltou-se para Henrique, sua última esperança.

— Capitão?

Ele fez uma reverência.

— Estou aqui para cumprir as ordens de meu rei.

Erika virou-se para os pais, depois para Henrique de novo. As lágrimas desceram por seu rosto.

— Eu não sobrevivi para ver esta cena! — gritou.

— Erika!

O Rei James fez menção de se levantar, mas a filha já havia desaparecido por uma porta lateral. A Rainha Helena levou as mãos ao rosto.

— Capitão... — principiou James.

— Eu vou atrás dela — disse em um átimo. — A princesa vai me escutar.

Todos olharam para mim, cheios de expectativa. Lentamente, o rei meneou a cabeça.

— Por favor, senhor Daren, vá atrás dela.

Assenti. Caminhei até a porta lateral e a puxei. Antes de sair, lancei um último olhar ao salão. A Rainha Helena parecia desamparada.

 

Erika estava sentada na Sala do Coral, soluçando no pescoço de Max. O cachorro gania baixinho, chorando com ela. Em silêncio, puxei uma cadeira e me sentei ao lado dos dois. A princesa ergueu o rosto assustado.

— Ah, é você...

— Decepcionada?

— Não. — Ela fungou e usou a manga do vestido para secar as lágrimas. — Tive medo de que fosse o Henrique...

Sorri.

— Ele é assustador, não é? Até parece que aquele bigode vai te comer.

Erika riu.

— Você não viajou tanto quanto eu, mas eu lhe digo: aquilo parece um bigode de morsa! Se o capitão ao menos fosse mais gordo e dentuço...

Ela gargalhou.

— Ah, Daren — murmurou, secando os olhos. — Só você para me fazer sentir melhor. — Ela sorriu de leve. — O que vamos fazer?

Suspirei.

— Eu não tenho nem ideia. Convencer seu pai será uma tarefa difícil. Sua Majestade sempre foi muito teimoso. E com Henrique apoiando suas decisões...

— Eu queria que o Henrique fosse mandado para muito, muito longe daqui — Erika segredou, abraçando suas pernas. — Não gosto dele.

— Alguém neste reino gosta?

Ela balançou a cabeça.

— Henrique é adorado por todos daqui. Ele é visto como um herói. Pessoalmente, eu gostava mais do Capitão Alfred. — Erika fungou de novo. — Ele me servia peixe grelhado quando ninguém estava olhando.

Ficamos em silêncio por um momento. Eu quis dizer que também sentia falta de Alfred. O velho não era de falar muito quando estava sóbrio, mas eu simplesmente gostava dele. Feitiço algum no mundo explicaria toda a admiração que eu tinha pelo lobo do mar.

— Elliot disse que prenderam o tritão nas dependências do Henrique. Acho que para ninguém tentar resgatá-lo.

— Quem? — franzi o cenho. — Ah, o moleque...

— O Elliot é legal. — Ela acomodou o queixo entre os joelhos. — Ele me disse que, quando olhou para o tritão, soube que precisava devolvê-lo ao mar. Que arriscaria a própria vida se tivesse um bom plano...

Grunhi, enciumado.

— Aposto que o moleque só disse essas coisas para te impressionar.

— Não. — Erika balançou a cabeça de novo. — Ele estava sendo sincero. Eu vi a sinceridade nos olhos dele. Elliot é meu amigo, então eu sei que ele é uma pessoa boa.

Virei o rosto. Minha empatia por aquele garoto diminuía a cada segundo. Se ele continuasse com suas palhaçadas para cima da minha menina, eu ia transformá-lo em um peixinho dourado e jogá-lo para o Max.

— Está com ciuminho, Daren? — A voz de Erika soou zombeteira. Para piorar, ela olhava para mim contendo o riso.  — Está com ciuminho do Elliot?

— Desgraça! E por que eu teria ciúmes daquele moleque atrevido e desmiolado? Ele é quem deveria ter ciúmes de mim!

Erika riu com gosto.

— Você está com ciúmes!

— Ora, sua pequena provocadora. Cuidado com tuas palavras! — disse, fazendo menção de empurrá-la de leve.

Ela saltou para longe de mim.

— Eu sabia que, no fundo, você se importava comigo! — cantou as palavras, saltitando de um lado para o outro com Max em seus calcanhares.

Eu me levantei e dei alguns passos até ficar de frente para ela.

— Mas é claro! Queria que eu tivesse deixado você se afogar?

Erika afastou-se mordendo o lábio. Soube na mesma hora que ela estava se lembrando do que dissera a seus pais.

— Como poderemos salvá-lo, Daren?

Eu suspirei. Ainda hesitante, toquei sua face corada, sentindo sua pele quente e seus cabelos soltos. Ela fechou os olhos.

— Não se envolva nisso, Erika. Não desafie seus próprios pais. Deixe tudo por minha conta. Deixe as consequências caírem sobre mim.

— Mas, Daren... — Ela abriu os olhos outra vez, e as lágrimas tornaram a cair. — Eles podem te matar!

— Que tentem fazer isso. Quero vê-los tentar! — Com um sorriso, encostei minha testa na dela. — Confie em mim, Erika. Eu salvarei o tritão. — Hesitei, fitando seus olhos cheios de dúvidas. — É uma promessa.

A porta atrás de nós abriu-se com um leve rangido. Henrique surgiu na soleira, observando-nos assombrado. Erika afastou-se de mim no mesmo instante.

— Creio que seja hora de a princesa retornar aos seus aposentos.

— Creio que seja hora de o capitão retomar seus afazeres — ela respondeu no mesmo tom.

— Quem me dera o senhor Grimsby ou a senhorita Angela estivessem aqui para que eu não tivesse de cumprir suas funções. Retorne a seu quarto, Princesa Erika. E não ouse sair.

Erika chamou Max e caminhou orgulhosa para fora da sala. Não abaixou o rosto uma única vez e sustentou o olhar gélido de Henrique até desaparecer no corredor. O capitão esfregou o pescoço, cansado, e me analisou com cautela.

— Seja lá o que estiver planejando, eu recomendo que esqueça. E mantenha distância da Princesa Erika. O senhor é uma má influência, senhor Daren. Considere-se avisado.

Ele fechou a porta, mergulhando-me no silêncio. Grunhi baixinho. Desgraça! Esqueça o moleque! Se alguém merecia ser transformado em esponja do mar, era o capitão!


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Notas finais do capítulo

Este provavelmente é um péssimo momento para dizer isto, mas o Henrique é um dos meus personagens favoritos na história. :v



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