Nerve escrita por LustForJohn


Capítulo 2
Crisálida


Notas iniciais do capítulo

Gostaram do prólogo? Vocês só irão o entender ao decorrer da história, hehe
Agora vamos para a história de verdade.
Espero muito que gostem, fiquei animadíssimo escrevendo esta fanfic!
Boa leitura.



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Olho meu reflexo através do vidro escuro de um Volvo estacionado no meio-fio. Como sempre, nada mal. Passo uma mão no cabelo para arrumá-lo e volto a patinar. Dou uma espiada novamente para ver o endereço do destino da encomenda. É uma caixa pequena, meio pesada, meio leve, com três fantásticos CDs dentro.

Trabalho como entregador na Discos e Livros faz alguns meses. Eu até gosto deste emprego, minha cabeça fica livre e sem pensamentos absurdos. Mas tenho uma restrição com meus pais: não posso chegar depois das dez da noite. Eles acham que eu não sei me cuidar só, ou que possa estar com um baseado por aí com a galera da pesada. Eu até gosto de patinar pela cidade, depois de duas semanas eu já tinha aprendido a fazer manobras que qualquer criança faria.

Também tenho um limite rígido nas rotas. Não posso fazer entregas por toda a cidade de Seattle, apenas aos redores de onde moro. Uma van vem deixar os produtos na minha casa diariamente. Eu acho interessante e prático, já que eu conheço todos os extremos do meu bairro decorado. Fazer o que eu sei é mais fácil.

Freio as rodinhas dos patins e confiro o endereço. É aqui. Uma casa pequena nos fundos de um gramado extenso. Seguindo pelo estreito caminho de pedras, aproximo-me da porta e toco a campainha duas vezes. Levou apenas uma semana para eu aprender a me equilibrar em cima de rodinhas sem virar farofa no chão.

— Entrega da Discos e Livros — anuncio, com minha típica voz de ganso.

A porta é rapidamente aberta por uma mulher loira, no seu braço tem um aglomerado de pulseiras balançantes. Ela abre um sorriso e aponta seu celular caro para mim, com um flash muito forte. Ela dá alguns passos para trás e um homem aparece por trás dela. Um homem muito bonito. Ele tem um penteado platinado e barba detalhada. Os dois devem ter menos de vinte e cinco.

Levo a caneta até a boca enquanto confiro o nome dele escrito na prancheta.

— Erhm... Zain? — Pronuncio, colocando ênfase na letra A.

— O correto é “Zêin” — corrige com um sorriso suspeito no rosto. A garota atrás dele continua gravando. Isso é um daqueles canais famosos em que o pessoal grava unboxing de encomendas?

Confiro com ele todos os CDs. São três álbuns de bandas diferentes, todas possuem o gênero pop e rock eletrônico — eu já os ouvi. Ele tem um gosto musical bem legal. Ele faz que sim com a cabeça.

— Assine aqui, por favor. — Estendo a prancheta para ele junto com a caneta. Ele assina com letras cursivas o nome Zayn. Com Y.

Enquanto confiro minhas encomendas, o cara platinado rasga o lacre do pacote. Pega o primeiro álbum, abre e tira o CD. Com apenas uma mão, ele dobra o disco, fazendo-o quebrar com um estalo. Quê? Depois, pega o segundo álbum e simplesmente o joga no chão com bruta força, fazendo a case de acrílico rachar. Sua perna vira uma bigorna quando ele desfere dá apenas uma pisada, bem pesada e bem forte, destruindo o que sobrou do CD.

Ah. Se não queria os CDs, poderia ter me dado.

A garota loira atrás dele ri e passa para ele uma garrafa de vodca e ele despeja todo o líquido dentro da caixa onde o último álbum está, saca do bolso um isqueiro barato e o deixa cair no pacote, que vira uma pequena fogueira rapidamente. Ele pega os destroços dos outros CDs e os joga no fogo. Cadê os marshmallows?

Por um momento, eu me sinto um idiota por ter continuado aqui e ver ele destruir tudo. Ele se curva, fazendo reverencia para mim, se vira para trás e também faz reverencia para a garota, ou para a câmera... E então ouço aquele som de grana na conta. Ele está jogando aquele jogo ridículo?

Enrubesço, mostro o dedo do meio para o remetente e saio patinando pelas ruas. Ainda posso ouvi-lo pedir para esperar, mas não ligo. Que babaca. Eu aceitei esse emprego justamente para deixar meus pensamentos longe desse jogo, mas até aqui sou perseguido.

Essa foi a última entrega de hoje. Já posso ir para casa e descansar. Acho que é a primeira vez que presencio um desafio de NERVE depois daquele dia. Pelo menos não foi tão ruim. Não posso dizer o mesmo para aqueles pobres discos.

Antes de ir para casa, paro para descansar em um dos bancos da pequena praça, na frente do velho chafariz. Tiro meu celular do bolso, coloco meus fones e toco minha playlist. Só assim para me acalmar. Não está tão movimentado hoje, casais passeiam de mãos dadas e crianças brincam perto de uma árvore distante. O velho vendedor de doces não apareceu hoje.

Tiro meus patins e o soco na minha mochila das encomendas, tirando dela meus tênis confortáveis. Enfim, em paz. Odeio esses calos.

Abro o aplicativo de leitura e volto a ler meu livro de onde parei. Ato III, cena V, entram Romeu e Julieta, ao alto, na janela. Eu já fiz o Mercúrio na peça da escola quando eu tinha doze anos, meu melhor papel.

— Estou enjoada de ver você lendo este livro. Já deve ser a centésima vez.

Tiro rapidamente meus fones do ouvido e procuro o dono da voz que disse isso. Não notei que ela já estava sentada ao meu lado, com as pernas cruzadas. É a minha melhor amiga, Camila. Quando ela chegou?!

— É meu clássico favorito, gosto de ler quando estou desocupado e é curtinho — retruco. — Por que as pessoas são tão idiotas?

— Não sei, acho que elas esperam ganhar um prêmio com isso.

Dessa vez ela está certa.

— Literalmente. — Reviro os olhos. — O cara começou a destruir tudo o que encomendou na minha última entrega. Ele até queimou a caixa! Claro, era um desafio de NERVE.

Fecho o livro e abro o navegador, digitando o site de uma loja famosa e toco no celular cinza que quero. Tão perfeito, tão caro. Mesmo assim, não posso comprá-lo, preciso economizar para a minha faculdade — meus pais não poderão pagar tudo sozinho.

— Sério isso?! Minha nossa, Shawn, que droga. Você não precisava ficar lá assistindo.

Dou de ombros, desinteressado.

— Bem, não fui eu quem perdeu aqueles discos maravilhosos.

Camz balança a cabeça, concordando. Eu fecho o site do celular, digito o nome do jogo e clico no primeiro link que aparece.

— O que tem de tão especial nesse jogo? — Pergunto.

— Não sei. Algumas pessoas devem gostar de se arriscar, mas o mais interessante são os prêmios. Sem contar a Grande Final: o jogo oferece aquilo que as pessoas mais desejam, por mais bobo ou caro que seja.

A tela inicial mostra um texto seguido por um mural de imagens:

VEJA QUEM ESTÁ JOGANDO.

Passo por alguns vídeos grátis de pessoas que jogaram NERVE — são todos desafios preliminares, todos fáceis. Acho que eu poderia fazer um, só para testar. Toco em um vídeo e vejo a mim mesmo segurando uma caixa. É o vídeo do desafio daquele babaca. Depois que o vídeo termina eu aturo os gritos de xingamentos de Camila, que assistia comigo, para aquele homem. Quando ela desvia o olhar, aparece um anúncio de NERVE:

ENVIE SEU VÍDEO PARA DISPUTAR A

CHANCE DE COMPETIR NA PARTIDA AO VIVO

DESTE SÁBADO. NUNCA É TARDE DEMAIS!

É amanhã.

— Você já jogou NERVE, né? — Pergunto, pensativo.

— Já, mas faz bastante tempo. Eu fiz os desafios das preliminares, mas desisti nas partidas ao vivo: eu tinha que subir em cima de um carro da polícia. Não sou tão idiota a ponto de ser presa. Bem, perdi um belo par de botas do Loubotin.

Ela parece imaginar seu momento de jogadora meses atrás, depois volta a falar:

— A pior parte são os Observadores. Os Observadores online são ótimos, pois não fazem nada além de assistir. O problema está nos Observadores presenciais: te seguem como cães de caça, farejando como a patrulha canina narcótica. E eu nem era famosa.

Junto coragem antes de falar.

— Acho que quero tentar — digo rispidamente.

— Quê? Não mesmo. Eu não permito.

— Você não manda em mim — retruco, dando de ombros.

— Você não já passou por tudo que tinha de passar? Não se lembra daquele dia ou quer que o mesmo aconteça com você? Você sabe que eu sou superprotetora. Você não vai.

— Qual é, por favor — insisto. — Vai ser só um, prometo. Apenas para testar. Quero ver o que tem de tão legal ou desafiador neste jogo. Eu só preciso de um desafio.

Ela espreme os olhos para mim e range os dentes, bufa como um touro furioso e revira os olhos.

— Tudo bem. Eu deixo. Mas. Só. Este. Eu não quero ser chata, mas não quero que você passe por tudo aquilo. De novo.

Tomara que não.

 Animado, toco no grande botão intitulado INSCREVA-SE. Depois de alguns segundos, vejo duas opções: OBSERVADOR ou JOGADOR. Se eu for jogador, eu ganho prêmios após completar os desafios solicitados. Se eu for Observador, eu pago 20 dólares por semana para ter acesso ilimitado aos vídeos dos jogadores completando os desafios, e também viro fonte de conteúdo, basicamente sendo obrigado a gravar os jogadores ao meu redor para melhorar o repertório das imagens dos desafios.

Que absurdo! Paga para assistir e ganha para jogar. Clico em JOGADOR e sou redirecionado para uma página onde tenho que colocar todos os meus dados: nome completo, endereço, data de nascimento, números fixos e móveis, páginas de redes sociais... Tudo mesmo, que bizarro. Em contatos de emergências, coloco o número e nome de Camila, meus pais, e da Eleonora, minha outra amiga — apesar de ser uma cobra. O desafio tem de ser gravado ao vivo pelo celular do jogador como uma das regras fundamentais. A câmera do meu celular é péssima, droga! Bem, é só um teste e não sou pago para dar qualidade ao jogo.

Pronto, estou inscrito. Vejo a lista de desafios. São todos nojentos e estúpidos. Comer uma cebola inteira crua em menos de um minuto, quem faria isso? Eu gosto das minhas cebolas picadas e fritas. Mas tem um que parece bem fácil. Tenho que ir à cafeteria mais próxima e pedir um café do jeito que eles querem. Depois, preciso falar “café quente é uma delícia” antes de beber tudo de uma só vez. Parece fácil — e bobo. Toco em ACEITAR e me chega uma mensagem do NERVE dizendo:

VOCÊ TEM DEZ MINUTOS PARA

COMPLETAR O DESAFIO OU ESTARÁ

DESCLASSIFICADO.

Que rígido. Tem um Cafeinamente aqui na praça. Levanto-me do banco, atravesso a rua movimentada e espero na entrada da cafeteria que fica na esquina, Camila vem correndo atrás de mim. As paredes da loja têm bastante vidros e a entrada é bem larga, com um tapete grande e pisoteado dizendo “bem-café”.

— O que você tem que fazer? — Pergunta Camila.

— Pedir um café e beber tudo de uma vez — respondo.

— Só? Estou aliviada que o desafio não tenha sido “fique parado no meio da avenida e espere um carro te atropelar” — ironiza, mas não ri. Também estou aliviado.

Entrego para ela a minha mochila e, em seguida, o celular.

— Eu preciso que você grave. Aqui diz que é para ser gravado ao vivo para não correr riscos de ser editado, resultando em uma trapaça. Apenas faça.

Ela aponta o celular para mim e começa a gravar, quase escondida atrás da parede. Entro na fila — que não tem ninguém — e olho para o atendente. Ele olha para mim, balança a cabeça e sorri com os dentes. Ele deve ter quase o dobro da minha idade.

— Bem-vindo ao Cafeinamente, o que posso fazer por você?

Dou uma breve olhada para trás. Camila está olhando para mim através da câmera do celular. Ela levanta um polegar.

— Eu quero... — Grasno, e pigarreio. — Eu quero um café grande sem cafeína e sem espuma, um pouco de leite com xarope de menta, sem espuma, e o principal: extra quente.

Aposto que vou fracassar nesse desafio. É muito quente, eu sempre assopro bastante o meu café antes de beber. E é no maior copo. Não acredito que eu vou pagar mico logo no meu primeiro desafio. Alguns clientes olham curiosamente para mim por causa do meu tom.

— Camarada, isso é muito quente — comenta o atendente. — Você pode ter queimaduras. Não quer um pouquinho mais frio?

— Obrigado por se importar, mas eu realmente gosto do meu café extra quente.

— Extra quente aqui é 76ºC. Isso não é algum tipo de piada, é?

Meu tempo está acabando.

— Não. — Tiro uma nota de cinco dólares do bolso e coloco-a sobre o balcão. — Olhe, por favor, apenas me dê o meu café grande extra quente sem cafeína e sem espuma, com um pouco de leite e xarope de menta E SEM ESPUMA! Estou com muita pressa.

Eu realmente estou com pressa. Só tenho dez minutos para completar isso, não quis ofender o atendente. Ele guarda o dinheiro no caixa e vai preparar a bebida. Finalmente, quase perco o tempo do desafio.

Olho por sobre o ombro, Camila continua gravando e mexe os lábios sem falar, algo como "restam cinco minutos". Dou três passos até o outro balcão para esperar o meu café. Não acredito que irei mesmo fazer isto. Contanto que eu não passe vergonha, está tudo bem. Transmito o peso de uma perna para a outra enquanto vejo os movimentos do homem fazendo a bebida. Espero que ele não se queime — e nem eu.

A música baixa que toca na cafeteria me deixa mais nervoso ainda. Olho a vitrine de doces: vários cupcakes e muffins. Meu estomago ronca. Talvez eu deva pedir um bolinho...

— Aqui está — diz o atendente interrompendo os meus pensamentos. — Um café grande sem cafeína, com um pouco de leite, xarope de menta e totalmente extra quente. — Ele coloca o copo em cima do balcão. — E, é claro, sem espuma.

— Obrigado.

Encosto meus dedos no copo e sinto o calor. Este tamanho é muito grande, estou sentindo que vou me arrepender. Talvez eu devesse ter aceitado o desafio de comer a cebola em menos de um minuto. É apenas uma maçã picante.

Viro meu corpo para a direção da Camila. Ela levanta de novo o polegar para mim e fala que faltam dois minutos.

É agora.

— Café quente... — Nem eu consegui ouvir isso. — Café quente é uma delícia! — Basicamente grito.

Levo rapidamente a bebida até a minha boca e viro o copo. Primeiro, sinto minha língua queimar, depois minhas bochechas, então minha garganta, até mesmo meus dedos, mas não posso recuar agora. Vou engolindo tudo rapidamente e sinto meu estomago queimar estrelas. O leite está com um horrível gosto de queimado. Sinto um pouco do líquido quente derramar na minha blusa, não sinto mais meus lábios. Sinto o copo ficar mais leve. Quase lá, quase lá, quase lá... Terminei!

Tiro o copo da boca e respiro fundo. Minha blusa está toda molhada e quente do café. O atendente olha para mim com uma expressão furiosa. Derramei um pouco do café no chão — estou sobre uma pequena poça extra quente. Ele sai do balcão com um pano para limpar. Estou tão envergonhado.

— Foi mal — digo. — Pode deixar que eu limpo.

Ele me ignora. Me sinto mais envergonhado ainda quando olho ao redor e vejo todos os seis clientes olhando para mim, alguns estão até tirando fotos.

— Sai daqui antes que eu chame a polícia — diz o atendente enquanto se ajoelha na minha frente. Cacete, acho que não serei mais bem-vindo nesta cafeteria.

Lutando contra o piso extremamente liso, corro para Camila e puxo-a pelo braço para fora. Corremos de volta até a praça e vejo uma menina de tranças apontar a câmera do celular para mim. Isso é o que chamam de Observador ou é aquele tipo de pessoal misterioso que está estranhamente em todo lugar para filmar desastres engraçados e mandar para os programas de TV?

— Cara, isso foi muito engraçado — diz ela, gargalhando de mim.

Minhas entranhas estão pegando fogo. Levo meus dedos até os lábios e não os sinto — dormência pura.

— Camila, minha nossa, apaga essa droga de vídeo! — exclamo em desespero.

— Não dá — ela é rápida e rígida. — Foi gravado ao vivo, está nos servidores de NERVE. Não pode apagar, eles controlam tudo!

— Eu passei a maior vergonha! — choramingo.

— Nisso eu concordo. Satisfeito?

Ela para de rir, agora está séria.

— Não, eu não estou satisfeito. Eu quero esse vídeo fora da internet!

Camz joga o cabelo para trás e dá de ombros.

— Shawn, eu não posso fazer nada. Os criadores de NERVE têm total direito de todos os vídeos feitos pelos jogadores. Então, resumindo, o vídeo não é seu.

— Que ridículo — bufo.

Toda a escola vai ver eu me encharcando de café.

— Não quero mais saber de ver você jogando este jogo estúpido de novo, combinado?

— Tudo bem — respondo, revirando os olhos. — Não irei. Não quero passar mais vergonha. Vou para a casa, são nove e quarenta. Tenho apenas dez minutos para chegar. Minha mãe vai ficar preocupados se eu me atrasar.

— Eu sei. Também vou para a minha casa. Tenho que estudar para as provas finais da próxima semana e você também. Beijo, beijo.

Ela me entrega o celular e a mochila, trocamos uma batida de mão desajustada e ela vai embora. Ela mora no lado oposto de onde eu moro. Camila ficou irada! Prometi que nunca chegaria perto deste jogo.

Mas mandei bem.

Fecho o site do NERVE e coloco o celular no bolso da minha calça. Sento-me em um banco livre na praça e coloco meus patins de volta, tenho que voltar voando. Fecho todos os botões da minha camisa azul para que ninguém veja a grande mancha marrom de café e, com um impulso, vou patinando até a minha casa. O vento refrescante em meu rosto ameniza o calor dentro de mim, e o fogo nos meus lábios. Quando chego, faltam dois minutos para as dez. Minha mãe me esperava na varanda se agasalhando no seu velho cardigã, como sempre.

— Onde estava? — Pergunta Karen, minha mãe. — Sabe que horas são?

— 21:58 — respondo.

— Exatamente! Você não pode passar tanto tempo assim fora de casa.

Subo rapidamente para o meu quarto e desabotoo minha camisa. Tiro a blusa coberta de café e coloco-a junto das roupas sujas. Desvisto o restante da minha roupa e ponho meu pijama — um calção cinza curto e uma blusa de moletom preta. Vejo meu gato, Miles, dar um salto para a janela, ele lambe a patinha e eu o acaricio.

Coloco meu celular para carregar na minha escrivaninha abaixo da janela e volto para baixo para jantar. Isso se eu for conseguir comer algo. Além de, provavelmente, as minhas papilas gustativas estarem torradas, minha barriga está cheia de café. Sento-me na frente de onde um prato de macarronada feito pela minha mãe me já esperava. Como sempre, deve ter colocado no forno para esquentar. Ela sempre faz isso. Droga! Ela esquentou! Não quero comer mais nada quente por anos!

— Onde estava? — Pergunta novamente.

— Com a Camila. — Coloco uma pequena garfada de macarrão na boca. Quente, quente.

— Você não pode ficar chegando atrasado todos os dias.

— Mãe, eu nem me atrasei. Na verdade, ainda faltavam dois minutos. E já está na hora de parar com este medo bobo.

Ela mexe o nariz.

— Por que está com cheiro de café? — Minha mãe é pior do que Sherlock Holmes. Ela não pode nem imaginar que eu participei desse jogo. Ela piraria assim como Camila pirou.

Manuel, meu pai grita da sala:

— Ele já tem dezoito anos, deixe-o fazer o que quer! — Ele deve estar assistindo aos noticiários na velha televisão. Olho para a minha mãe e mexo a cabeça como se dissesse “concordo com ele”.

Dou outra pequena garfada no macarrão e bebo um pouco do suco de laranja. Sim, o suco está geladinho. É tão bom beber algo gelado, e não quente. Minha mãe bebe um pouco de água e sai da cozinha, derrotada. Ela sempre é muito rígida em relação a horários. Desde aquilo que aconteceu comigo, sua aura de proteção quadruplicou em relação a mim.

Lavo o que sujei, bebo um copo d'água geladinho e subo de volta para o meu quarto. Só consegui comer essas duas pequenas garfadas. Não estou a fim de comer mais nada. Além de eu não sentir gosto de nada, minha língua formiga e meu estômago está puro café.

Miles está deitado na minha cama, ronronando. Aproximo-me dele e faço carinho em suas costas. Miles é um gatinho sortudo que eu achei por acaso enquanto estava voltando de uma entrega. Ele era filhote e miava desesperadamente. Claro que eu não resisti; eu o trouxe comigo e dei todo o carinho que ele precisava.

Tranco a porta e dou uma última espiada no meu celular: nenhuma notificação, como sempre. Fecho a janela e me jogo na cama, quero dormir logo. Quando acordar, espero que aquele desafio do café tenha sido só mais um de meus pesadelos diários.

Nada aconteceu. Eu não tomei quase um litro de café quente como um idiota foragido de um manicômio e lancei o vídeo em um site que mal conheço que possivelmente é cheio de pervertidos e maníacos por tortura.

A quem estou enganando? Como uma borboleta nascendo, eu rachei a minha crisálida depois desse desafio. Não posso ficar no casulo eternamente, apenas me resta fugir dos predadores e bater minhas asas com cuidado para não acabar causando um furacão no Brasil.

Amanhã é sábado e eu tenho folga, tudo que precisava: um belo dia de descanso. Quero esquecer o que aconteceu na cafeteria. E voltar a sentir o gosto das coisas.

E dormir.


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Notas finais do capítulo

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