Moon Lovers: The Second Chance escrita por Van Vet, Andye


Capítulo 74
Gwangjong


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal, como vão os corações nesta reta final? Preparados para mais um capítulo enorme e emocionante? Esperamos que sim!

Neste capítulo nós vamos embarcar em Goryeo e muitas das perguntas as quais vocês nos fizeram ao longo da história serão respondidas (eu acho). Peço, entretanto, para que leiam este em um lugar calmo e sem interrupções, de preferência ao som de uma trilha sonora épica (O Último Samurai de Hans Zimmer, é a minha sugestão), e que tentem aproveitar a narrativa mais “formal” que ela tomará em alguns momentos. Como outro tempo está sendo narrado, gostaríamos de diferenciar a narrativa de alguma forma e ela ficou deste modo. Torcemos para que curtam!!

No demais, e como sempre, agradecemos a participação de todos durante toda a escrita dessa fanfic. Aos novos leitores, obrigada por estarem conosco e (Nossa, vocês nos surpreendem com a velocidade que leem). E yris, você mesma, muito obrigada pela linda recomendação que nos fez, além dos comentários ao longo de sua leitura! É sempre muito importante sabermos o que acham e nos deixa muito feliz a participação de cada um de vocês aqui, conosco ♥

Um grande beijo a todos: vocês fazem parte de cada linha narrada em todos os capítulos e nos que ainda virão.

Agora, deem play na trilha sonora e embarquem conosco pra Goryeo, mil anos atrás...



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I – UM REINADO PRÓSPERO

Quando o sol surgiu no leste no ano de 964, a península coreana prosperava em meio a um novo governante. A cada manhã, doces gotas de orvalho forravam as vegetações de todo o reino. Os pássaros que habitavam as árvores eram os mais engajados cantores. A terra era fofa e nutritiva, qualquer coisa plantada na primeira hora do dia vigorava saudável até os últimos instantes do crepúsculo. Os ventos gentis se prontificavam a refrescar as testas suadas de camponeses na lavoura. A água límpida se encarregava de multiplicar as colheitas, matar a sede dos homens e banhar um povo asseado por natureza. A vida era melhor.

Em um breve retrospecto, a apenas algumas décadas atrás, a Coreia era dividida em três caóticos reinados. Fome, destruição, doença e todo tipo de desgraça perseguia a população vulnerável. Uma família ia dormir com esperanças no coração e acordava com sua casa pegando fogo, os inimigos saqueando seus bens, matando seus filhos, violando suas mulheres e escravizando seus espíritos.

A condição sofrida daquela gente parecia nunca terminar até a chegada dos Wang e da Dinastia Goryeo. Os jogos de poder dentro do reino continuariam implacáveis, entretanto as provisões se tornaram maiores dentro das despensas e os impostos mais justos para o bolso daquela gente.

Não se conhecia o rosto da nobreza, mas era sabido que o Rei Taejo cultivara sua longevidade devido a seu caráter virtuoso, as rainhas eram tão belas quanto uma flor de lótus desabrochando na primavera e os herdeiros tão saudáveis e bravios como os cantores gracejavam dentro das casas de chá.

Os teatros de rua reproduziam cada um dos filhos Wang de acordo com suas lendárias características. As mocinhas suspiravam quando os títeres controlavam Wang Wook, o conhecido príncipe erudito, a recitar poemas e exalar fragrâncias.

As crianças riam dos artistas reproduzindo as trapalhadas dos príncipes Wang Eun e Wang Jung pelo palácio. Os espectadores se tornavam apreensivos quando um alazão de madeira, todo negro, com um cavalheiro também coberto de negro e mascarado, galopava pelo palco em busca de sangue inimigo.

Os primeiros anos do novo governo não haviam preparado a população para o banho de sangue que viria dentro das dependências reais a seguir. Tão logo o corpo do querido Rei Taejo esfriou, os seus filhos e suas nobres famílias estavam se despedaçando para conquistar o trono.

O primeiro príncipe, o breve e triste “Rei Louco” Hyejong, não conseguiu manter as qualidades do pai e tornou-se um estadista desequilibrado, dominado por paranoias e surtos. Nesse ínterim, forjou alianças fracas e deu poder a seus inimigos – que ele acreditava serem amigos. Sua morte foi tão insignificante quanto seu reinado.

O sucessor, seu irmão, corria boatos na corte, ser um sádico desvairado, responsável por, com suas próprias mãos, conspirar e assassinar o rei Hyejong. Os impostos ameaçavam subir junto com tamanha instabilidade no trono, e nas casas e ruas corria à boca pequena boatos de que xamãs eram contratados a preços escandalosos para que algo acontecesse com aquele rei. Nunca esses feiticeiros encheram tanto os bolsos como nesta época!

Por magia ou destino, o Rei Jeongjong padeceu do mal do primeiro príncipe: endoidou e morreu subitamente, embora fosse relativamente jovem e aparentasse saúde. Não houve tristeza após o anúncio de sua morte. O povo nem sequer fingiu diante das autoridades reais. Todos tinham uma preocupação mais importante para refletir. Suas cabeças quase formavam um luminoso ponto de interrogação, onde brilhava a pergunta: “Quem será o novo rei?”.

Debaixo de exclamações, das mais esperançosas as mais temerosas, Gwangjong apoderou-se do trono dourado que outrora seu pai e irmãos esquentaram, e de lá, bem do alto, encarando todos os ministros e generais, todos os representantes dos clãs que o reprovavam, todos os inimigos que se disfarçavam de meio-irmãos, ele se auto-intitulou Imperador.

Veja bem, há uma grande diferença entre Rei e Imperador. O primeiro deseja governar sem ter de se preocupar com aumentar suas conquistas territoriais. O segundo é expansionista e dominador. O Imperador pode ser sinônimo de guerra e subjugação.

A China inquietou-se diante de Gwangjong, o Imperador. Nunca antes um rei daquela península tivera a ousadia de se intitular como tal. Já havia um Imperador na ásia e ele era chinês. Que recursos, então, o Príncipe Lobo usaria para derramar sangue sobre sua gente?

O que começou com rumores inquietantes de um governo caótico acabou por se tornar o mais sábio. Houve menos fome do que em qualquer outro período da dinastia Goryeo até então. Os tristes relatos de pessoas morrendo de frio ou insolação após muitas horas de trabalho – ou mendigagem – deram lugar para visões de pais de braços fortes e filhos de rostos corados.

Os nobres, de início, espantados e preocupados com os excessos de bondade do Imperador, conseguiram se tranquilizar quando viram que o homem não era um tirano ou um desequilibrado como seus antecessores. Na verdade, ele era muito bom na arte da politicagem e, após o transitório momento de rebeldia daqueles que sobem ao trono e acham que podem tudo sozinhos, aceitou se aliar à princesa Yeon- Hwa e tornar sua linhagem mais poderosa.

Em todo o reino, a natureza voltou a responder a harmonia entre os homens, água, terra, fogo e ar se tornando mais generosos, benevolentes e maleáveis. O sol nascia e se punha em pé de igualdade para a maioria da população. A vida era melhor.

 

II – A FLOR QUE NASCEU NO OUTONO

Um honesto agricultor, um homem simplório que morava nos vales, em um local afastado, bem depois do palácio, voltava para a casa após terminar seu longo dia de trabalho. O sol implacável que tornava seus movimentos menos produtivos naquele verão, se despedia para além do horizonte tingindo o céu de laranja e soprando uma doce brisa úmida, vinda do rio que cruzava toda a aldeia, para amenizar a temperatura.

Este homem não era muito velho, mas sua aparência parecia carregar maturidade aquém. O serviço no campo castigara seu corpo e sua pele como era de costume na vida dos pobres, contudo, ainda era bonito e possuía uma tez diferente das pessoas de baixa classe do seu convívio.

Os vizinhos conheciam seu caráter, mas não conheciam seu passado. Ele queria assim. O quanto fosse necessário esconderia suas origens até dele próprio. Continuaria acreditando naquela mentira, porque fizera uma promessa, há muito tempo, para uma pessoa especial. Seguiria ocultando-se, porque precisava proteger outro alguém muito especial.

Por mais que suas mãos tivessem calos e suas roupas fossem surradas, todo o dia era um privilégio para o agricultor. Ele atravessava a trilha andando por cerca de quatro quilômetros entre as montanhas, apenas para poder vê-la esperando, quando retornasse para a casa. Nada era mais belo, nem a colheita mais perfeita ou o enluarar mais cheio, do que a paz interior que o invadia ao vê-la bem e repleta de vida.

― Me deixe carregar isto para o senhor, meu pai! ― ela exclamou, surgindo, toda enérgica, de algum ponto da trilha assim que Jung conseguiu avistar seu casebre.

― Assim você assusta seu pai.

― Duvido muito. O senhor tem uma saúde dos deuses. Está cansado, paizinho?

― Como todo o homem honesto após um dia de trabalho.

― Mas o senhor não disse que aguenta qualquer esforço porque é muito forte?

― Hum… Está querendo fazer troça comigo?

― Nunca, papai ― a garota riu saltitando entre as pedras pelo chão. Desde pequenina ela parecia guardar uma energia infinita no corpo, nunca parava quieta. Com o mesmo bom humor, estendeu os braços na direção dele.

― De onde veio? ― ele perguntou entregando uma cesta pesada de mantimentos a ela. Não adiantava reclamar, ¹Soh-ra era teimosia pura e precisava ser prestativa para se sentir útil, mesmo que já fosse muito importante e pesasse pouco mais do que um amontoado de penas.

― Estava pegando algumas hortelãs para mamãe ― apontou a cabeça para o punhado de ervas que repousavam atadas ao seu cinto ― Ela está com aquela tosse novamente.

― Vou chamar o médico da cidade para vir vê-la amanhã ― Jung refletiu, preocupado pela sua esposa e a tosse crônica, que ia e vinha em intervalos cada vez menores.

― Eu já chamei.

― Já chamou?

― Sim. Fui para o vilarejo assim que o senhor saiu para o campo. Ele está ocupado amanhã, mas estará em nossa casa daqui duas luas.

― Soh-ra ― Jung depositou o outro cesto que carregava no chão e pediu que ela fizesse o mesmo. Fitando o rosto perfeito de sua filha, apenas uma garotinha para ele, porém despontando no auge da adolescência, alertou ― Eu entendo sua preocupação com a mamãe. Você é uma boa filha e nos ajuda como pode… mas disse a você que não quero vê-la explorando as estradas sozinha.

― Por que, oras? Apenas caminhei para a vila, não segui por caminhos desertos…

Jung apoiou a mão no ombro daquela criança e esboçou não mais que um sorriso cansado. Ele nunca contaria a ela o quanto se parecia em beleza e generosidade com sua mãe, sua verdadeira mãe. Também jamais diria sobre a importância que pairava em torno das origens dela. Jung somente assistiria aquela linda flor que desabrochava diante de seus olhos e continuaria a escondendo para que ninguém mais a encontrasse.

― Filha, o papai é o chefe desta família. Ele quem deve cruzar as estradas sozinho e prover assistência a vocês. Entendo sua vontade de conhecer o mundo, conversar com as pessoas. Você é muito parecida com Hae… Você é muito parecida comigo em minha juventude. Contudo, seja obediente e não vá para além das cercanias de nossa aldeia. O reino está em paz, mas ele continua sendo perigoso.

― Me desculpe, papai ― Soh-ra concordou, resignada.

― Agora melhore essa carinha! Sorria e me ajude a levar os mantimentos.

Soh-ra acomodou sua parte da carga debaixo do braço e encaminhou-se para o casebre da família, uma modesta propriedade de madeira e palha, em meio a árvores de copas largas da floresta rareando naquele ponto.

Uma galinha fujona corria por detrás da casa acreditando não ter sido avistada. A garota observou o cercado contendo as aves e lembrou que ele precisava ser consertado para que o jantar parasse de escapar do terreiro.

Ela se encarregaria disto no próximo dia já que estava condenada a ficar confinada em casa. No fim, agradeceu a sua grande boca por não ter contado ao pai sobre o homem misterioso que conhecera e lhe dera uma carona a caminho da vila. Ele não a deixaria sair para o quintal pela próxima década se soubesse do fato

Jung observou-a de longe. Uma boa menina era ela. Hae Soo estaria orgulhosa, pensou, onde quer que estivesse. E talvez estivesse muito grata também por Jung honrar sua palavra e manter o nome que ela escolheu para filha. “Chame-a de Soh-ra. É em homenagem a uma grande mulher que eu conheci”.

 

III – O ESPADACHIM SOLITÁRIO

Fazemos então outro breve retrospecto, voltando mais cedo naquele dia, acerca dos fatos que Soh-ra escolheu cuidadosamente esconder de seu pai.

Todas as manhãs o condenado escravo realizava o percurso ordenado por seu senhor. Há três décadas, quando ele não passava de uma criança, a perna direita desenvolvera uma ferida horrível. A mãe colocara folhas e triturara emplastros selvagens para conter a infecção e, devido ao empenho daquela mulher, ele não morrera. No local onde o machucado o injuriara na infância, agora, a pele era friável e disforme, e o joelho, a infecção afetara sua articulação também, doía nas longas caminhadas. Ou seja, todos os dias.

Este senhor ia claudicando pela beirada da estrada, carregando frutos frescos do mar direto da orla da praia para o almoço de seu senhor, enquanto uma mocinha muito jovem, não mais do que quatorze anos, cruzava com ele debaixo do sol.

A doce jovem tinha os negros cabelos colados à testa e deveria vir de longe, afinal nenhuma aldeia ficava nas proximidades, contudo não parecia cansada. “A dádiva da juventude”, pensou o homem.

O escravo ofereceu um sorriso e um pouco de sua água para a menina, que retribuiu o primeiro mas recusou o segundo com deveras deferência.

― Não se preocupe, meu bom viajante ― ela o tranquilizou. O sorriso era tão refulgente que se o sol não estivesse quase a pino ela viraria uma real concorrente do seu brilho ― Me hidratei bem antes de sair de casa. Um ótimo percurso ao senhor.

― Igualmente, mocinha.

Para continuar em sua epopeia, a de não facilitar a vida dos menos favorecidos, o destino tratou logo de colocar uma dificuldade – mais uma – diante daquela pobre criatura manca.

A garota de doce face, Soh-ra, esta mesma, a filha do agricultor Jung, viu duas figuras mal intencionadas cavalgarem pela estrada. Eram dois homens em vestes maltrapilhas e modos esfomeadas, que abordaram o escravo e ordenaram que lhes entregasse as provisões.

― Não posso, não posso. Estas coisas pertencem ao meu senhor! ― o escravo choramingou vendo as duas criaturas cercá-lo.

― Diga ao seu senhor que ele deve fazer uma dieta, pois deve estar muito gordo ― um deles gracejou e o outro riu.

― Não, por favor.

― Solte este cesto ou vamos ser obrigados a cortá-lo em pedaços ― um dos elementos tirou uma faca das vestes.

O escravo se ajoelhou, chorando e implorando. Para alguém naquela condição, a morte era algo a ser considerado em comparação ao castigo que aguardava a incompetência de um homem sem liberdade. Nada garantia que os próprios assaltantes não fossem escravos fugidos, pessoas que viveram tanto tempo no limite das más condições humanas que já não guardavam compaixão ou identificação com o próximo.

― Soltem ele! ­― Soh-ra exigiu, no auge de sua indignação, testemunhando tudo do outro lado da estrada.

― Ora, ora! Uma alma caridosa…

― Vocês devem trabalhar e devem suar para garantir seu sustento. Roubar é errado. Matar é errado ― ela externou tremendo da cabeça aos pés.

Uma coisinha pequena e indefesa como ela tinha mais chance de atrair a curiosidade dos criminosos do que afugentá-los. Soh-ra aguardou corajosamente, o olhar bravio, um dos homens se aproximar de sua impotente figura. O outro continuava segurando sua presa firmemente pela roupa e observando divertido o que se sucederia de desigual embate.

A garota estava pronta para correr e era boa nisso. Ela tinha alguns segundos ainda para se decidir se retirava as sandálias e corria mata adentro ou encontrava algum argumento para salvar os dois. O homem, avançando rápido, a agarrou pela roupa antes que formulasse sua fuga ou sua retórica. Com apenas uma mãozorra ergueu-a do chão.

― Conheço um lugar onde uma coisinha como você valerá um ano inteiro de barriga cheia para mim e meu irmão.

Medo real, palpável, dominou a filha do agricultor. Somente ali se deu conta de como era frágil e como sua vida não significava nada caso alguém achasse isso. Seu pai sofreria, sua mãe sofreria, e Soh-ra viveria no além-mundo se culpando por ser tão descuidada. Mesmo que a indignação queimasse fundo dentro dela, havia pessoas que a amavam e a esperavam em algum lugar.

― Po… por…

A menina interrompeu sua frase. Uma quarta pessoa aderia ao grupo, um homem montado em uma espirituosa égua cinzenta, portando uma espada mortal na mão e uma máscara misteriosa no rosto.

― Solte a garota. Esqueça o velho. Sumam daqui se prezam por suas vidas.

A ameaça surtiu efeito e o homem realmente soltou Soh-ra, que caiu desajeitada no chão. Enquanto isso o cavaleiro vestido todo de preto desmontava de sua égua e criava uma parede protetora com seu corpo entre ela e aquele mau elemento.

― Escute, não o conheço mas acredito que é sensato o suficiente para saber que nos assuntos de gente como nós, ninguém se intromete. Portanto, monte o animal e vá embora que nós fingiremos que isto não aconteceu ― o sujeito barganhou ao mesmo tempo que retirava o arak enferrujado encaixado em sua cintura.

A presença do cavaleiro, entretanto, parecia intimidá-lo. Ele emanava uma aura esmagadora e esta ia de encontro ao fora da lei, torcendo o cabo de sua arma com a mão suada e tentando enxergar além, nervosamente, da figura negra à sua frente.

― Interessante… ― o cavaleiro resmungou ― Você tirou as palavras de minha boca.

Em dois movimentos ágeis, rápidos demais para os olhos de Soh-ra acompanhar, ele ergueu sua espada e cortou o ar. Cortou também a parte da frente das vestimentas do homem e seu chapéu de pano.

Atemorizado com a técnica invisível daquele mascarado, o fora da lei virou-se para o outro lado e se pôs a correr com seu comparsa no calcanhar.

A garota levantou-se, espanou a terra em seu corpo e andou alguns passos para ajudar o escravo que continuava de joelhos.

― Venha senhor, eu o ajudo ― ela ofereceu o braço para aquele pobre coxo.

― Deveria ter entregado essa cesta a eles. Se não estivesse aqui, as coisas poderiam acabar de um modo muito ruim para ambos ― o cavaleiro comentou, recolhendo sua espada e se aproximando da dupla que acabara de salvar.

― Agradeço ao senhor com minha alma, mas meu destino não seria muito diferente se eu retornasse para casa sem estas provisões.

A esta revelação o espadachim não argumentou, apenas encarou aquela mísera criatura silenciosamente através da máscara. Quem o olhasse com atenção diria “tristemente”.

― Seja como for, deve ficar atento e tomar um caminho diferente se faz este com frequência. Essa gente costuma ser vingativa.

― Obrigado… aos dois ― o escravo partiu pontuando sua despedida com um sorriso carinhoso para a menina. Soh-ra acenou até vê-lo sumir depois da próxima árvore.

De repente, era somente ela e aquela figura misteriosa na estrada. Curiosa, embora cautelosa, a menina cruzou seu olhar com o dele e notou que sua máscara cobria apenas metade do rosto como se cada lado de sua face tivesse uma personalidade diferente. Ele a olhava também com curiosidade.

― Eu agradeço também ― ela curvou-se ligeiramente em respeito àquela aparição providencial.

― A senhorita deveria estar em segurança, em casa.

― Preciso ir para o vilarejo, senhor.

― Então deveria seguir seu caminho sem se intrometer nos problemas dos outros.

― E ver aquele pobre escravo sofrer diante dos meus olhos? Sinto muito, o senhor não me conhece, mas não sou capaz de algo assim.

O cavaleiro suspirou fundo, parecia resignado.

― Ele é um escravo. Não há muito o que se possa fazer para ajudá-lo.

― Ele é um homem. E é tratado como um animal todos os dias ― a criança o corrigiu com uma maturidade superior a sua pouca idade ― Ninguém deveria ser dono de outra pessoa. Isso é errado.

Um longo silêncio se instalou entre os dois. Quem olhasse de fora, um espadachim longilíneo, todo vestido de preto e com uma máscara prateada no rosto, e uma menina do campo, mais graciosa que a maioria das damas de corte que já viveram no palácio, não imaginaria o quanto eles dois tinham em comum. Nem Soh-ra sabia dessa similaridade. O cavaleiro, entretanto, só galopava naqueles confins por isto.

― Aceite minha companhia, vou levá-la ao vilarejo.

― Não é preciso, senhor…

― Avistei mais dois bandos a caminho daqui ― ele mentiu para convencê-la ― Se tem medo de cavalos, pode se sentar na frente. Eu a seguro.

― Não tenho medo de cavalos! ― a garota rebateu inconformada por tal acusação.

 

IV – A REFORMA DOS ESCRAVOS

Pouco importa em que época ou cultura eles vivam, um rei, um imperador, um monarca, é muito mais do que o líder de sua nação. A responsabilidade de governar para o povo é algo gigantesco, não há dúvida quanto a isto, mas a governança tem mais de um papel.

Para seu povo, o rei é uma criatura sagrada. Este ser humano tem qualquer coisa de divino e espiritual. Mais próximo dos deuses, tão sábio quanto eles, pode tomar decisões para bem ou causar toda uma era de fome e morte se não estiver de bom humor. Como todo divino, seus caprichos podem destruir centenas. Como todo o divino, sua bondade pode mudar destinos.

Na Goryeo de 964², o rei Gwangjong inspirava respeito e aura santificada nas famílias pobres do reinado, entretanto, desconfiança nos nobres que rodeavam a corte. Sua personalidade reclusa deixava os ministros pouco à vontade em sua presença. Seu passado belicoso fazia os agregados da coroa temerem a volta do príncipe Wang So. E tudo o que este homem gostaria era poder usufruir de alguma liberdade.

O eunuco do rei, um senhor que servia a corte há alguns anos, caminhou a passos rápidos na direção do seu suserano assim que o encontrou, o interpelou, e curvou-se diante dele. Estava utilizando-se de um gesto respeitoso quando, na verdade, sua intenção era ganhar tempo.

― Majestade! ­― exclamou ― A rainha procura por Vossa Graça há horas. Ela desejava saber onde a Majestade se encontrava.

O imperador, vestindo uma bela túnica negra e dourada, reluzente na luz daquele dia ensolarado, olhou para o eunuco e esboçou um semblante contrariado.

― Diga a sua rainha que ela deve se preocupar mais com suas jóias, seu herdeiro e suas roupas, do que com o que faço no meu dia.

O eunuco o olhou com apreensão. Por instantes, ponderou sobre a forma como o rei havia colocado a palavra “herdeiro” em meio a “joias” e “roupas” e se aquilo era proposital.

― O que há?

― Vo-vossa Graça… Devo mesmo dizer isto?

― Não. Eu mesmo digo ― e saiu pisando duro em direção a ala onde a rainha costumava passar os seus dias fúteis.

O eunuco foi obrigado a interrompê-lo novamente.

― Majestade.

Gwangjong o observou, impaciente, por cima do ombro. O homem andou curvado, com os mesmos passinhos roedores para ele:

― O conselho o espera na sala do trono, Vossa Graça.

― Eu não solicitei nenhum conselho hoje.

― Foi… Foi a Rainha, Vossa Graça. Ela que os chamou.

― O que Yeon-Hwa está querendo…? ― O rei murmurou consigo ― Prepare minha coroa.

Na sala do trono, o local onde o destino da nação e os jogos de poder aconteciam, a rainha Hwangbo Yeon-hwa aguardava, reunida com uma dúzia de ministros, a chegada do rei.

A ex-princesa estava vestida em tecidos finos, confeccionados na corte do Imperador Chinês, mesclando em cores lilás e vermelha e estampas florais. Suas orelhas adornadas em brincos de rubi traziam mais luz a seu rosto.

Ela permanecia jovem e bonita, exatamente igual há treze anos, quando o artista do palácio a pintou ao lado do Gwangjong. Entretanto, quem a olhasse atentamente, sem ser percebido e açoitado antes por ousar encarar aquela régia mulher, veria rugas brotando ao redor dos seus olhos e nos cantos dos lábios.

Aos sussurros, os mexeriqueiros da corte comentavam que era apenas a idade chegando àquela criatura. Outros, contudo, teciam argumentos mais contundentes sobre as preocupações que consumiam a rainha.

“Aconteceu igual ao irmão, o príncipe Wang Wook” eram os murmúrios mais comuns. Aquele jovem príncipe que sempre povoava o imaginário das pessoas por ter definhado e morrido com um aspecto envelhecido em pouquíssimos anos, após o decreto de exílio do rei.

Outras línguas eram menos fatalistas quando aos seus argumentos. “Criar um futuro rei não é tarefa fácil”, diziam. Realmente, o filho da rainha e do rei crescia como um garoto muito revoltado e tempestuoso, gritando em teimosia pelos cômodos do palácio sempre que algo não saía como gostaria. Apenas uma pessoa, que quando fazia sombra a este proto monarca, parecia intimidá-lo: O pai.

Mais suposições se erguiam sob aquela camada de conversas secretas. “Ele odeia o filho”, “O menino não é filho de Gwangjong”, “O rei irá exterminá-lo, como fez aos irmãos, caso um dia o herdeiro se insinue como uma ameaça a seu poder”.

De todas as possibilidades, a primeira parecia, constantemente, a mais contundente. O Imperador media seu sangue com tanto desprezo que era como se a criança fosse um inseto ou qualquer coisa que o valha.

― Recebam Gwangjong, o Imperador deste reino! ― o arauto bradou assim que as portas do salão se abriram.

A Rainha, o príncipe criança – ultimamente obrigado pela mãe a estar nas reuniões do conselho mesmo sem entender nada – ministros e generais, se curvaram enquanto Gwangjong se encaminhava para o trono. O homem debaixo da coroa, de olhar entediado, em nada tinha em comum com o espadachim trajado de preto, perambulando pelas estradas do reino, horas atrás.

― Rainha, exijo saber. Por que este conselho foi convocado sem minha autorização?

― Vossa Graça ― Yeon-Hwa exibiu o seu lendário sorriso pérfido ― Um assunto urgente surgiu e eu, como a representante máxima desse reinado, depois do Imperador, me vi na obrigação de adiantar a questão. Ministro, por favor, queira expor ao Imperador o problema que se desdobra sobre nossas terras.

O político solicitado avançou para o meio do salão, a fim de ficar de frente para seu suserano. Gwangjong observou o homem com desprezo, era mais um dos Hwangbo. As entranhas do conselho pululavam de familiares da rainha como um celeiro infestado de pulgas.

― Vossa Graça, os escravos do porto se rebelam novamente. Devido a terrível indisciplina deles, o castigo precisou ser aplicado e tivemos várias baixas.

― Além disso, majestade, uma doença se alastrou entre eles e muitos não suportaram. Perdemos os garotos quase em idade de trabalho também ― endossou outro ministro.

― Agora estamos ficando sem mão de obra. É preciso criar com urgência uma solução sábia ou a cidade não se expandirá ― retornou o familiar da rainha.

O conselho aguardou ansioso as palavras do rei. O problema era urgente e muito dinheiro seria perdido caso não o resolvesse rápido. Como Gwangjong não dizia nada, apenas continuava de cabeça curvada, comungando com seus pensamentos, a rainha tomou a frente daquela quirela.

― Se os senhores e a majestade tiverem a bondade de me escutar, tenho uma solução que favorecerá esta condição em muitos aspectos. Eu sugiro que nós retiremos a liberdade dos aldeões das vilas depois das montanhas, aqueles que andam reclamando sobre o preço dos impostos e os atrasando, enquanto nossos barcos sobem para o norte, em busca de mais pessoal.

Os integrantes do conselho acharam a alternativa esplêndida. Olhando-se com entusiasmo se puseram a concordar eufóricos pela possibilidade de minar dois problemas de uma única vez. Como aquelas pessoas eram dispensáveis, poderiam utilizá-los como bem entendessem, na intensidade que achassem melhor, afinal, escravos mais disciplinados logo viriam pelo mar.

― Não ― a resposta de Gwangjong foi breve, mas soou definitiva aos ouvidos que a escutavam.

― Majestad… ― a rainha tentou argumentar.

― Eu disse, não ― ele reforçou lançando um olhar implacável sobre a mulher, que não abaixou a cabeça, por ser Hwangbo Yeon-Hwa, entretanto, corou de raiva encarando-o.

― Como será resolvido então, Vossa Graça? ― o ministro Hwangbo replicou feito uma criança mimada. Certamente o joguete todo havia sido simulado entre aqueles dois.

“Eu estou cercado de manipuladores”, pensou o rei.

Há alguns dias, na pele do cavaleiro mascarado que percorria o reino livremente, Gwangjong cavalgara na direção do porto. Lá, viu escravos machucados trabalhando arduamente pelo cais, porém nenhuma revolta.

Por mais que houvesse miséria naquela gente, havia também conformismo. Eles não estavam se revoltando, assim como, ele tinha certeza, não estavam acabando. Aquela era uma tática apenas para recrutar a população da aldeia e, por um pequeno instante, teve medo de que a rainha estivesse a par da pessoa especial para ele que vivia ali.

Mas não, ele tomava sempre muito cuidado, eram somente as artimanhas da mulher para ganhar o gosto do conselho e deixá-lo em baixa conta com os mesmos.

― Majestade, por favor…

― Não posso mais escravizar as pessoas deste reino.

― Me perdoe, mas são apenas criaturas sujas e burras.

― É verdade, Vossa Graça. Eles já são escravos de sua própria ignorância.

― Não são ― o rei rebateu, a lembrança da filha lhe trazendo recordações de mais cedo. Do pobre homem que daria a vida para bandidos na estrada, porque não queria enfrentar a ira de seu senhor. A bravura de Soh-ra em enfrentá-los. A verdade nas palavras daquela criança ― Ninguém deveria ser propriedade de outra pessoa ― parafraseou a menina ― Eu abomino o que ocorre neste reino.

― O que quer dizer? ― a rainha perguntou, incisiva.

O conselho se entreolhou, em pânico. Não era possível controlar Gwangjong quando ele fazia o olhar obstinado do guerreiro de outrora.

― A partir de hoje, eu decreto o fim da escravatura no reinado de Goryeo!

O salão incendiou em murmúrios perplexos e revoltados. Yeon-Hwa mal poderia conter sua frustração enquanto o jovem príncipe, sem entender muito bem os meandros do estado, encarava seus progenitores apreensivo. A rainha rebateu:

― Não pode! Vai desestabilizar as principais famílias! Vai desestabilizar a todos nós!

― O conselho vai dizer aos seus representados que, em vez de buscar mão de obra gratuita, oferecerão emprego às centenas de desamparados deste reino. Um salário justo e horários flexíveis seriam bem-vindos. Sei perfeitamente que os cofres dos senhores está repleto, portanto ninguém morrerá se seus lucros diminuírem um pouco. Vou providenciar a elaboração do edital.

― Isso é um absurdo ― a rainha continuava descontrolada.

― Assim que a lei entrar em vigor, colocarei meus soldados pessoais para vigiar os portos e, se algum navio atracar com escravos, o dono deste navio será condenado a forca.

― Como pod…

― E, Rainha Hwangbo, se continuar a se dirigir a mim com tanto desrespeito ― reprimiu a mulher diante de todo o conselho ― serei obrigado a tomar medidas sérias a respeito da sua postura. O conselho está dispensado.

 

V – A SOLIDÃO DE UM HOMEM

Gwangjong não se importava com o que as serpentes dentro do salão do trono falariam sobre ele. Ele conhecia sua fama na corte, os nobres o desprezavam desde quando ele era somente o filho nada confiável do Rei Taejo. O cachorro louco mascarado.

A única coisa que insistiu em irritá-lo era recordar a pose de Yeon-Hwa. Em outras circunstâncias, ele poderia mandar açoitá-la por sua insubordinação perante os ministros, contudo, uma vez que se tornara rei, Wang So descobriu que não era tão fácil ser implacável.

Um dia Yeon-Hwa fora apaixonada por ele. Este tempo passou com os anos de desprezo e ódio que ele fez questão de depositar sobre aquela união. Hoje sabia perfeitamente que ela não hesitaria em conspirar-lhe contra e, com tanta consideração entre os nobres, seria perigoso tê-la como inimiga declarada. Havia um limite para até onde ele conseguia provocar a cobra sem correr o risco de se envenenar.

Enfim, deixou o caos para trás. Retornando para seus aposentos reais, o lugar em que queria estar desde que havia chegado ao palácio, ordenou para que lhe vestissem com trajes mais leves e adentrou na sua biblioteca particular. Era um espaço pequeno e quase secreto, ao lado do quarto. Ali, passava muitas horas lendo e pesquisando sobre o maior objeto do seu desejo, descobrir uma maneira de chegar até Hae Soo.

Sim. Hae Soo era seu passado, seu presente e, consequentemente, seria seu futuro. Não havia um único dia em que ele não pensasse nela. Uma única semana que não sonhasse com a boca macia encostando na sua para um beijo delicado. Uma única ocasião que ele não relia as cartas finais de seu amor e se emocionasse com a crueldade doce dentro delas.

“Você ainda está irritado ou guardando ressentimento? O oposto do amor não é o ódio. É desistir de alguém. Eu abandonei você com ódio, em vez de amor. Me perguntei se não tinha deixado você descansar em paz. Eu te amo.

“Quando você jogou tudo para o ar para ficar ao meu lado na chuva. Quando você jogou seu corpo na direção da flecha para me proteger. Eu nunca poderei esquecer. Anseio por ti. Também sinto sua falta. Entretanto, eu não posso ir até você. Eu me cansei da crueldade no coração de um homem bom. Espero que um dia possamos nos reencontrar. Eu esperarei por você todo dia”.

Ler suas palavras finais continuava produzindo os efeitos da primeira leitura. Causavam-lhe dor e enchiam-lhe os olhos de lágrimas. So sentou-se numa cadeira próxima e esperou a emoção amainar para guardar os pergaminhos nos envelopes cuidadosamente outra vez.

Aquela pequena mulher chamava-se mudança e alterou por completo seu destino sombrio quando eles se encontraram pela primeira vez na beira de uma estrada. Hae Soo fez Wang So conhecer o amor fraterno, mesmo que por pouco tempo.

Fez também o príncipe amargo entender seu valor, se provando pela benevolência, não pela espada. Ela conseguiu quebrar a casca que o envolvia, e foi com seu toque, com sua percepção simplista, que partiu em cacos este escudo duro e calejado no homem, revelando a bondade de seu coração selvagem.

As palavras dela eram estranhas assim como seu comportamento. Ela não tinha muita noção do perigo e era absolutamente encantadora por isso. Agia como um animalzinho impulsivo pululando nas margens de um lago habitado por dezenas de crocodilos. Se comportava como se a vida fosse algo descartável e, ao mesmo tempo, único. E passou grande parte desse espírito para ele.

Ah, se Wang So pudesse retornar ao passado! Ele a resgataria na estrada, a observaria de longe, deixaria que ela escondesse sua cicatriz com suas mãos talentosas, tomaria o veneno, se oporia à sua execução, a protegeria debaixo do seu capuz, receberia a flechada… Ele faria tudo de novo, mas desta vez prestando atenção aos detalhes.

Ji Mong disse ‘Ela não era deste tempo’. De certa forma, So sempre soube disto. Ninguém daquela época seria capaz de ganhar o amor dele. Ele mesmo achava que não pertencia àquilo tudo. Portanto, ela só podia ser um fenômeno não natural. E, por mais obstinado que ele fosse, ela era mais, e conseguiu ultrapassar o tempo deles, retornando para sua origem.

Mas, se Hae Soo conseguiu chegar a Goryeo, por que Wang So não poderia chegar aonde quer que ela estivesse?

Ele sentia, sentia no fundo da alma, e às vezes esse sentimento era mais lúcido do que sua própria vida, dentro dos sonhos, que ela não estava morta. Sumira daquela época, mas vivia em algum lugar e não no sentido celestial da coisa. O corpo poderia ser mortal, mas a sua alma era volátil, e escapara numa fenda invisível aos olhos cegos dele.

Era como se sua passagem pela vida daquele príncipe fosse toda pautada em uma missão. Será que era fazê-lo conhecer o amor? Nunca ninguém cuidara dele como ela. Será que era torná-lo rei? O príncipe antes dela não tinha ambições de trono. Será que era transformá-lo em alguém mais justo? Não houve nenhuma justiça no modo como ele a tratou no fim de tudo.

Era um luto estranho, aquele. Gwangjong não sabia se ficava entristecido pela solidão que o rodeava ou ansioso pela possibilidade da essência dela flutuar de novo para aquele tempo. No fim, sua existência se resumia às obrigações reais e aos pensamentos demorados, repletos de expectativa, sobre Hae Soo.

Uma coisa, ao menos esta, parecia certa para So… e também o incomodava. Se Ji Mong guardava tanta convicção sobre Hae Soo, ele tinha segredos. O rei não deveria ter deixado o astrônomo que serviu o palácio por tanto tempo abandonar suas funções. Ele estava fugindo, agora estava claro…

Por que?

O que Ji Mong escondia e não queria que So soubesse a tempo de se dar conta deste fato?

“Ela não era deste tempo”.

Aquela resposta não bastava, ele precisaria encontrar o homem novamente para ter sua resposta definitiva e, com toda certeza, o encontraria. Sua busca não terminaria até que o objetivo fosse alcançado.

 

VI – O MONGE QUE ADIVINHAVA NAS ESTRELAS

No ano de 966, Gwangjong permanecia irrequieto. Não era a fúria das famílias nobres, obrigadas a emancipar seus escravos e lhes pagarem salários, declarando secretamente ódio ao Imperador, que causavam a impaciência dele.

So havia tomado outra missão para si, uma que considerava mais crucial. Ele ordenara aos soldados reais percorrerem todos os recônditos de Goryeo atrás do astrônomo Choi Ji Mong. Se o homem não tivesse mudado sua aparência e modos, não haveria de ser alguém difícil de se localizar. Ao menos foi com esse otimismo que o Imperador encarou sua busca.

Alguns anos transcorreram sem que ninguém tivesse uma localização precisa deste ex-funcionário real. O monarca solitário logo partiu para desesperados cálculos mentais, imaginando que idade o astrônomo teria – So era infante quando Ji Mong profetizava através das estrelas para o Rei Taejo – imaginando que ele falecera de alguma doença devido à idade. Esta possibilidade era a mais aterradora de todas para So. A esperança de saber algo mais sobre Hae Soo se tornara a força motriz que o impelia dia após dia.

Foi quando, numa manhã nublada de primavera, os soldados reais vieram com notícias promissoras.

Dizia-se que em um templo budista a oeste do país, um monge chamava à atenção por sua adoração às estrelas. Ele se tornara uma espécie de adivinho, acertando se as mulheres grávidas teriam um filho ou uma filha, e se os pescadores retornariam do mar mais prósperos na próxima temporada, apenas observando o firmamento.

So, tendo um palpite otimista sobre tudo aquilo, resolveu ir conferir pessoalmente àquele tal monge.

A viagem seria razoavelmente exigente. Mais do que isto, seu único conselheiro confiável, um rapaz com quase metade de sua idade chamado Gang Won, parente do príncipe Baek-Ah, alertara que o Imperador deveria singrar as terras do seu reino o mais seguro possível.

Resignado, Gwangjong concordou, partindo numa escolta de vinte espadachins habilidosos ao redor de sua liteira fechada. Caso algum nobre raivoso encomendasse o assassinato do monarca durante o trajeto, teria de ultrapassar vinte espadas e, por fim, a própria lâmina do rei.

Nenhuma intercorrência perigosa atrasou-os na viagem de cinco dias. O único causador de retardamento dentro da escolta fora o Imperador.

Ao ultrapassarem as montanhas para lá do vale, fez questão de alongar o percurso, desviando por uma aldeia solitária assentada naquele ponto.

Para os soldados contou que gostaria de conhecer, mesmo que fosse pelo fino pano que cobria sua liteira, os locais mais humildes de Goryeo. Para si, So estava querendo desculpas para rever Soh-ra, que ficara receoso de reencontrar por longos dois anos, desde que Yeon-Hwa quisera manipular o conselho a fim de escravizar a região.

Hae Soo deveria ter algo a ver com a sua sorte neste dia, pois teve a felicidade de reencontrar a filha de braços dados ao pai postiço, o irmão, Jung, encarando a comitiva armada real passar pelas ruas.

Ela apontava diretamente para o veículo, mas obviamente não podia vê-lo através das cortinas vazadas. Estava linda e alta, esplendorosa aos seus dezesseis anos. A vida pulsando em cada gesto.

Jung fitava o pano com um olhar misto de desconfiança e desafio. Amava Soh-ra tanto quanto o pai verdadeiro e seria capaz de enfrentar a escolta de Gwangjong sozinho se ele estivesse pensando em levá-la dali.

Mas o Imperador estava somente de passagem e deixou a aldeia bastante taciturno, a tristeza o abatendo por horas, até que ele se lembrasse do motivo da viagem.

Exaustos, no quinto dia, cavalos, servos e soldados conquistaram o cume da montanha mais alta de uma cadeia delas. Neste cume, So saiu de sua liteira e caminhou o trajeto restante, ‘Sozinho’, exigiu quando alguns soldados tencionaram acompanhá-lo em direção ao templo despontando adiante.

Ao chegar em frente à construção religiosa, ele não avistou nenhuma pessoa. Tudo era quieto e pacífico ali, embora o vento soprasse agressivo vindo do sopé da montanha.

Iniciou passos cautelosos para dentro do local, querendo ser respeitoso com a meditação dos budistas existentes ali. Já percorrera o salão principal e os corredores de pedra ao redor e não encontrou nenhum monge. Não havia nada. Era como se o templo estivesse inabitado há, pelo menos, alguns meses.

So começou a se sentir angustiado. Ele vinha atrás de respostas, não atrás do nada! Correu para uma nova porta à sua frente que levava a outro salão inóspito. E mais uma. E mais outra. O coração batia loucamente no peito, raiva e frustração corroendo-o e, então, avistou um promontório de pedra ao lado de duas pilastras, construídas noutra saída do templo.

Caminhou para fora, uma ventania feroz chacoalhando as árvores e as suas roupas daquele lado do cume. Ji Mong observava-o de longe, encostado em uma das pilastras. Ele sorria não havendo envelhecido um único mês daqueles onze anos que desaparecera… e era, So soube tão logo o sentiu, algo muito além de um ser humano.

― Eu estou te procurando.

― Eu sei ― Ji Mong sorriu bondosamente para o rei.

― Você volta comigo. Agora.

― Não é assim que as coisas funcionam, Wang So.

― Eu sou Gwangjong, seu Imperador. Não mais Wang So ― ele tentou se impor. Ji Mong o analisava quase como se estivesse achando a empáfia do monarca divertida ― Está rindo? Está fazendo troça de mim?

― Por que essas coisas são tão importantes para vocês?

― Que coisas? ― aproximava-se lentamente do astrônomo para que ele não pudesse fugir quando estivesse perto o bastante.

― Poder. Submissão. Subjugação.

― Eu vim até aqui por um motivo muito importante ― alternou a tática ― Não me interessa se não quer retornar ao palácio, eu o entendo, mas você precisa me contar mais sobre Hae Soo. Sei que você sabe sobre ela. Sabe como posso chegar até ela.

― Hae Soo morreu, meu caro.

― Não, não morreu! ― gritou raivoso. Ji Mong deslizou para a lateral da pilastra calmamente.

― É muito cedo para seu espírito.

― O que é muito cedo? ― So estava quase o alcançando. A mão ergueu-se com afinco, ia pegar o outro pela roupa e sacudi-lo para que falasse coisa com coisa de uma vez por todas.

― Nos encontraremos no crepúsculo deste tempo, Wang So. Até lá.

O astrônomo escapou dos dedos do Imperador por mile segundos. Ao relembrar este ocorrido, mais tarde, So saberia que nunca esteve perto de pegar o que quer que fosse aquilo. Ji Mong rolou dois passos para trás da pilastras e, como se fosse feito de pó, não estava mais ali.

 

VII – DESGOSTO

Em Goryeo, a ordem privilegiada das coisas continuava a mudar para os nobres. A Reforma dos Escravos, como ficou conhecido este decreto de emancipação dos escravos por Gwangjong, trouxe instabilidade aos cofres das famílias mais poderosas da península. Ademais, os recém-libertos pagavam impostos simbólicos à coroa ao passo que exigiam pagamentos justos dos seus antigos senhores.

Todo mês uma leva desses antigos senhores, inconformada, batia às portas do palácio em busca de audiência com o Imperador para reclamar desta insatisfação. Gwangjong parou de recebê-los ao perceber que estas pessoas queriam somente o retorno à sua antiga condição mesquinha em detrimento de um acordo justo para todos.

Assim, crescia a impopularidade do Imperador entre os ricos e aumentava, em igual proporção, a empatia com o restante da população. Ele se tornava adorado nas ruas e execrado na corte. De um modo ou de outro, estava desenhando o reinado único que, séculos mais tarde, fascinaria os leitores nos livros de História.

Sua intenção não era continuar provocando a ira daqueles que já o detestavam, mas encontrar um modo justo na vida de todos. Quem nascia pobre morria pobre, emancipados ou não, e esta era a verdade suprema de Goryeo.

No ano de 968, cansado de ver incompetentes em cargos régios do Estado apenas porque eram filhos, netos ou sobrinhos de alguém importante dentro da ordem vigente, o Imperador decretou mais uma lei transformadora. O nepotismo estagnante daria lugar à meritocracia inclusiva. Deste modo, naquele ano, ele derrubou cargos comprados com parentescos e instituiu um novo sistema de seleção.

O ³Exame do Serviço Nacional Civil, uma cartilha elaborada em mais de trezentas páginas, privilegiaria qualquer pessoa no reino que se candidatasse e passasse nos exames reais para se tornarem funcionários públicos.

A nova lei enfureceu, sobretudo, à rainha Yeon-Hwa que era a maior beneficiária do sistema antigo, colocando todos os aliados e membros do clã Hwangbo possíveis ao seu redor. Agora, qualquer Hwangbo que quisesse fazer parte da cúpula do Imperador, teria de se provar para tal.

O príncipe Wang Ju pediu para encontrar Gwangjong dias depois da nova lei entrar em vigor. O pai o recebeu na ala do rei, isto após muita insistência do filho, e parecia entediado, encarando os jardins cultivados daquele lado do palácio com olhos baços.

― Vossa Graça ― Wang Ju se curvou para seu nobre pai. Gwangjong olhou-o de soslaio e voltou a observar as flores adiante.

― Meu tempo é precioso, diga de uma vez.

― Eu vim em nome de minha mãe…

― Então está perdendo seu tempo ― o Imperador o cortou secamente.

― Mas é importante!

― O que haveria de ser importante envolvendo Yeon-Hwa? ― perguntou repleto de desprezo. Encarou o garoto, seu filho, mais parecido com a mãe do que um dia se pareceu com ele.

― Ela está desolada pela aprovação do Exame Nacional. Sua integridade como rainha foi abalada terrivelmente com a nova lei. Havia promessas e alianças sendo cuidadosamente cultivadas por ela durante todos esses anos.

― Então só me basta comemorar este fracasso.

O príncipe mirou o Imperador tristemente. Havia algo dentro do rapaz que queria, a todo custo, amar e admirar o poderoso pai. Mesmo que sua mãe fizesse-lhe a cabeça desde a tenra idade contra aquele homem, ele gostaria de conhecer o amor dele um dia.

Entretanto, a cada frase de Gwangjong dirigida a ele, aquela possibilidade parecia mais e mais distante, como um barco a deriva cada vez mais impossibilitado de chegar à encosta.

― Por que… Por que despreza tanto minha mãe? ― o príncipe perguntou.

― É este o real motivo de querer me ver?

― Por que… me odeia tanto também?!

O Imperador finalmente desgrudou os olhos do jardim e virou-se para o príncipe com algum brilho no olhar.

― Tem certeza que sua mãe nunca lhe contou nada? Yeon-Hwa não disse nenhuma vez sobre como me manipulou e roubou minha felicidade anos atrás?

― Ela me disse daquela mulher ― ele respondeu rancoroso.

― Não ouse abrir essa boca imunda para falar dela! Ela era a coisa mais importante da minha vida.

― E eu sou o que? Um dos seus eunucos? Mais um criado desta corte? ― Wang Ju explodiu, lágrimas raivosas nos olhos.

― Você é somente uma arma que Yeon-Hwa gerou contra mim.

O príncipe retirou-se da presença de Gwangjong violentamente, tremendo da cabeça aos pés. O monarca o observou até perdê-lo de vista, pensando na coisa horrorosa que havia dito e como seria gratificante imaginar o rosto da rainha ao descobrir esta decepção a qual seu rebento experimentara…

De pequenas vinganças, era assim que viviam.

 

VIII – A FRUSTRAÇÃO QUE NÃO ABRANDA

A satisfação do soberano governante de Goryeo se mostrou passageira. Horas após o término da discussão com o príncipe Wang Ju ele voltava a se sentir deprimido de novo. Sua consciência queria chamá-lo para uma reflexão sincera sobre como ele vinha tratando aquela criança, que de nada era culpada pelas escolhas dos pais. O homem magoado, contudo, era incapaz de amar algo que viesse da união dele com a meia-irmã.

Hae Soo continuaria não existindo naquela altura, So sabia disso. Mas se Yeon-Hwa não conspirasse para afastá-la, os anos finais do seu grande amor poderiam ter sido mais esperançosos. E o restante da vida dele menos solitária.

A busca deveria prosseguir. Se havia esta chance, a dele pedir perdão por seu orgulho imbecil, e pela manipulação esmagadora da rainha, faria tudo que fosse cabível para tê-la.

Sua cruzada não abrandara. Gwangjong oferecia recompensas generosas para quem trouxesse informações precisas sobre Choi Ji Mong. O astrônomo poderia sumir nas brumas de uma manhã cerrada, porém o Imperador podia percebê-lo espreitar. A presença mágica o perscrutando de algum lugar.

“Nos encontraremos no crepúsculo deste tempo…”

Qual era o significado destas palavras? Qual o significado desta existência? O significado de Hae Soo e Wang So? Dicas o ajudariam… Pequenas, míseras, misericordiosas dicas! Por que? Por que Ji Mong o castigava tanto com seu silêncio? Eles não eram amigos, afinal, quando o quarto príncipe retornou ao convívio dos outros herdeiros? Ou tudo não passara de uma farsa? Qual o grande segredo em torno daquilo?

O eunuco do Imperador pediu licença para invadir a privacidade dos pensamentos de seu suserano e informou que a pessoa solicitada por Gwangjong o aguardava. Gwangjong acenou solicitando a entrada deste e aguardou, ansioso, para ver quem vinha lá.

Tratava-se de um camponês maltrapilho de olhos sagazes. Não lhe era permitido chegar a menos de dez passos do rei, portanto ajoelhou-se à distância esperando permissão para falar.

― Onde o viu? ― obviamente o homem era mais uma das centenas de habitantes do reino que haviam confirmado avistar Ji Mong.

― Vossa Majestade, vida longa e próspera a ti.

― Não estou para paciência, aldeão. Viu o astrônomo Choi Ji Mong ou não?

― Na verdade, Minha Alteza, sua fama o precede. É sempre justo com os pobres e luta para conseguir melhores condições a todos nós ― Gwangjong o olhava com frieza. Em seu interior, a raiva nascia incandescente, pois começava a supor que o homem nada tinha a informar sobre o astrônomo, o munindo de esperanças à toa ― Minha esposa padece de uma doença terrível e não consigo sustentar meus pequenos filhos porque tenho de cuidar dela…

Irado, o Imperador não deixou o camponês terminar. Pegou a espada da bainha de um dos seus soldados e, levantando-se de um ímpeto, ergueu-a ao ar na direção do mentiroso. O pobre espertalhão encolheu-se no chão como um caracol se protegendo dentro de sua carapaça ao passo que sua vida era decidida pela rompante de raiva do Imperador.

Transtornado, se vendo prestes a cometer o assassinato de um inocente, So jogou a espada no chão e cambaleou para trás, sentando-se na poltrona novamente. Com movimentos secos, ordenou ao seu séquito:

― Tirem este maldito da minha frente. AGORA!

 

IX – FUNERAL NAS MONTANHAS

Goryeo entrava no ano de 971. Os ânimos no reino de Gwangjong permaneciam sobre o manto da dualidade. De um lado, as principais famílias deixavam claro sua insatisfação com as “regalias” que o Imperador concedia aos pobres, e, por outro, a população tomava aquele homem como uma divindade.

Um dia, um retrato de Gwangjong foi furtado do palácio misteriosamente. Poucos meses depois, centenas de gravuras reproduzindo a do furto estavam espalhadas nos mais diversos casebres, bares e pocilgas da península.

O Espadachim Solitário, Wang So, Gwangjong, ou seja lá o nome pelo qual as mais diferentes pessoas o conhecessem, precisava ser mais cuidadoso quando saía do palácio. A máscara que usava agora cobria-lhe toda a fronte, não apenas a metade, pois ser reconhecido pelo seu povo poderia se tornar um risco.

Os campos amanheceram tristes, ele sentiu, antes mesmo do mensageiro lhe entregar a carta de Baek-Ah. Fazia muito, muito tempo que ele aguardava alguma notícia de seu amado irmão, mas sabia que quando ela viesse não seria trazendo boas novas.

Angustiado, não somente pelo conteúdo da carta, mas também pela reverberação que o evento poderia ter na vida de alguém que amava, Gwangjong vestiu a máscara, o manto negro, subiu em um cavalo veloz e partiu para o vilarejo para lá das montanhas.

Chegou perto do fim da tarde ao seu destino, o topo de uma colina isolada, de fronte para um sol cochilando cada vez mais para além do horizonte. Amarrou o equino exausto num tronco de árvore e caminhou para a sepultura a frente. Havia alguém em pé sobre o amontoado de pedras. Ele estudava o túmulo do irmão com olhos tristes e bondosos, vendo alguma beleza na homenagem simétrica criada por sua família.

― Os mesmos passos duros ― Baek-Ah resmungou à aproximação de So.

So estava em conflito. Embaixo da terra jazia o irmão com quem ele nunca se dera muito bem, porém que aprendera a admirar por cuidar de sua filha. Ao seu lado se postava o irmão que ele mais amava, e que o magoou ao abandoná-lo e evitá-lo por tantos anos.

So queria chorar ajoelhado a perda de Jung e abraçar forte Baek-Ah no reencontro deles, contudo só conseguiu se postar ao lado do outro Wang e encarar a sepultura como este fazia.

― Quando ele morreu?

― Faz algumas semanas. Eu lhe enviei a carta assim que soube. O mensageiro atrasou devido ao problema com os nobres enviando bandidos para desencorajar o comércio dos ex-escravos nas estradas.

― Como ele… morreu? ― ainda era difícil para So acreditar. Jung era tão forte e cheio de vida.

― Ele foi acometido pela tosse, o mesmo mal que a levou. A mesma doença que tirou Lady Hae da nossa companhia... Que levou nosso irmão Wook.

Ficaram olhando para a última morada de Jung em silêncio e remoendo as memórias de outrora. Muitas coisas haviam acontecido em suas vidas. Esperanças em vão; A partida de pessoas queridas; Os sentimentos de frustração que dominaram e enegreceram ambos os corações.

So gostaria de aproveitar aquele pouco tempo que tinha com Baek-Ah para lhe perguntar por que se esquivara tanto? Por que sempre mentira dizendo que não estava em casa em todas as vezes que Gwangjong fora lhe visitar? Por que tanto ódio dele?

“Eu fiz o meu melhor, meu irmão”, ele quis dizer em voz alta, entrementes, outra vez se privou, restringindo as palavras no campo dos pensamentos.

Baek-Ah cultivava, podava e regava batalhas internas semelhantes. Por um lado, não conseguia compreender por que direcionava tanta amargura para aquele irmão, no fundo um eterno solitário. Por outro, os últimos instantes de Woo Hee repetiam-se como um teatro de horrores abissal ecoando na mente dele sempre que revia o Imperador.

Era impossível vê-lo sem associá-lo àquela desgraça. Mesmo agora, enquanto um sentimento reconfortante de nostalgia queria envolvê-lo por reencontrar o irmão, a raiva brotava n’algum lugar dentro dele e vencia a batalha com confortável vantagem.

Baek-Ah virou-se para o irmão e o encarou. Se ficou espantado por ver apenas os olhos do mais velho debaixo da máscara, não demostrou. Mas o rei viu coisas diferentes no rapaz que adorava tocar. Ele envelhecera. Não tanto quanto So e os seus quarenta e um anos mal vividos, mas envelhecera.

― Estou verdadeiramente orgulhoso das coisas que promoveu pelo nosso reino. Nosso pai ficaria tocado pelo seu altruísmo.

― Baek-Ah…

O irmão começou a se afastar da sepultura de Jung. Não queria estreitar nenhum laço a mais, somente deixar este elogio tão merecido impresso entre eles. Era certo de que, se dependesse de Baek-Ah, aquela seria a última que vez se veriam, e não queria que So guardasse somente coisas ruins dele. Sorrindo docemente, disse ao mascarado:

― Eu vou indo, está ficando tarde.

― Tudo bem ― o outro desistiu do diálogo entendendo que o momento dos dois passara.

― Jung não guardou rancor. Ele também entendeu a estupidez em que todos nós afundamos. Continue governando bem, irmão. Adeus.

Também. Este era o modo de Baek-Ah dizer que havia perdoado So e esperava que ele entendesse, afinal, como imaginou, foi a última vez que se reviram naquela vida.

So acompanhou a partida do outro Wang até que este montasse no próprio cavalo e retornasse pela trilha não podendo mais ser avistado. A seguir, de coração oprimido, voltou a fitar as pedras que cobriam Jung. Abrandada a tristeza e a melancolia com a perda definitiva de todos os seus irmãos, outra coisa afligia-o.

 

X – SOH-RA

A pequena Soh-ra, uma flor que nasceu no outono, e que já não era tão pequena assim, caminhou pela trilha guiada sob a luz do luar em direção ao túmulo. Ela retornava de um dia exaustivo de trabalho no campo. Deixou seu irmão do meio em casa cuidando do mais novo e pediu para eles iniciarem os preparativos do jantar. Eram dois bons irmãos.

Eles continuavam vivendo no casebre da aldeia, embora parecessem perdidos sobre o que fazer a seguir.

A mãe partira anos atrás, e com a morte recente do pai, não sobrava ninguém sensato com quem conversar sobre o futuro. Seus irmãos eram imaturos e ainda estavam muito sentidos pela perda do patriarca. Soh-ra, entretanto, deveria ser forte na frente deles. Era somente na colina, ajeitando as pedrinhas que aqueciam Jung, que ela se permitia chorar e fraquejar.

Assim que alcançou o topo da colina, Soh-ra estarreceu. Outra pessoa já se encontrava aninhada na nova morada de seu pai.

Em meio a escuridão da noite e sobre o brilho prateado da lua, ela pôde enxergar somente uma silhueta negra, ajoelhada na terra. Sentindo medo, contudo irritação por ver alguém perturbando o descanso do pai, Soh-ra encheu-se de coragem e avançou:

― Quem é o você?

A figura ergueu-se, sobressaltado, e a encarou. A garota teve de segurar um grito tamanho o susto e estranheza que foi deparar-se, de súbito, com o sujeito vestindo uma máscara.

― Desculpe ― ele falou gentil.

― Quem é você…?

Ele continuou olhando-a. Parecia fascinado com algo no rosto dela, o rosto simples de uma camponesa, e Soh-ra temeu que o desconhecido a atacasse por algum motivo escuso. Apalpando a faca que sempre carregava consigo no cinto, às costas, preparou-se para lutar.

― Soh-ra, eu sou… eu era um amigo do seu pai.

― Você conheceu meu pai? ― ela perguntou incrédula, porém afrouxou a guarda da faca quando ele mostrou reconhecê-la.

― Sim. Há muito tempo ― se voltou para o túmulo.

― Qual o seu nome? Talvez ele tenha me dito algo sobre você.

― Não sou ninguém em especial.

Mas era uma figura curiosa. Mascarado, esguio e respeitoso, a jovem tinha a sensação de reconhecê-lo de algum lugar do passado. Em alguma lembrança importante, porém fugidia.

― Papai era cheio de mistérios assim ― ela, por fim, suspirou.

― Ele era um bom homem.

― Ele era incrível. E me amava muito.

― Não há dúvida disso, realmente.

Aos poucos, sentia que o homem ao seu lado não representava perigo. Um bem-estar a invadia lentamente por estar em sua companhia e um pouco da triste solidão que arrematava seu coração ao chegar ao topo da colina pareceu evaporar.

Ainda o observando discretamente e de perfil, Soh-ra procurava resgatar aquela figura em suas memórias.

― E a sua mãe, como vai?

― Logo se vê que você não via meu pai há muito tempo. Minha mãe morreu faz cinco anos.

― Me desculpe por isso ― ele se lamentou com sinceridade ― Sinto muito pelo seu pai também.

― Você não tem nada com que se desculpar. A culpa da doença deles é da família Hwangbo e da ganância da rainha! ― exclamou irritada.

― O que a rainha tem a ver com isso?

― O Imperador Gwangjong foi a melhor coisa que esse reino já viu. Meu pai mesmo sempre dizia isto com orgulho. A rainha e seu clã, entretanto, agem contra nós. Ela está por trás da fixação de impostos mais altos, por exemplo, depois que a Reforma dos Escravos aconteceu.

O mascarado retornou a fitá-la. Desta vez, ainda que com metade do rosto oculto pelo apetrecho, não havia dúvida de que estava surpreso.

― Como sabe dessas coisas?

― As pessoas da corte acham que somos meros plantadores de arroz emburrecidos pela nossa pobreza, mas não é assim. Nós temos informantes e sabemos das coisas que acontecem contra nosso Imperador e contra nós.

― Não, você sabe mais? ― ele a rebateu, muito sério.

Soh-ra o mediu com cautela.

― Você é funcionário real?

― Não.

― Então por que quer saber tanto sobre meus meios?

― Apenas… eu… Fiquei incumbido de olhar por você e seus irmãos caso seu pai partisse cedo. E vou logo alertando, se está se embrenhando em politicagem, reforço, não vale a pena.

― Sou muito grata à sua preocupação… senhor ― ela disse com maturidade. De fato, Soh-ra possuía vinte e um anos e era uma mulher para lá de resiliente ― Papai ficaria feliz de saber que os amigos dele cumprem suas promessas. Ele honrava as palavras, contudo, não precisamos.

"Sou perfeitamente capaz de cuidar de mim e dos meus irmãos, assim como tenho discernimento suficiente para saber o que vale a pena ou não. Meus pais morreram trabalhando muito e ganhando pouco devido a corrupção deste reino e a falta de lealdade daqueles abaixo do Imperador. Nada disso é certo."

― O Imperador é fraco, Soh-ra. Ele não vale a pena.

― Ele é forte e eu poderia denunciá-lo aos guardas reais da aldeia por dizer essas coisas horríveis sobre Vossa Majestade, mas eu não vou… Pelo seu olhar, vejo o quanto deve ter sofrido por este mesmo governo e sou capaz de entender sua dor. Só seja prudente quando soltar suas opiniões precipitadas.

― Eu estou falando sério.

― Eu também ― anuiu e já não sentia mais nenhum medo dele, pois enfim o reconheceu ― Sei quem você é. Salvou minha vida anos atrás, na estrada para o vilarejo, de dois bandidos armados.

O mascarado respirou forte e relaxou os ombros, qualquer coisa como estar estafado de convencer o inconvencível.

― Você é tão parecida com a sua mãe... Tem a teimosia dela e… e a mesma esperança inocente nas pessoas erradas.

― Estranho... Papai sempre dizia isso, embora eu achasse mamãe dócil e flexível perante qualquer decisão.

― Olha ― tentou desconversar ― Posso dar assistência a você e aos seus irmãos. Vocês não precisarão trabalhar duro e ter o destino de seus pais. Tenho uma dívida antiga com Jung e preciso cumpri-la. Esqueça o resto do reino, deixe tudo para o Imperador, e aceite minha oferta de viver com mais tranquilidade, longe da confusão.

Soh-ra pegou uma das mãos do homem e envolveu entre as suas. Seu toque era quente e delicado fazendo o mascarado estremecer à sombra de recordações dolorosas. Docemente, ela encerrou o assunto:

― A dívida morre com o homem, é assim que é. Além disso, pagou sua contenta com meu pai quando salvou minha vida naquela vez. Agradeço a bondade. Agradeço a preocupação. Somos somente dois desconhecidos e deste jeito deve ser. Sem pendências de outrora, tudo bem? Vá em paz e continue ajudando pessoas necessitadas pelas estradas como fez comigo. Este é o único pagamento que posso aceitar.

E era deste modo. Soh-ra nunca poderia saber quem era o homem à sua frente, da mesma forma que So nunca poderia dar muita atenção a sua filha com Hae Soo sem despertar, mais cedo ou mais tarde, a atenção – e a ira – de Yeon-Hwa.

Com o coração pesado, o mascarado despediu-se da jovem mulher, um misto gritante do físico e da personalidade de sua Soo-ya e dele, desejando que o futuro só encontrasse caminhos seguros para ela.

 

XI – MIL E UMA TEMPESTADES

Já era 974 e os sonhos com Hae Soo se tornavam mais reais. Suando em sua cama real, o Imperador afundava num sono agitado encabeçado pela falecida amante.

Eles eram duas pessoas diferentes vivendo em um tempo diferente, com uma nova chance em suas mãos. Hae Soo continuava representando a enigmática figura de Goryeo, entretanto parecia mais angustiada do que quando existira naquele tempo. E ele não possuía coroas, muito embora sentisse o peso de um legado sobre seus ombros.

“Se tivéssemos nos encontrado em outro mundo e em outro tempo, eu estava pensando em quão bom isso seria”. Mas eles estavam em outro tempo e não parecia bom. Era angustiante e sufocante como fora ali. Impossível, como ali.

Gwangjong acordou assustado, agarrado aos seus lençóis como uma criança desamparada no meio do mundo. Seu coração batia frenético e a garganta estava seca.

Deixou os olhos acostumarem-se com a escuridão do quarto enquanto tentava se lembrar do sonho terrível que tivera. No outro mundo em que eles se encontravam, ele morria.

Desnorteado, o Imperador deixou a cama e caminhou tropegamente, se guiando pela luz noturna das janelas, em direção à sua biblioteca particular.

Uma vez dentro do ambiente, acendeu as velas próximas à escrivaninha e começou a vasculhar as centenas de pergaminhos sobre lendas e mistérios que cercavam viagens no tempo que conseguira angariar ao longo dos anos.

Tudo uma grande baboseira! Exasperou-se agarrando as estantes e empurrando os móveis com toda força contra o chão. O estrondo alertou os guardas e criados naquela ala, que se empoleiraram atrás da porta, alertas.

Saíam imediatamente daqui e me deixem sozinho! ― o Imperador gritou para a porta antes que qualquer um resolvesse entrar e verificar.

Sua cabeça fervilhava em frustrações. Quando reencontrasse Ji Mong trataria de lhe aplicar a lei real máxima por sua ousadia em deixá-lo sem respostas. Por transformar suas noites em um inferno e seus dias em desespero. Uma confirmação de que Hae Soo o esperava ou existia em algum plano inalcançável serviria para tranquilizá-lo e fazê-lo morrer em paz.

Wang So possuía então quarenta e nove anos e não sabia mais quanto tempo viveria para conseguir suas respostas. As intrigas no palácio sugavam sua vitalidade com uma velocidade atroz e cada novo amanhecer era uma batalha pessoal para um corpo derrotado.

O guerreiro mascarado se despedira de sua carcaça há tempos, desde que se tornou fácil para Soh-ra reconhecê-lo na multidão, e apenas o monarca recluso operava agora.

Desesperançoso, So sentou-se em cima de uma das prateleiras tombadas e, levando as mãos ao rosto, farto de tudo e de todos, até dos sonhos malditos que se tornavam mais frequentes com o passar dos anos, chorou de soluçar.

De volta à sala do trono, os ministros, a rainha e o príncipe herdeiro aguardavam a entrada do Imperador Gwangjong. O homem adentrou no recinto bastante cansado. Era fatigante discutir os assuntos de costume e ter de olhar nos olhos de tantos inimigos.

Desta vez, a pauta era a mais recorrente entre eles, a questão dos escravos. Há uma semana um navio repleto de escravos vindos das terras de cima foi interceptado pelos guardas reais. Seu comandante, um nobre viajante, teve a prisão decretada e a sentença capital estabelecida pelo Imperador em pessoa como prova de seu punho firme contra as questões escravagistas. Agora, os ministros pediam que Gwangjong lhe concedesse o perdão.

― Ele não sabia da questão, Vossa Graça. Faz mais de uma década que Mi Kwang não pisa em Goryeo ― o ministro Hwangbo suplicava ao Imperador.

― Se não sabia, então por que ele escolheu o porto norte, por detrás das cordilheiras, onde a minha patrulha não costuma ficar, para atracar?

― Isto foi apenas uma questão de costume…

― Quem se acostuma a desembarcar no pior trecho do cais? As barragens podem perfurar o casco de um navio facilmente e, até onde meu conhecimento me permite saber, pedras não mudam de lugar com as décadas.

― Será uma decisão complicada para Vossa Graça se Mi Kwang for executado. Ele é importante para o nosso meio ― a rainha se intrometeu, ácida.

― Importante para que meio? ― ergueu uma sobrancelha ― Certamente não estou incluído nesse “nosso meio”, porque este sujeito não passa de um ladrão trambiqueiro para mim, Minha Esposa Real.

― Pode ser perigoso de muitas formas. Para muitas pessoas diferentes.

― Estou sendo ameaçado? ― o monarca inquiriu inclinando-se diretamente para Yeon-Hwa, a meia-irmã que parecia ter cada dia menos medo do seu poder.

― Perdoe-me interrompê-lo, Vossa Graça ― o príncipe Wang Ju se postou perante ao pai caindo de joelhos num gesto exageradamente dissimulado. Ao falar, seus olhos não conseguiam esconder o mesmo ódio que a mãe sentia pelo pai ― Perdoe-me também, minha rainha. Ela não lhe falou por mal, apenas se preocupa com o reino e o seu bem-estar. A população pode ser a maioria, mas as famílias nobres são as forças motrizes de nossa evolução. É necessário refletir atentamente as escolhas que parecem corretas em uma primeira ótica.

Os ministros concordaram com o príncipe, balançando a cabeça efusivamente e murmurando entre si. Gwangjong levantou-se do trono raivoso, não aguentava mais tanto circo, e esbravejou seu decreto final:

― Não admito uma criança me dizer o que é correto ou não. Meu decreto é superior ao de todos aqui e está dado. Quem quiser se despedir de Mi Kwang tem até ao meio dia de amanhã para tal. Depois desse horário, será possível somente conversar com sua carcaça enforcada e rodeada de mosquitos no pátio!

― É realmente uma pena ― Yeon-Hwa resmungou, lamentando com um sorriso lacônico, outra coisa além da execução do nobre.

O Imperador deixou a sala sentindo o cerco de cobras se fechar ao redor de seu corpo, pressurosos para sufocá-lo de uma vez por todas de seu trono.

 

XII – O ÚLTIMO DIA DE GWANGJONG

Sobre os Wang pairava uma espécie de maldição, um ciclo infinito de ganância e matança. Cabia ao céu e às estrelas guardiãs dos príncipes e princesas daquela dinastia, apenas a observação entristecida do banho de sangue que se desenrolava abaixo deles.

Após a sucessão selvagem entre os reis Hyejong, Jeongjong e Gwangjong, o trono estava prestes a sofrer um novo golpe. Se irmão matando irmão era algo terrível de se testemunhar, filho matando pai, era estarrecedor.

O ano de 975 ficou marcado por vários acontecimentos em Goryeo. As famílias nobres mancomunadas à rainha não faziam nenhuma questão de esconder sua insatisfação pelo governo do Imperador. A morte por enforcamento do nobre Mi Kwang, exigida pelo monarca como resposta a sua desobediência contra o tráfico de escravos, tornou-se a faísca raivosa que incendiaria a cúpula de ministros e senhores contra a sua Majestade.

Yeon-Hwa conhecera o ano de 950, o ano em que Wang So subiu ao poder, e que ela, então princesa, precisou agarrar-se ao régio irmão para sobreviver à guerra dentro do palácio. Desde então, seu esposo a odiava e Yeon-Hwa não era mais uma princesa com poucos recursos para aceitar isto. Ela era rainha e tinha poderes, o maior deles, um príncipe herdeiro ao seu dispor.

Wang Ju fora tão destratado pelo pai como um capacho poderia ser destratado por um pé enlameado. Não havia mais compaixão por seu progenitor no jovem rapaz, embora, no início, a própria rainha estimulara algum afeto. Hoje, Yeon-Hwa via os benefícios do afastamento entre eles, porque senão nunca teria o filho nas mãos para implementar o golpe que almejava.

Do outro lado da sociedade, e sendo tão perigosos quanto, crescia-se um levante em favor do Imperador.

A população tornou-se livre, mais digna e com maiores perspectivas de crescimento quando Gwangjong subiu ao poder. De certo, ele não era a solução de todos os seus problemas. Passariam vários séculos e gerações até que metade daquela gente humilde tivesse condições dignas de vida. Entretanto, aquele monarca fora o primeiro a prestar atenção à maciça pobreza de Goryeo e aqueles que tinham conseguido alguma voz através dele não queriam perder isso. Ele realmente se tornara uma espécie de divindade em algum ponto no imaginário deles.

O grupo de camponeses e ex-generais miseráveis a favor do Imperador possuía olhos e ouvidos dentro do palácio e sabiam que o ataque contra Sua Majestade aconteceria em breve. Assim, como Gwangjong, que aguardava impotente o seu desfecho.

Nos últimos dias antecessores ao golpe, Wang So não deixava sua ala. Ele sentia a urgência dos opositores como respiros pressurosos penetrando as paredes de seu quarto e umidificando a madeira.

Quando a refeição chegava, ordenava que algum criado provasse primeiro. Quando tomava banho e ficava longe de sua espada, dispensava todos os criados em quem não confiava e deixava apenas seus homens leais postados nas portas de entrada. Se precisava aventurar-se para além de sua segurança, era cercado por um séquito de espadachins bem treinados.

Em outros tempos, não requisitaria nenhuma escolta, se defenderia sozinho confiando em sua destreza. Atualmente, contudo, ele se sentia cada vez mais envelhecido e incapaz.

A noite terrivelmente aguardada finalmente chegou. Uma marcha composta por centenas de camponeses se direcionou para o palácio exigindo a cabeça da rainha e dos ministros conspiradores.

A gritaria e o movimento do lado de fora era grande, vozes raivosas e archotes ardentes, mas a rainha conseguiu sair na surdina com seu filho por uma das muitas passagens secretas daquele lugar.

Perto da alvorada, como uma última ordem à sua guarda aliada, ela ordenou para que os portões fossem abertos e, no meio da confusão da população ensandecida, eles assassinassem a guarda do Imperador, além dele próprio, para que posteriormente pudessem culpar os revoltosos.

Ia madrugada alta, os portões do palácio muito distantes dos aposentos do Imperador ainda, quando o primeiro assassino veio atentar contra Gwangjong. Inicialmente era um homem só que subestimou os guardas reais morrendo ao fim de um combate intenso às portas do quarto de seu alvo régio.

Gang Won, o homem de maior confiança de Wang So, surgiu no quarto e informou com urgência.

― Eram os guardas da rainha, Vossa Graça. Eles estão tentando assassiná-lo.

― Isto era imaginado ― So começou a vestir um capuz negro por cima da roupa real onde escondeu sua espada afiada. As mãos não eram mais jovens e ágeis, mas ele faria o melhor que conseguisse para sobreviver. Ainda não encontrara Ji Mong e esta era sua maior missão de vida.

― Mataram três dos nossos.

― Então somos três agora.

― Não, Vossa Graça, são dois.

― Eu também vou lutar ― ele mostrou sua arma cortante mergulhada na bainha.

A gritaria e o som de batalha crescia solto nos pátios externos. Ecos de morte e dor reverberando num palácio que vira tantas coisas belas. A guarda exterminando os revoltosos como a rainha ordenara a eles.

O segundo atentado veio uma hora após o primeiro. Eram quatro assassinos desta vez.

Os dois guardas da porta lutaram bravamente numa luta injusta dois contra quatro e conseguiram salvar seu Imperador, mesmo um deles morrendo no processo. O outro vivia, bem ferido, mas vivia.

― Vossa Graça, precisamos sair daqui ― Gang Won retornou para informar o rei nervosamente.

Gang Won era um rapaz baixinho e pouco atlético, mas Wang So sabia que ele daria tudo de si, até a vida, para salvá-lo.

― Então vamos ― Gwangjong suspirou encarando seus aposentos pela última vez. Algo lhe dizia que nunca mais retornaria para ali e que também não voltaria a vestir a coroa que tanto o fez se sentir bem e, depois, sofrer.

O guarda ferido, Gang Won e Gwangjong escaparam da ala do rei se esgueirando pelos recônditos das construções palacianas.

Não demorou para descobrirem que as passagens secretas estavam todas sendo vigiadas e o guarda ferido precisou perder a vida numa dessas tentativas para salvar o monarca. Sozinho, o moribundo segurou muitas espadas e pediu para que sobrevivessem, ganhando um tempo precioso aos outros dois.

Gwangjong teve de continuar correndo e lutando, correndo e lutando, para garantir sua sobrevivência.

O nascer do sol começava a despontar no horizonte e ele pôde ver suas roupas tomadas por sangue inimigo. Pode ver, além disso, o pátio em frente aos portões principais, atapetado por corpos sem vida. Sua gente… morta. A esta altura o combate havia se encerrado e aquele lugar nunca fora tão silencioso.

So encarou aquele mar de pessoas, sangue e esperanças estateladas às portas de seu palácio e estancou.

― Vossa Graça, devemos continuar. Mais guardas podem surgir a qualquer momento.

― Por favor, Gang Won, me dê um tempo ― ele ergueu a mão, pedindo para o outro se calar.

Penalizado, So caminhou entre os corpos. O Rei Taejo ficaria muito decepcionado ao ver o tipo de coisa que andava acontecendo em seu reino. Ele criara os filhos para serem justos e se amarem, não para matarem inocentes em jogos de poder vazios. Hae Soo ficaria decepcionada também. So havia lhe prometido ser justo e bom, mas morrer assim, como animais, não era justiça alguma.

De repente, ele encontrou alguém caído entre os corpos que fez seu coração congelar. O choque de avistá-la foi tão grande que as pernas tremeram e bambearam, ele não achando possível se movimentar sem tombar bobamente.

― Soh-ra… ― chorou agachando-se diante do corpo da filha.

Aquela moça tão linda, metade ele, metade Soo-ya, estava destroçada no chão. Em volta de uma gigantesca poça de sangue repousava de olhos fechados com a expressão semelhante a de um anjo dormindo nas nuvens.

O pai a tocou docemente e aproximou seu tronco ao dele, acariciando-a. Ninando-a como nunca pudera fazer.

― Soh-ra… Minha filhinha… Eu disse para que fosse prudente.

― Vo-vossa… graça… ― a garota arfou, como se despertasse da morte.

― Soh-ra, você está viva!

Mas não era bem isso. Seus olhos seguiam desfocados, cruzando lentamente a linha tênue da vida e da morte, teimosamente, retornando apenas para se despedir do pai.

― Como… é.. bom… vê-lo… ― ela o tocou na bochecha com sua mãozinha delicada e sujou o rosto de So de sangue. O sangue dela que era o dele também.

― Filha, me perdoe ― ele soluçava.

― É bom… vê-lo… s-seguro…

― Você devia ter sido mais cuidadosa. Devia ter escolhido se afastar daqui.

― Hum… ― a luz estava deixando-a ― Vo...vo… você… mais bonito… que… imaginava…

E morreu. Wang So a segurou com a mesma impotência com que havia segurado o jazigo de sua mãe. No fim, era sua culpa mais uma vez. Se ele tivesse sido um pai melhor, se não repetisse o ciclo de raiva e descaso com Wang Ju, como a Imperatriz Yoo fizera a ele, o príncipe herdeiro poderia ter conhecido o amor do Imperador e ajudado-o a impedir este terror.

― Vossa Graça, precisamos ir ― Gang Won chamou-o aflito ― É nossa chance de escapar.

So queria morrer ali. Não via sentido algum em continuar vivendo com Soh-ra morta em seus braços. Era tudo tão cruel. Entretanto, ele devia perdão a Hae Soo por aquilo e precisava encontrar Ji Mong nos confins de Goryeo ou do mundo, a qualquer custo.

Depositando a filha cuidadosamente no chão, enxugou o rosto ensanguentado, levantou-se trêmulo, e seguiu com seu criado para além do palácio.

O ano de 975 ficaria conhecido nos anais da História Coreana como o ano em que o Imperador Gwangjong morreu. E ele, de fato, morreu. Wang So vivia em seu lugar, escondido em algum canto do reino.

 

XIII – O VELHO E O SEU CRIADO

Gang Won não era mais um empregado real. O velho a quem servia não era mais rei, muito menos imperador, há mais de dez anos, e ele poderia se tornar bastante rico caso quisesse denunciá-lo às autoridades do palácio. Contudo, para aquele jovem escudeiro que foi se tornando não tão jovem assim com o passar dos anos, Wang So sempre seria Gwangjong, seu Imperador.

Más notícias não demoraram a circular pelo reino. A rainha e o novo rei, Gyeongjong, antigo príncipe Wang Ju, comandavam Goryeo livremente. Eles haviam colocado a culpa da morte do Imperador nas costas dos revoltosos que invadiram o palácio e, após um sepultamento simbólico do monarca invisível, trataram de dirigir as terras ao seu bel-prazer.

A primeira medida instituída pelo novo governo fora retornar com a escravidão no país e manchar o nome Gwangjong.

O conselheiro da corte não teve dificuldade em criar manuscritos contando como o quarto rei de Goryeo fora tirano, sanguinário e ambicioso. Distorceu a verdade por trás daquele solitário príncipe, que errou sim, mas também fez o melhor que pôde com a cabeça que tinha na época.

Yeon-Hwa teve uma década de regozijo e tranquilidade, assim como todo o clã Hwangbo. Ou quase todo. As intrigas nunca acabavam em torno do amaldiçoado trono.

O mais novo e o mais velho singravam as florestas e bosques do reino, vivendo uma vida de reclusão. Pernoitavam em casebres abandonados se a cidade não era muito grande. Afastados, na fenda de uma montanha ou em uma caverna se a população ao redor avolumava-se.

Se alimentavam de frutas silvestres e presas pequenas nos bosques. Trocavam roupas novas, chá e bebidas em detrimento a pequenos trabalhos manuais pelo campo.

Nas noites de inverno, quando seus corpos não aguentavam mais ficar expostos ao frio, se abrigavam nas casas de famílias generosas e prometiam ajudar na colheita do próximo verão como gratidão.

E assim seguiam. Gang Won se contentando em acompanhar seu mestre e o outro, a cada dia mais idoso, perturbado com seus pensamentos.

Wang So tinha tantas coisas em sua cabeça, tantos arrependimentos, tantas noites acordando de pesadelos onde Hae Soo ou Soh-ra moravam. Quando a primeira camada grudenta de sono ainda o envolvia, ele se reconfortava em pensar que o que houve com sua filha fora somente imaginação sua e que ela seguia viva e encantadora em algum lugar.

Quando sua mente dava um respiro acerca da filha, a obstinação em encontrar Ji Mong avivava. Isto porque ele jamais desistiu e, ainda agora, sem recursos ou disposição, este continuava sendo seu maior objetivo.

Vários problemas de saúde atormentaram-no ao longo do seu exílio e ele sobrevivia a todos eles. Não se entregaria enquanto não pudesse estar com ela! Ou, ao menos, descobrir sobre ela…

Iniciava o ano de 985 e So obteve novas notícias de seu filho. Atravessando uma aldeia que servia de passagem a viajantes que vinham de perto do palácio, Gang Won, ficara sabendo, enquanto comprava um pouco de bebida, porque So se mantinha recluso nas florestas e nas montanhas o máximo que conseguia, que o rei fora deposto.

Fora numa noite, de modo semelhante ao que acontecera a Gwangjong.

Pessoas insatisfeitas com o governo haviam invadido o palácio e assassinado o rei, a rainha, os príncipes crianças e a rainha-mãe, em suas camas. O novo governante que despontava, apoiado animadamente por todo o conselho, foi o filho de Wook, o sexto rei de Goryeo, Seongjong.

As coisas não mudavam, So pensou entristecido. Não lhe causava alegria ou sentimento de vingança imaginar seu filho e seus pequenos netos sendo assassinados. Seu sangue estava oficialmente eliminado… todos dentro dos muros do palácio. Se ele tivesse se unido ao filho e governado junto a ele, em vez de contra, nenhum dos dois seriam enfraquecidos e destroçados. E Soh-ra estaria viva…

So recebeu a triste notícia de Gang Won e pediu para que seguissem de uma vez para bem longe dali. Haviam viajado por quase todo o maldito país e nada de Ji Mong em lugar nenhum. Ele arriscaria mais distante, depois do norte, se livrando dos ares hostis da corte. E das lembranças.

E foram mais oito anos. Mais trinta e duas estações.

Gang Won percebia a idade avançando sobre si e não conseguia executar os trabalhos braçais com tanta precisão. So, às portas dos setenta anos, tinha dores nas costas e nas pernas com os exercícios mais banais. A vida nômade comprava seu preço.

Como seus corpos não eram mais os mesmos, decidiram se instalar numa cidadezinha que fazia quase divisa ao reinado chinês. Ali conheceram uma boa família que os acolheu de pronto.

A filha mais velha do dono da casa interessou-se em Gang Won e eles não demoraram a se relacionar. Para So, esta acabava sendo a chance ideal. Demorou, mas seu fiel criado estava finalmente instalado e criando raízes. Logo, ele pararia de lhe causar transtornos, aquela via-sacra não era de Gang Won, mas de Wang So.

Numa noite, após festividades em que todos beberam muito, exceto So, ele aproveitou os sonos pesados das pessoas ao redor, pegou suas coisas amontoando-as numa trouxa suja, seu cajado, a espada com o fio cego, e partiu a noitinha. Desejou que seu amigo, sim, ele se tornara um amigo, tivesse um restante de vida boa. Ele merecia.

Wang So nunca atravessou os limites da península coreana, entretanto passou o restante de sua vida percorrendo as fronteiras da manchúria.

Atrás das lendas mais estranhas e dos anciãos mais suspeitos, ele seguiu uma trilha solitária de buscas.

Conforme os anos avançavam, sua velhice também avançava. O corpo era calejado e dolorido, as mãos tremiam quando tentavam segurar a espada, a audição precisava de nova repetição para entender as palavras e seus olhos vinham sendo tomados por uma névoa branca que quase o cegava na luz do sol.

Viajantes com quem encontrava pelos caminhos o mantinham atualizado sobre os monarcas de Goryeo. Seu sobrinho seguia governando com a mesma crueldade que seu filho. As pessoas continuavam escravizadas, a pobreza prosperava acima de qualquer coisa e nada mudava.

So acreditava que não viveria mais anos para ver o monarca mudar novamente e foi surpreendido com notícias do palácio que atravessaram quilômetros naquelas terras verdejantes até os seus ouvidos ruins.

O rei Seongjong fora deposto por ilegitimidade de trono, após o surgimento de um filho oculto do rei Gyeongjong. Aparentemente, a criança recém-nascida fora retira do quarto a tempo de ser assassinada como seus irmãos e pais, e agora ressurgia com um exército completo para reivindicar o trono.

Estavam então em 998 e So vivia há 72 anos naquela era. Nem o do filho ou o do sobrinho, nenhum dos reinos anteriores durara tanto quantos os seus 26 anos no poder.

Às vezes ele olhava para suas mãos envelhecidas, tomadas pela manchas da senilidade e imaginava como estaria Hae Soo se estivesse viva ao seu lado agora. Ela seria bela, ele sabia, mesmo com vários anos pesando sobre suas costas. Ele, contudo, era somente um velho imbecil que parecia um doido perambulando pelo matagal perguntando sobre Choi Ji Mong a quem tivesse ouvidos.

Era estranho como, conforme o fio de sua vida diminuía, sua memória tornava-se mais afiada. Era uma maldição. O rosto de sua Soo-ya se fazia mais e mais nítido, todos seus contornos graciosos de mulher-menina, sorrindo para ele tão logo ele fechasse os olhos para imaginá-la melhor.

Em determinados momentos, as elucubrações eram tão palpáveis que ele sentia-se envergonhado que Hae Soo, com sua juventude eterna, encarasse o homem envelhecido que se tornara.

Aos 76 anos, muito doente e sabendo que seu problema não o levaria para mais anos, So chegou em uma pequena comunidade ao pé de uma montanha. Ela ficava num vale escarpado, grandioso e assustador, no qual uns pobres coitados sobreviviam às custas da criação de galinha e frutas silvestres.

So chegara ali com muita dificuldade diga-se de passagem, os joelhos o maltratavam sem fim, mas viera porque escutara uma lenda curiosa sobre o local. Dizia-se a lenda, e os populares confirmaram, que a cada cem anos, se você escalasse a montanha mais alta e adentrasse na gruta mais estreita em seu coração rochoso, haveria de encontrar uma entidade mítica que realizaria todos os seus desejos. Por um acaso, os cem anos se completariam em dois dias.

As pessoas tentaram dissuadir aquele velho maluco assim que perceberam que ele dera ouvidos demais à lenda. No fundo eram só histórias e ninguém acreditava nisto. So não quis escutar nenhuma delas e também não se enveredou em suas razões, apenas disse que ficaria bem e que não era para ninguém segui-lo.

Ele não tinha nada a perder. Morreria em poucos dias e não havia encontrado respostas sobre Hae Soo até então.

Se existe verdade naquela lenda descobriria aquilo e pediria para ver Soo-ya pela última vez. Se não existisse nada, morreria solitário, da mesma forma como veio ao mundo, e isto também seria bem-feito para um homem que cometera tantos erros como ele.

Determinado, embora com uma dificuldade abissal, começou a escalar a montanha.

 

XIV – O CREPÚSCULO DE WANG SO

Uma clareira úmida aguardava o velho arfante no centro da caverna. Wang So adentrou no ambiente lúgubre enxergando as paredes rochosas graças a uma fenda estreita ao topo do local, por onde raios de sol tímidos se esgueiravam buraco adentro.

O corpo do velho cobrava o preço do exercício indevido e sua respiração era a coisa mais trabalhosa que ele fizera nos últimos tempos. Saía em pequenos guichos desesperados, os pulmões quase em colapso e o coração, que já trabalhava a mais de setenta anos sem parar, batendo violentamente na caixa torácica.

So apoiou-se em uma pedra sobre o chão e se largou por ali, respirando num silvo agonizante feito um peixe fora d’água. E, nesse desespero, lutando para sobreviver mais um pouco, seus olhos começaram a se acostumar com a baixa luz e a sombra de um homem se fez visível no outro extremo da caverna.

― Ji Mong… Eu… eu não tenho muito tempo… mas… mas… ainda bem que lhe encontrei…

O homem saiu da escuridão e parou embaixo do facho de luz solar, se banhando daquele mísero calor matutino. Mesmo com os olhos completamente tomados pela catarata, o antigo monarca conseguiu enxergar as feições do astrônomo muito bem. Ele era o mesmo rosto jovem de décadas atrás.

― O que… o que afinal é você? ― So ventilava com muito custo entre uma palavra e outra.

― E isso importa?

― Importa… Vim lhe… procurando minha vida toda… 

― Eu não tinha a intenção de aparecer para você nunca mais quando sai do palácio como um ex-funcionário de Goryeo. Não é da minha natureza me compadecer por vocês individualmente. Me importo com o todo, apenas.

― Hae Soo… Onde está… Onde ela vive?

― Sim, claro. Eu não me importo com um ser humano em específico, mas esta história vem mexendo comigo de um jeito estranho ― ele ponderou. Parecia falar consigo mesmo. Refletir em voz alta. So escutava atentamente de qualquer forma, lutando para respirar todo o tempo ― Eu a trouxe com um propósito e a levei no momento em que ela não era mais necessária… Porém, ela não esqueceu ao retornar para seu tempo.

― Seu… tempo? Qual tempo?

― O futuro.

― Onde exatamente… é… este futuro?

― O futuro é um lugar onde Gwangjong se tornou um rei sábio e justo. E este passado é o local em que a Coreia medieval começou a mudar.

― Eu não… mudei… nada…

― Engana-se, mortal. Você fez boas ações e seu legado reverberará nos próximos séculos. A balança da justiça ainda não foi equilibrada, contudo ela oscila como nunca oscilou antes. Sem estas oscilações eu não poderia salvá-los. Eu previno os desastres e só posso garantir que esta península se mantenha, caso consiga acalmar os Outros como eu.

― Como você…

― É, como eu. Criaturas além da sua compreensão, que garantem o equilíbrio neste curioso planeta. Você nunca imaginaria, entretanto as estrelas olham e as estrelas julgam.

― Hae Soo… por que… ela veio até… aqui?

― Verdade, devo tentar ser sucinto ― Ji Mong sorriu brandamente para o velho constatando que ele chegara em cima da hora daquela vida. O sempre teimoso e persistente príncipe Wang So. O menino maculado no rosto, a cicatriz agora quase invisível em sua pele tomada por rugas e manchas senis ― Hae Soo tinha um papel a cumprir em Goryeo. A alma desta mortal tinha dívidas através dos tempos e Nós precisávamos fazê-la pagar estas dívidas.

“Ela deveria retornar ao passado e sincronizar com a outra metade de sua alma. Transformá-la em algo melhor por assim dizer. Quando Hae Soo veio para este tempo você tinha o coração cruel e assassino e, ainda assim, estava em seu destino se tornar um rei.

“A balança da justiça despencaria de vez. Você mataria seu pai, seus irmãos, seus filhos e qualquer um que pudesse ameaçá-lo no trono. Em sua essência, não haveria bondade restante e o povo conheceria o maior tirano que esta Terra já encontrou. Rios de sangue e florestas de corpos estavam previstas na sua linha do tempo. Apenas ela, a sua outra gêmea, poderia mudá-lo.

“E Hae Soo entrou em ação. Ela veio com sua consciência do futuro e sofreu muito até aceitar sua missão. Obviamente, nada disso foi consciente. O espírito dela é intuitivo e inteligente e começou a entender por si mesmo os caminhos que a levariam de volta.

“O poder da união entre duas almas gêmeas surtiu o efeito por mim desejado. É algo bonito de se ver até para um ser superior, que já viu tantas coisas belas como a explosão de uma estrela ou a criação de uma supernova. Vocês se conectaram como o universo previa e ela o moldou no caminho do bem, o alimentou de amor e o transformou em Gwangjong, o rei sábio”.

O rosto de So ficara encharcado de lágrimas. Sua respiração aquietou de leve lhe dando tempo para processar o significado de tudo aquilo. De quem era Hae Soo e de tudo que eles haviam vivido. Fora real e intenso, e fora muito mais do que ele imaginara. E era por isso que, quando estava perto dela, parecia estar perto dele mesmo novamente. Uma parte sua há muito perdida devido a uma infância aterrorizante, reencontrada.

― Então ela veio… cumprir seu desejo… e voltou. Você… a usou e… não tem mais nenhuma… nenhuma ligação comigo?

― Nenhum dever, eu diria.

― Por… favor… Me deixe… apenas vê-la… Quero morrer… lembrando dos mínimos detalhes… os mais simples e lindos… Do rosto dela…

Ji Mong soltou um longo suspiro como se estivesse tendo de se conformar com algo. A seguir, disse:

― Eu não gosto de me levar por sensações. Sou um Superior e não deveria me importar com isto. Com vocês. Com seus sentimentos pessoais.

― Mas se importa?

― Estou perturbado desde quando o encontrei no templo budista, há trinta anos. Não sei se lembra, a memória dos humanos é fugaz, mas eu acabei lhe prometendo coisas no crepúsculo de sua vida.

― Me lembro… como se fosse ontem. Era na minha morte… então? ― sem que se desse conta, respirar voltava a se tornar um grande desafio.

― Não podia levá-lo enquanto sua casca mortal permanecesse existindo. Fiz isto com Hae Soo por permissão de todos Nós, porém aquilo foi uma exceção. Que caos seria o universo e as linhas do tempo caso pudéssemos brincar deste modo a todo momento?

― Por favor… Ji Mong… Por favor… Só vê-la…

― Será doloroso e será intenso.

― Eu não… ligo…

― E você não poderá reter a memória dela por muito tempo.

― Como… assim?

― Apenas isto. No instante em que for para o futuro sua memória desta época começará a se fragmentar. Em poucas horas no tempo humano, suas lembranças como Wang So e Gwangjong se deteriorarão. Sua alma esquecerá.

― Esquecerá… ela também?

― Hae Soo?

O velho anuiu, sentindo uma dor excruciante no peito. A morte vinha galopando ágil ao seu redor.

― Ela também.

― Mas… eu poderei… poderei vê-la?

― Poderá.

― E esquecerei… ― refletiu em meio a dor. Era agora ou nunca. Vê-la uma última vez e não se lembrar jamais ou morrer ali e esquecer tudo de qualquer forma ― Ao menos da concubina Hae Soo, esquecerá ― Ji Mong completou.

― O que… ― era impossível falar ― Me… me.. leve! ― arquejou de uma vez, caindo da pedra e se contorcendo no chão.

Ji Mong precisava providenciar a transferência imediatamente. Se aquela alma abandonasse o corpo, seria muito complicado apanhá-la no cosmos e sua vontade de ajudar Wang So poderia esmorecer.

Ainda não entendia bem por que simpatizara tanto com aqueles dois quando começou os preparativos de sua natureza. Era o tal amor entre eles que o fascinava. Lidara com muitas almas gêmeas ao longo de sua existência eterna, mas jamais encontrou duas tão ferrenhas em se unir novamente.

Mesmo que a jovem não fosse originalmente daquela época, em sua verdadeira época se lembrara de tudo quando o encontrara naquele evento. Era estranho, fora observá-la para certificar-se que, para ela, tudo não passara de um sonho, mas, a partir dali, aquela jovem começou uma luta desesperada dentro de si em busca de seu antigo amor, aquele que ela conhecia como seu verdadeiro e único.

E lá, agora, estava ele, uma criatura poderosa querendo ajudá-los mesmo que não devesse, apenas para ter sua consciência em paz. E, talvez, porque gostasse daquelas almas fragmentadas e teimosas. Fragmentadas porque ele as fizera assim, teimosas porque eles insistiam a se buscarem entre si.

A visão de So tornou-se embaralhada e enevoada ao passo que o corpo era envolvido pelos braços frios da morte, embalando-o pacientemente para além de Goryeo.

Em seus últimos instantes de lucidez humana, Wang So viu o homem que conheceu como Choi Ji Mong ganhar corpo de leão e chifre de unicórnio. O animal mítico, com escamas e penas reluzindo por todo o couro, esticou o pescoço e farejou o ar pela fenda na caverna4. Depois virou-se para o velho moribundo e caminhou majestoso ao seu encontro. Abaixando a cabeça e mostrando os dentes pontudos abocanhou sua barriga com vigor.

So não sentiu mais nenhuma dor. A sensação era estranha de qualquer forma. Parecia que alguém o havia colocado dentro de uma garrafa e tentava puxá-lo insistentemente pelo gargalo estreito. O animal puxou-o com mais força, o livrando do destino natural que o aguardava, e arrastando-o para fora do corpo de carne.

Ele entendeu que morrera fisicamente quando sua alma começou a flutuar pela caverna, deslumbrada. Sem dor, sem dificuldade respiratória, sem as limitações articulares da idade avançada.

O animal, ríspido, ordenou telepaticamente que este lhe montasse no lombo caso não quisesse ser fisgado pelo Apanhador de Almas. De pronto, a alma So obedeceu e agarrou no corpanzil sedoso de pena e escorregadio de escamas do ser.

Aquilo tomou impulso no ar e saiu pela fresta da caverna galopando em direção ao céu facilmente. Tocou as nuvens por vaidade, enrolou-se no olho de um furacão por diversão, eletrizou-se na haste de um raio para assustar seu montante turrão e continuou. Continuou atravessando os limites do planeta Terra, se expandido como um gigante asteróide em direção ao astro sol.

Quando a alma de So estava quase cega pela luz, o animal avisou antes de abrir a bocarra e engolir o sol.

“No eclipse você voltará, mas por um ano dormirá até sua alma se assentar”.

***


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Notas finais do capítulo

Glossário:

Gwangjong (4º rei de Goryeo) – Wang So
Jeongjong (3º rei de Goryeo) – Wang Yo
Hyejong (2º rei de Goryeo) – Wang Mu
Gyongjong/ Wang Ju (5º rei de Goryeo) – Filho de Wang So e Yeon-Hwa
Seongjong (6º rei de Goryeo)– Filho de Wang Wook
Soh-ra – Filha de Wang So e Hae Soo
Gang Won – Personagem original

~*~

¹Embora o nome da filha de Hae Soo com Wang So não tenha sido citado no dorama, material canônico afirma que seu nome seria Seol. Aqui, entretanto, optamos por fazer Hae Soo homenagear sua mãe, nomeando-a de Soh-ra, o mesmo nome da mãe de Ha Jin. Licencinha poética, gente, rs.

²O evento que se segue realmente ocorreu no reinado de Gwangjong. Ele libertou os escravos, muito embora os reais motivos possam ter a ver com conseguir mais pessoas pagando impostos, o que, consequentemente, enriqueceria os cofres da corte. Para auxiliar na narrativa em questão, apenas trocamos a data deste evento. ‘A Reforma dos Escravos’, como ficou conhecida esta sanção de Gwangjong, teria ocorrido por volta do ano 956, não 964, como descrito no capítulo.

³O Exame do Serviço Nacional Civil foi outra reforma implantada pelo rei Gwangjong onde oficiais do governo poderiam ser recrutados baseados em méritos e realizações acadêmicas.

4 O animal no qual Ji Mong se transforma se chama Haetae e é uma espécie de guardião do fogo na cultura coreana. Ele também é responsável pela prevenção de desastres naturais, justiça entre os homens e o pelo eclipse. Para esta história, nós adaptamos suas origens. Originalmente a lenda de Haetae apareceu no período Joseon (posterior a Goryeo) na Coreia, embora registros na China sejam mais antigos, e ele causa apenas o eclipse lunar, pois morde a lua.



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