- escrita por Blue Butterfly


Capítulo 46
Quarenta e seis




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Parte II

Ele tinha conseguido escapar das penalidades, para seu terror e desespero. Maura viu na sala, ainda na corte, seu sorriso cínico e zombeteiro lançado em sua direção. Para ela, e depois para Jane. 

Depois, lá fora. 

Andando livremente como se o mundo lhe pertencesse, como se não se importasse ou não se deixasse intimidar por nada, ninguém. 

Ela não entendia como.

Como aquilo tinha acontecido? Como?

‘Jane.’ Ela chamou pela morena, afim de pedir para que explicasse, em termos de justiça, porque ele não fora condenado. Apesar de suas feridas, apesar de suas dores, como ele conseguira se safar da prisão?

‘Jane?’ Ela tinha se virado, esperado encontrar a detetive ao seu lado, mas entre todas as pessoas caminhando em todas as direções, ela não conseguia encontrá-la. Então, ela tinha decidido correr, gritando seu nome a pleno pulmões, caminhando pelas ruas que já conhecia, até que tinha alcançado sua própria casa.

Quando ela entrou, parou de repente a quatro passadas depois de fechar a porta atrás de si. Seus olhos se arregalam em terror, incompreensão e raiva.

‘Por que demorou tanto? Você quase perdeu a festa.’ Foi ele quem disse.

E depois aproximou a ponta da faca para o pescoço de Jane. Ele tinha amarrado a morena em uma cadeira, braços atrás das costas, pés juntos por uma corda. Uma pano encardido amarrado no rosto, tampando-lhe a boca. O olhar da outra dizia para que Maura corresse, se salvasse, mas ela certamente não iria. Ela se sentia responsável demais, conectada demais com Jane para simplesmente abandoná-la ali.

‘Eu salvei um lugar para você.’ Ele disse, arrastando uma cadeira à frente de onde Jane estava. ‘Junta-se a nós.’

Ela já respirava pesado - ambos por causa da corrida e por causa do terror de encará-lo novamente - e parecia indecisa sobre o que fazer. Ela deveria se sentar? Deveria partir para cima dele, engajar numa luta que ela sabia que não poderia vencer?

‘Agora!’ Ele gritou e apertou a ponta da faca no pescoço de Jane.

‘Não!’ Maura jogou as mãos para frente e cedeu ao seu pedido. Sentou-se na cadeira. Olhou Jane nos olhos, sabendo que aquela seria a última vez que elas se veriam, sem sombra de dúvidas.

‘Não machuque ela.’ Ela murmurou como uma súplica, e depois, como se tivesse encontrado força nas palavras que acabara de dizer, como se fosse a última e única coisa que lhe restava, ela gritou como uma ordem dessa vez. ‘Não a machuque!’

Ele pareceu surpreso, parando com o gesto de levar a faca ao coração de Jane. ‘É sempre você quem estraga tudo!’ A resposta dele veio em auto-defesa, feroz, infantil e com uma raiva pura e incontrolável. Ele abaixou a faca lentamente, a lâmina brilhando fraca sob a luz da cozinha, e perfurou o peito de Jane, do mesmo modo como se perfura um bolo ainda no forno: lenta e cuidadosamente, não querendo espalhar conteúdo de dentro, caso ainda não esteja assado.

O sangue escorreu rápido, por toda roupa da morena. 

Num momento de desolação, ela não soube dizer se o grito gutural e quase fantasmagórico saiu de sua boca ou da de Jane. Mas a dor, foi ela quem sentiu.

...

‘Não!’ Maura disse entre dentes, sentindo seus braços sendo segurados. ‘Não!’

‘Maura!’ A voz veio grave e urgente, tentando acordá-la.

Ela se sobressaltou, colocando-se em posição sentada tão rapidamente que Jane foi sortuda (e rápida) em se afastar do seu caminho. ‘Maur, é só um pesadelo.’ Ela disse de novo, com urgência, tentando segurar seus ombros agora.

‘Jane!’ A menor disse, ou tentou dizer, a palavra perdida entre soluços e lágrimas. Mãos ágeis agarraram a camiseta de Jane, mais de uma vez, como se para ter certeza de que ela estava ali, ou de que não fosse fugir de seu alcance. 

‘Ele te machucou. Ele te machucou!’ Sua voz dizia alta e aguda, como se indignada e injustiçada, tentando explicar para Jane o que tinha acontecido - ainda que sua mente estivesse nebulosa e nada no momento fizesse sentido.

‘Maura, foi só um pesadelo, querida.’ Os braços fortes e longos de Jane apertaram seu corpo, que estava tremendo, assim que ela se ajeitou no sofá.

Deus, ela tinha perdido completamente o controle. Ela sentia suas mãos anestesiadas, seus pulmões queimavam e seu corpo parecia não responder aos seus comandos. Cansada, exausta, ela parecia incapaz de distinguir o que tinha sido real, o que era verdade.

‘Eles deixaram ele se safar e ele,’ ela repetiu a pronome pessoal três vezes antes de conseguir dizer o resto da frase, ‘te aprisionou e usou uma faca direto no teu coração.’ E mesmo o resto saiu aos tropeços e cortado porque ela estava soluçando. 

‘Eu tô bem aqui com você agora, não é?’ Jane disse numa voz calma, carregada de conforto. Uma mão segurava a cabeça de Maura e acariciava entre o cabelo, enquanto a outra desenhava círculos pelas suas costas.

‘Ele feriu você.’ A loira recontou, olhos apertados tentando, em vão, conter as lágrimas. 

‘Não, amor. Eu e você estamos em casa, seguras.’ Jane beijou o lado de sua cabeça, e o suspiro de Maura foi trêmulo, mas seus dedos nas costas da detetive nunca pareceram tão certos de onde queriam estar. Ela tentou se acalmar, acordar completamente, mesmo temendo que a lucidez implicasse em outra realidade, uma que refletia seu pesadelo.

Não refletia. Na verdade, era paralelo ao que sonhara. Jane ainda estava viva e quente, em seus braços, respirando e falando, tomando conta dela. Viva. Inteira. Maura se permitiu respirar normalmente, então. Ela abriu os olhos e ajeitou a cabeça no ombro da mulher, estudou o espaço ao seu redor, e começou a se lembrar do que tinha acontecido.

 

Ela não achava que poderia suportar a presença de qualquer outra pessoa em sua casa, naquela noite, que não fosse Jane. Por isso, quando viu o momento se presentear no final da sessão, ainda na corte, tomou como oportunidade já que estavam a sós e dividiu seu desejo com a morena.

‘Você acha que eles ficariam chateados se fossem só nós duas hoje?’ Ela perguntou num sussurro apressado para a namorada, primeiro porque não queria que ninguém ouvisse, e segundo que ela esperava que Jane entendesse o quanto ela necessitava de espaço.

‘Eu não me importo com o que eles acham’, ela tinha devolvido, uma mão em seu ombro e aquele olhar carinhoso e protetor em sua direção, ‘apenas com o que te faz bem.’

E então Jane tinha dispensado todos eles - educadamente, por causa de Maura - e tinha dirigido as duas direto para casa, logo após o testemunho da loira. Elas tinham se sentado no sofá, e Jane dissera que iria preparar algo para comer para as duas. Antes de ir para a cozinha, tinha jogado uma coberta sobre o corpo da menor, beijado sua testa.

Não mais do que cinco minutos deitada, ela tinha dormido ao som da morena cozinhando algo no fundo.

E agora, elas estavam ali. Consciente da ordem à sua volta, Maura se acalmou com facilidade. Os restos do pesadelo ainda perturbavam sua mente, mas a combinação do cheiro de Jane e do carinho em suas costas funcionava como um passe de mágica. Elas se ajeitaram no sofá, de modo que Jane tinha se apoiado no encosto e Maura tinha se encolhido contra ela, uma mão acariciava a barriga da morena deliberadamente.  

‘Como eu mato ele?’ Ela perguntou de repente. Sentiu Jane tensionar, conseguiu imaginar o rosto contornado por aflição, e quase riu. ‘Dentro de mim.’ Ela adicionou e repetiu. ‘Como eu mato ele dentro de mim?’

Jane beijou sua cabeça demoradamente. ‘Da próxima vez que ele aparecer nos seus sonhos, diga que ninguém mexe com a namorada de Jane Rizzoli e sai impune, e que eu tenho uma mira excelente.’ Ela brincou, arrancando uma risada leve de Maura.

A loira não conseguia se lembrar qual tinha sido a última pessoa, antes de Jane, a confortá-la desse jeito. Sua definição de segurança, amor e companheirismo tinham mudado desde que conhecera a morena, e, sem timidez alguma, Maura recebia todas regalias e mimos vindos da mulher, e ela fazia o que estava em seu alcance para mostrar à Jane que ela reconhecia e queria oferecer o mesmo.

‘Ele ainda te assombra?’ Maura segurou a mão de Jane, correu seus dedos entre os dedos delas, depois massageou sua palma e dorso. Sua cicatriz. Hoyt. Ela queria ter dito, mas parecia haver um acordo não verbalizado entre qualquer pessoa que conhecia Jane de que o nome dele não era permitido. Então, ela não dizia também.

Olhos verdes encontraram os escuros, e a morena parecia estar se debatendo para responder aquela pergunta. Maura pensou que tinha se intrometido onde não deveria, e que Jane iria rejeitá-la agora, mas porque a morena estava demorando para responder, ela também pensou que estava perdoada, e que se voltasse a descansar a cabeça no peito da outra, ainda úmido por suas lágrimas, Jane a abraçaria de novo.

‘Sim e não.’ A morena finalmente respondeu, e Maura levantou a cabeça só um pouquinho para poder estudá-la. ‘Ele representa o maior mal de todos. Então... quando eu não consigo resolver um caso, ou mesmo quando eu resolvo, mas é tão horrível que me perturba como nada mais poderia... Ele aparece nos meus sonhos, às vezes zombando de mim, às vezes como o culpado de um crime que não é dele.’ Ela explicou com a voz carregada.

‘Oh, Jay...’ Maura murmurou, massageando sua mão como se seus dedos pudessem mandar os sonhos ruins da morena embora.

‘Não, eles não são tão assustadores.’ Ela emendou. ‘Não é exatamente... Ele. É mais como se fosse alguém usando uma máscara, por assim dizer.’

Maura balançou a cabeça em compreensão, ainda que precisasse de um tempo para entender como Jane classificava aquilo como não-tão-assustador. Ela estava tão perdida em seus pensamentos que quase se sobressaltou quando um beijo foi pressionado em sua cabeça.

‘Esses pesadelos vão desaparecer, Maur, do mesmo jeito que desapareceram antes.’ Jane disse baixinho para ela, como se contando um segredo bom.

Maura, entretanto, riu tristemente e balançou a cabeça em negativo. Ela sabia que tinha sonhado aquilo guiada por culpa, porque ela ainda acreditava que tinha, e ainda estava, machucando Jane. Ela se encolheu como se pedindo proteção, mas a gesto morreu no meio porque, então, ela decidiu que talvez não merecia.

‘Nós estávamos tão bem.’ Ela disse mais para si mesma, do que para Jane.

‘Nós ainda estamos bem, Maur.’ A morena afirmou, acariciando suas costas, mas o seu tom deixava claro de que ela não tinha acompanhado a linha de raciocínio de Maura para chegar nessa questão em particular.

‘Não.’ Ela interrompeu e hesitou, não sabendo realmente como colocar em palavras o que queria dizer e perguntar, ou sabendo, mas não tendo a coragem para verbalizar. Ela se reajustou no sofá, olhos lançados para baixo em constrangimento.

Jane, sempre sensível e empática, pareceu saber do que se tratava e alcançou por sua mão. ‘É em relação ao que você disse lá na corte hoje?’

‘Sim.’ Ela sussurrou entre um suspiro.

‘Maura, saber daquilo não muda nada para mim, querida. Quer dizer, me faz odiá-lo ainda mais, mas só isso.’

Maura apertou uma mão na outra, franziu o cenho e apertou os lábios antes de falar. ‘Mas o que eu fiz...’

‘Você fez porque precisava se manter viva.’ Jane completou. ‘Você foi corajosa, esperta e tão, tão, forte. E eu não queria que você reagisse de outra maneira, porque isso te trouxe bem aqui para mim.’ Ela segurou Maura pela cintura e a colocou no seu colo de novo, agora frente a frente, as pernas da outra abraçando seu corpo. ‘Isso não diminui a pessoa que você é, nem meu conceito sobre você. Entendeu?’

Maura deixou entender que sim com um meneio de cabeça. ‘Você ainda me ama?’ Ela perguntou em voz baixa, e Jane soube que ela precisou de cada grama de coragem para fazer as palavras saírem de sua boca.

‘Indiscutivelmente. Por todos os ângulos, considerando tudo que você é, com todas as minhas forças. Amo todos seus costumes e jeitos.’

‘Cegamente?’ Maura brincou, e riu baixinho.

Jane acompanhou a risada, mas depois ficou séria e balançou a cabeça em não. ‘Amar cegamente é um erro tolo, é infantil. Seria tirar a responsabilidade que a outra parte deveria ter em relação ao mundo e aos outros à sua volta. Seria tirar a minha também.’

Maura concordou com a cabeça mas não interrompeu, sabendo que Jane ainda não tinha terminado.

‘Eu te amo realmente. Quando você se enrosca em mim no meio da noite porque tá com frio ou porque teve um pesadelo; quando você me repreende e vira para o outro lado porque eu te provoquei com meus pés e mãos frias enquanto você estava caindo no sono, e te desperto. São duas facetas. Quando você cozinha comigo e conversa o tempo todo, ou quando você some porque precisa de espaço, são duas facetas. Eu assisto você desabar e se recompor diariamente, Maura. Eu sei que quando você tá ansiosa você aperta seus dedos, quando você tá com fome ou sono extremo você fica insuportavelmente irritada, e que sua pressão é baixa e por isso você sempre precisa de uma coberta a mais do que eu durante a noite. Entendi que sua insegurança com as outras pessoas é mais por causa da relação que você teve com seus pais do que outra coisa. Eu te conheço cada dia mais, e porque eu vejo tudo o que você faz e é, é ainda mais fácil te amar. Porque você é real, é de verdade.’

Maura tinha um nó na garganta e seus olhos estavam cheios de lágrimas. Jane podia variar entre dizer as coisas mais absurdas e as mais lindas. Ela fechou os olhos e desfrutou de cada sensação prazerosa que aquelas palavras despertavam dentro de si. Foi só quando elas pousaram em seu coração, com um estrondo e desregradamente, que ela aprendeu naquele momento que amar alguém se constituía na forma tão versada, inabalável, destemida e íntegra.

‘Você é o amor da minha vida.’ Ela disse enquanto corria os seus dedos no rosto de Jane, desejando que as pontas dos dedos colassem cada um de seus sentimentos ali, para que ela pudesse entender completamente. ‘Se lembra como eu disse que escapei?’

Jane sabia que era uma pergunta retórica, mas decidiu responder mesmo assim. ‘Você achou um enfeite de Páscoa perdido entre as tiras de madeira no chão, usou o arame do gancho como um tipo de chave para abrir a algema.’ Jane sorriu como se tivesse orgulhosa de Maura pelo seu trabalho. ‘E foi assim que você escapou.’

Os dedos de Maura acariciavam seu pescoço agora, e a mulher estudava Jane com tamanha intensidade que seus olhos pareciam refletir sua alma - densa e infinita, carregando um tipo de sabedoria antiga, quase extinta. 

‘Ouça bem o que vou dizer, Jane Rizzoli.’ Ela se arrumou no colo da mulher, seus dedos se cruzando atrás da nuca da outra. ‘Eu posso te me tirado de lá, mas eu não tenho dúvidas de que foi você quem me salvou.’ Seus lábios se encontraram com os de Jane para um beijo inocente e demorado, carregado de amor e ternura. Quando Maura se afastou, duas lágrimas tinham deslizado pelo rosto da morena, e ela ainda mantinha os olhos fechados, talvez numa tentativa de impedir outras.

A loira não comentou nada. Apenas abraçou sua namorada e acomodou a cabeça da outra em seu peito, o rosto escondido na curva de seu pescoço.

Maura fechou os olhos também, e como um último desejo, esperou que pudesse manter Jane segura, pelo menos por aquela noite.


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Notas finais do capítulo

Capítulo curto, mas espero que seja fofo e mais leve, entre todos esses pesados ♥