- escrita por Blue Butterfly


Capítulo 21
Vinte e um


Notas iniciais do capítulo

Esse cap é ten-so. Não leia se você for sensível a traumas físicos (não é nada exagerado, entretanto. Só quero avisar). Os comentários do cap anterior me deixaram TÃO feliz, vocês são as melhores ♥ amanhã responderei todos!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/716855/chapter/21

O céu sempre fora claro daquele jeito? Foi a primeria pergunta que Maura se fez quando arrastou metade do corpo para fora daquele porão sombrio e gelado. A única fonte de luz que trazia certa iluminosidade para dentro do quarto era aquela pequena janela, velha e amarelada pelo tempo. O vidro sujo e quebrado cortou sua barriga quando ela se espremeu para passar pela abertura tão pequena e apertada. Mas era se arriscar a escapar com alguns cortes a mais ou morrer dentro de alguns dias. Com as mãos ela segurou no gramado que descia de encontro á janela e puxou seu corpo para cima. Cacos minúsculo entraram em sua palma, mas ela ignorou a dor e continuou se arrastando para cima. Quando seus pés finalmente encontraram o chão seguro, ela checou todos os lados. Ele não estava a vista. Tudo estava quieto, no mais completo silêncio. Ela estudou o ambiente a sua volta, o sol fazendo seus olhos arderem. Ele tinha um carro, ela sabia porque já ouvira tantas vezes, mas ele não estava na garagem, em lugar nenhum, o que significava que ela poderia correr a extensão da estrada de terra até alcançar a estrada principal, e com um pouco de sorte conseguiria ajuda lá.

Correr. Ela acessou seus machucados e quase chorou quando se deu conta de que era algo que não conseguiria fazer. Ela mal conseguia ficar em pé. Seus pés estavam doloridos. Seus joelhos estavam arranhados e a cada passo era como se a carne fosse se rasgar mais. Sua calça estava suja e rasgada e manchada de sangue - novo e velho. Sua blusa estava na mesma situação. Ela pressionou os dedos nos dois cortes novos que ganhara ao passar pela janela quebrada e eles mancharam imeadiatamente sua pele, se misturando com o sangue dos pequenos cortes nas palmas. Suas costelas doiam com cada inspiração e experição, e era por isso que ela respirava curtamente.

Mas ela tinha que seguir em frente. Tinha. Para o inferno com a dor. Ela já passara por pior e não ia desistir logo agora que tinha vencido o maior dos problemas. Ela estava livre e agora só precisava de ajuda para chegar no hospital mais próximo. Ela percorreu todo a distância até a estrada principal. As pedras agulhavam seus pés, mas diante de tantas outras dores aquela era a que menos incomodava. De lá, ela estudou a sua direta e esquerda, decidindo andar pelo lado direito por ter uma fileira de árvores alinhada na beira da rodovia,enquanto do lado esquerdo não havia nada, senão vegetação curta e morta. Ela andou por muitos metros, talvez mais de uma hora. Nenhum carro tinha passado desde então, mas quando ela se sentiu cansada, decidiu sair da estrada e sentar-se atrás de uma árvore grande e com tronco grosso - ela pensou que ninguém fosse vê-la lá. Ela estava exausta. O dia estava fresco mas o sol quente. Era por isso que agora sentia uma dor de cabeça aguda. Ela respirou fundo algumas vezes e tentou resistir a tentação de cair no sono ali mesmo, na maior parte, por medo.

Medo de ser encontrada por ele. Medo de ser atacada por um animal selvagem. Medo de dormir e simplesmente morrer e não ser nunca mais encontrada. Ela não sabia se tinha mais para o que voltar, ela nem sabia por quanto tempo tinha ficado lá. Pareciam anos. Cem anos apodrecendo num inferno solitário, passando frio, fome, sede, dor e medo. Se vida após morte realmente existisse, ela já tinha pago todos seus pecados. Talvez já estivesse morta e estava pagando agora, por isso não havia mais ninguém ali, senão ela. Mas para aquele lugar, ela não iria voltar. Não mesmo. Foi esse pensamento que a fez se levantar. Ela continuaria andando até encontrar ajuda. Quem sabe uma casa ao redor? Ou seria perigoso demais? Certo, era melhor não entrar em outra casa, confiar em alguém desconhecido.

Então ela andou por mais meia hora. Em algum momento a dor se tornou tão comum que era quase como se ela não sentisse mais nada. Seu cabelo estava grudado no seu rosto suado, seus braços abraçando o próprio corpo. Até que ali, ela viu algo. Ela se agachou para estudar mais de perto. Oh, sim. Aquilo era uma plantação de cenouras! O mais rápido que pôde, Maura enfiou os dedos na terra apenas para conferir. Sim, cenouras! Ela segurou firme nas folhas verdes e puxou com força. Uma, duas, três. Recolheu na blusa todas elas, atravessou a estrada e escondeu atrás das árvores novamente. Ela se sentia horrível por roubar algo de outra pessoa, mas Deus sabe como ela precisava de nutrientes naquele momento. Ela nem mesmo torceu o nariz para a sujeira. Danem-se os vermes também. Limpou o que conseguiu com a blusa e comeu com cautela. Por tempos ela não colocava comida dentro de si, e não queria passar mal pela quantidade ingerida. Em nenhum momento de sua vida Maura tinha se sentido tão agradecida por ter algo para comer como naquele dia. Ela mastigou cada pedaço com gosto, observando a vida a sua volta. O jeito que o vento batia nas folhas das árvores e depois corria para as plantações bem à distância, e era tão bonito ver como ele parecia varrê-las. Não, acariciá-las, ela se corrigiu. Era um balé delicado, dançado ao som do farfalhar de outras folhas. Ela assistiu sem pressa, apenas desfrutando do momento prazeroso e simples. Aquele poderia ser o último de seus prazeres. Ela sabia porque se fosse continuar seguindo a estrada, não havia mais árvores para lhe esconder. Era um campo aberto de cada lado, e ela não sabia exatamente o que esperava encontrar, porque o aparecimento de um carro poderia indicar tanto perigo como salvação.

Oh, ela torceu tanto para que fosse o último. Inspirou uma última vez antes de se levantar, como se a pureza do ar fosse fortificar sua coragem, mas ela estava com tanto medo que demorou quase cinco minutos para se convencer a pisar na estrada novamente. Só que ela foi. Com os pés descalços no asfalto quente, os olhos semi-cerrados por conta da claridade do sol. Suas pernas pareciam não suportar mais o peso do seu corpo - que já não era muito. Em certo ponto ela realmente não sentia mais as pernas, e cada passo era duvidoso. Ela poderia ter acertado em como se equilibrar... ou não. Ela chegou em um cruzamento e dobrou a esquerda dessa vez. Andou por mais alguns minutos até que ela viu.

Era um carro vindo em sua direção. Ela não sabia se o que sentiu foi medo ou felicidade. Uma mistura dos dois com um toque de ansiedade, dúvida e confusão era algo mais adequado para a descrição. Ela quis se esconder quando ele se aproximou mais, cedendo ao pavor de ter que voltar para aquele lugar. Sem nem mesmo se virar, ela deu alguns passos para trás como se tentando fugir do perigo. Sem prestar atenção onde pisava, completamente exausta, acabou caindo sentada no chão. Agora era tarde demais e ela estaria absolutamente morta no próximo minuto porque o carro estava parando. Ele desceria de lá e lhe mataria com certeza. Ou então, a levaria de volta, rasgaria o resto de sua roupa e lhe bateria até ferir sua pele.

Sua respiração se tornou terrivelmente errática, e ela levou uma mão na garganta, inutilmente, tentando respirar. Quando a porta do carro se abriu, ela quase gritou - se ao menos conseguisse. Então aquele homem desceu do carro e ele era...

Ele não era. Ele não era quem ela pensava!

Era um senhor de talvez 60 anos, um pouco mais alto que ela, cabelos grisalhos e um rosto amigável - mas que agora estava contorcido em horror e confusão. Ele virou a cabeça ligeiramente para o lado, estudou-a e franziu o cenho. Levou uma mão para a boca em completo assombro e murmurou.

'Menina, o que aconteceu com você?' Ele caminhou até ela, e por instinto ela esticou os braços para cima como se pedindo ajuda para se levantar.

'Eu preciso de ajuda. Hospital.' Foi a única coisa que ela manejou dizer.

Ele se ajoelhou no chão em frente dela e segurou seu rosto gentilmente. Tão gentilmente que no momento em que a pele macia de sua mão tocou o rosto dela, ela fechou os olhos e confiou inteiramente na presença dele ali. O toque tinha sido tão gentil que fez Maura chorar. Talvez porque tinha se esquecido do que era poder confiar, de poder contar com alguém, de ser amparada. Era o primeiro estranho que ela encontrara depois de ter ficado trancafiada por tanto tempo. Depois de ter quase se esquecido do que era ser humano.

'Oh, menina. Você parece mesmo precisar de um médico. Venha, venha comigo. Eu tenho quase certeza de que tem um hospital bem grande alguns minutos daqui.' Ele segurou gentilmente nos braços de Maura e a ajudou a levantar. Ela apoiou-se nele porque não sabia se conseguia andar mais por si mesma. Ele abriu a porta do passageiro e a ajudou a se sentar - e a colocar o cinto de segurança. 'Te machuca assim?' Ele perguntou preocupado, segurando a alça antes de abaixá-la no colo dela.

'Tudo bem.' Ela murmurou.

Ele meneou com a cabeça e andou o mais rápido que conseguiu até o outro lado. Sentou-se no próprio banco e olhou de novo para ela. 'Você quer tomar um achocolatado? Eu comprei umas garrafinhas para minha netinha.' Ele alcançou a sacola de plástico o banco de trás, revirou por dentro, achou a garrafa e abriu-a, entregando para Maura em seguida. 'Aqui, é o favorito dela, acho que você pode gostar também.'

Maura pareceu em dúvida. Ela olhou para a garrafa e depois para ele. Suas mãos voltaram a latejar e ela não sabia se conseguiria segurar aquilo, mas...

'Não se preocupa, tem mais algumas para ela.' Ele disse e passou a garrafa para Maura, que só aceitou porque indecisa demais, não tinha conseguido falar não.

Ela não estava com fome, mas algo líquido cairia definitivamente bem. Ela bebericou o conteúdo e experimentou uma explosão de sabores na boca. Deus, o sabor daquilo era tão bom. Enquanto ele dirigia, ela bebeu metade da garrafa - o que deveria ser uns 300ml - mas depois disso não conseguia mais. Continuou segurando o vidro gelado nas mãos, apenas pela sensação que trazia - aquilo parecia acalmar a dor de seus cortes.

Ela se sentia cada vez menor conforme iam se aproximando da cidade. Quando alcançaram uma das avenidas movimentadas de Boston, ela pediu que, por favor, ele a levasse no West Hospital. Nesse ponto a adrenalina que sentia tinha caído significativamente, e todas as feridas pulsavam em dor. Quando ela se remexeu no banco e suas mãos começaram a sangrar novamente, ela não conseguiu evitar uma arfada e o choro. Ela olhava para os cortes, as mãos tremendo levemente por dor.

'Qual seu nome, menina?' Ela quase se sobressaltou ao ouvir a voz dele. Ele estava dirigindo em completo silencio até então. Ele não a conhecia e provavelmene estava nervoso com a situação dela.

'Maura.' Ela murmurou sem olhá-lo.

Ele olhou com espanto para ela por um segundo e depois abriu um sorriso. 'Que coincidência, esse é o nome da minha netinha.'

'Oh.' Maura disse apenas, surpresa.

'O que vou dizer para você, é o que eu digo sempre quando ela se machuca: às vezes a gente precisa chorar um pouquinho para ajudar com a dor. Mas esses machucados sempre saram, e saram melhor se cuidar com um pouco de amor.' Ele virou o rosto e sorriu amavelmente para ela.

Maura se perguntou como, por Deus, poderia existir pessoas tão boas e tão más no mesmo mundo, e como e por quê seu destino fora traçado para que ela encontrasse as duas e não somente alguém como aquele senhor. Ela meneou a cabeça para demonstrar compreensão. Minutos depois ele parou o carro na entrada da emergência do hospital, ajudou-a sair e com todo cuidado passou o braço dela pelo seu pescoço. Juntos caminharam alguns passos até que algum enfermeiro apareceu. Ele anunciou que precisava de ajuda imediata, e o enfermeiro apareceu segundos depois com uma maca, acompanhado por duas mulheres.

Na confusão que se seguiu, tudo o que Maura registrou foram aqueles olhos tão amáveis e preocupados segurando o seu olhar. E então tudo ficou preto, e ela já não registrava mais nada.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "-" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.