O Segredo da Aurora escrita por O Comediante


Capítulo 1
O Segredo da Aurora




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— Faça mais uma vez! — A garota batia palmas e gritava animada, enquanto recebia o buque de flores de plástico recém saído da cartola. O Aprendiz ficara fascinado com a alegria da menina desde o primeiro truque de mágica que ele fez. Felicidade era algo difícil de ser encontrado no Lugar.

Será que era ela que vinha até ele para se maravilhar ou era ele que a recebia para que pudesse se maravilhar com ela? Seria quem o mais feliz entre os dois?

— Como você tirou essa moeda da minha orelha? — ela perguntou, empolgada.

— Essa não é uma moeda qualquer! É uma moeda da sorte que eu tenho desde sempre. É com ela, que eu faço magia, como eu fiz agora!

O garoto sabia que tudo o que ele fazia não era magia de verdade, eram truques simplórios de lojas, passados de geração em geração por ilusionistas até seus netos resolverem capitalizar seus ensinamentos. O baralho era preparado, assim como a varinha, as flores, os lenços... Tudo tido uma função mecânica preparada.

Mas ele também fazia magia real. Disparos místicos, teletransporte, brincadeiras com a realidade e a probabilidade, transmutação... Mas por que eu faria isso? A criança esboçava sorrisos enormes em ver uma moeda “sair” de sua orelha, por que ele traria mais? Ele queria vê-la feliz e não se exibir.

Ela se contenta com tão pouco. Inocência era sua beleza.

Gabrielle viveu num lar conturbado, com uma mãe ausente e um pai abusivo. Quando os dois estavam em casa, era briga na certa, e das violentas. O lar caia aos pedaços, figurativamente e literalmente, até o dia em que um dos já comuns abusos noturnos do pai passou dos limites e ela pôde, pela primeira vez em sete anos, dormir em paz. Gabrielle Gustan morreu aos nove anos, por algum motivo,  veio parar no Lugar. Ela não passaria pelo julgamento, nem pela Iluminação, não teria a chance de ver a luz, não poderia viver nos domínios da Dama. Passaria uma eternidade estagnada.

A justiça era cega no Lugar.

— Tenha cuidado ao explicar a ela — A Dama havia falado para ele — Ela ainda não sabe direito o que é a morte, seja gentil ao contar para ela... E se por acaso ela perguntar sobre o corpo, por mim, como eu odeio o que vou dizer a você, mas minta —  A Dama tinha uma opinião bem solida quando o assunto era mentiras, mas ela, e no fundo, o Aprendiz também, sabia que Gabrielle jamais entenderia, e se entendesse, só traria mais sofrimento desnecessário. Logo após abandonar a vida, o pai usou um machado e soda caustica, colocou os pedaços remanescentes em sacos plásticos e os enterrou em três lugares diferentes no bosque nos fundos da casa em que viviam — Não houve respeito, não houve luto e nem haverá reconhecimento pela alma tão boa que partiu — A Dama completou. Ela pediu ao Aprendiz para ficar com a criança por um tempo. Ela temia o que os deuses, as fúrias ou até mesmo Orgulho e Inveja fariam com ela. Crianças eram raras no Lugar e pretendentes ao novo “brinquedinho” poderiam se apresentar.

E como prometido, ele a trouxe para seu apartamento e tentou conversar com ela, era incrível como, mesmo com uma vida triste e miserável, ela ainda tinha uma imaginação fértil e poderosa. É na escuridão que encontramos as luzes mais brilhantes. Quando ela viu as borboletas fosforescentes e os vaga-lumes coloridos, ela quase se esqueceu do lugar estranho, com gente estranha, que ela estava. Foi correndo até eles, atraindo um enxame para circundá-la.

— São como estrelinhas! Estrelinhas coloridas! — O Aprendiz a observou por um tempo. Como pôde ter um destino tão ruim, criança? Ali nunca encontraria paz, nunca teria descanso pleno, ela ia apenas existir. E o pior vinha em seguida: Como ela podia ter sofrido daquela maneira? O Aprendiz já ouviu muitas histórias e casos das almas que habitavam o Lugar: guerra, amor, justiça, injustiça, dinheiro... Mas esse tinha um tom tão ardil que custava para ele aceitar.

Que a inocência dela se perpetue, que sua ingenuidade dure, e que elas lhe tragam algum conforto aqui.

Ele resolveu deixar a conversa séria para outro momento, outro milênio talvez.

— Eu não queria acordar desse sonho, Sr. Mágico — O pouco que contou a ela se resumia a isso, um sonho. Um sonho que você nunca vai acordar. A voz dela era alegre e dengosa, e isso fez com que o Aprendiz ficasse com um aperto no peito.

Sua ultima protegida, Hannah Saunders, era mais cética e mais pragmática em aceitar tudo, até seu próprio óbito, bem diferente de Gabrielle. Onde quer que esteja, eu espero que você esteja feliz, senhorita Saunders. Apesar de não demonstrar muito, o Aprendiz adorava a companhia dos seus protegidos, sempre traziam algo de inesperado, e surpresas no Lugar eram como uma droga.

Ele fechou a porta do apartamento e foi até a garota.

— Escolha uma carta

...

— Eu não sei porque você está cabisbaixo. Você mesmo disse que ela estava feliz e, principalmente, está segura agora. O pai não pode alcançá-la... E pense: no pior dos casos, ele vai vir parar aqui, mas ela vai ter o Arauto da Dama para protegê-la!

Os dois tomavam chá de camomila, uma bebida que a Recepcionista sabia fazer muito bem. Jamais exagerava demais no chá, no açúcar e nem na água. Era no ponto, perfeito. Sentados em cadeiras e uma mesa de cedro, as porcelanas em que consumiam pareciam retiradas diretamente de um livro de Lewis Carroll. E junto de muitas outras doses de chá tomadas através das eras, o Aprendiz e ela discutiram sobre quase tudo, especialmente das noticias trazidas pelas novas almas do Lugar. Era ritual que eles cumpriam sem uma data ou momento especifico, apenas quando batia a vontade.

E o assunto dessa vez era a jovem Gabrielle.

— Ela morreu cedo demais, o pouco que viveu foi de dor e sofrimento. E por mais que ela esteja livre dos pais, ela nunca vai correr sentindo o vento nos cabelos, nunca vai poder crescer, viajar, conhecer garotos ou garotas, se casar, ter filhos... Amar... Ser amada... Agora ela ta aqui, estagnada, como a gente.

— E o que te faz pensar que a vida dela vale mais que a minha?

O Aprendiz revirou os olhos e suspirou.

— Não foi uma vida justa, ela não morreu pelo tempo ou pelas próprias ações. Ela tinha muito potencial, muita coisa pra viver. Sabe, eu sou um agente de Deus e mesmo assim, vez ou outra eu acabo duvidando da justiça Dela. E não distorça mais minhas palavras, mulher! Você, entre todas as almas daqui, é quem entende minha indignação.

— Eu entendo, só discordo de sua preocupação. O bom da morte é que simplesmente acabou, nenhum dever mais, nada a temer, e nem mesmo essa história besta de justiça — Nesse momento, o Aprendiz a encarou, mas ela disparou antes de qualquer coisa ser dita — É uma história besta sim! Desde o inicio dos tempos, os homens compram ou sonegam suas próprias leis, não há uma verdadeira justiça para os mortais. Por que se preocupar com justiça agora, se ela está bem e se o pai dela vai morrer um dia também? Qual o sentido de puni-lo agora, que nada mais em prol da vitima pode ser feito?

— Impedir que aconteça com outra pessoa?

— Se ele for matar alguém, ele vai, não é uma linha num papel chique que vai impedi-lo.

O Aprendiz torceu os lábios. Para uma mulher que odiava conservadores, a Recepcionista sabia ser bem pragmática quando queria. Eles também já discutiram isso uma vez, mas a velha era cabeça dura e orgulhosa demais, nem adiantava argumentar com ela. Mas o Aprendiz sabia, no fundo, que era melhor assim, seus debates sempre ficavam mais interessantes e seria uma pena mudar... Mesmo com uma opinião tão acirrada.

— De qualquer forma, ainda me preocupo com ela... Acha que ela se lembrará por muito tempo?

— O lado bom dela ser criança é que certas informações são retidas mais facilmente, principalmente as mais tristes. Mostre a ela mais uns truques de mágica e ela se esquecerá que um dia sequer respirou de verdade.

— É tão simples assim? Se esquecer de uma vida, por mais curta que ela seja? — O Aprendiz perguntou.

— Quando você quer muito se esquecer, você começa a dizer a você mesmo que tudo não passou de um sonho ruim, que é tudo uma ilusão, uma mentira. Os mortais fazem isso constantemente. E em algum momento, você começa a crer na própria mentira e ela se torna uma verdade. Quantas pessoas na vida nós já esquecemos dessa mesma forma? Quantas pessoas que valiam a pena nós já abandonamos?

Ele pôde notar um tom diferente nessa ultima fala, havia algo de pessoal nela. O Aprendiz discordava dela, é claro, mas pensou um pouco antes de falar qualquer coisa. Você deve ter tido uma família, filhos até, pessoas que você amava... Há quanto tempo você está aqui? Foi o suficiente para esquecê-los ou é só outra mentira? E foi então enquanto formulava esse pensamento que ele percebeu algo que antes parecia tão fútil, tão distante... Tão surreal.

— E quanto a mim? A garota se lembra, todos se lembram... Por que eu não? — O Aprendiz se levantou, furioso com a mulher na sua frente — Por que eu não me lembro? Até você vive com seus arrependimentos, e o que eu tenho?

— Não fale assim comigo, garoto! Além de fazer perguntas estúpidas, você ainda acha que tem o direito de falar assim de mim? Pois não tem! — Mesmo numa posição agressiva, o Aprendiz podia notar certa hesitação na fala dela. Ela se levantou, deixou a xícara na mesa e foi até a porta, deixando o Aprendiz para trás.

Coisa que ele não aceitou bem.

Com um gesto, ele invocou uma corda. O objeto serpenteou até a Recepcionista, em movimentos animalescos, enlaçou suas pernas e imobilizou seus braços, dominando-a. Quando não podia mais se mexer, o Aprendiz veio até ela, calmamente.

— Vou ter que pedir com jeitinho? — Com outro gesto, a corda se enrolou no pescoço dela e começou a apertá-la — Me diga sobre meu passado, me diga por que eu não me lembro, me diga sobre minha vida!

— Eu não posso! — Ela gritou.

— Você confunde o fato de eu gostar de você com algum tipo de fraqueza. Pois não cometa esse erro — A corda estava extremamente apertada — Eu vou destruir todos os ossos do seu corpo e você vai passar a eternidade como uma geléia, garantirei isso.

E ele apertou ainda mais.

— Aprendiz... Eu... Eu não posso...

— Por que não? — falou firme.

— Por que... Por que eu não sei... O que aconteceu! — O Aprendiz cerrou as sobrancelhas, fechou o punho e mordeu o lábio inferior. Outro gesto e as cordas afrouxaram. Ele olhou diretamente para ela — Isso foi há tanto tempo... Eu tinha acabado de chegar também, ainda estava me acostumando com o Lugar... Você estava... Chorando. Você estava perturbado, era praticamente insuportável.

Não havia como não perceber o quão inquieto o Aprendiz ficou. Suas mãos tremiam, seu peito doía, sua cabeça latejava, se ainda estivesse vivo, seu coração teria explodido de tão tenso que ele ficou. Eu preciso me lembrar, mesmo que eu queira ter me esquecido, eu preciso. Ele voltou a ritmar sua respiração, tentou se concentrar. Foco. Com o auxilio de sua magia, ele vasculhou todo o canto de sua mente, revirou todas as lembranças e reviveu todas as memórias possíveis. Não encontrou nada que revelasse qualquer coisa de sua vida antes de ter chegado no Lugar. E pelo que a Recepcionista falou, parte de sua vida lá também não estava na sua cabeça. Ela voltou a falar com ele, conforme a corda voltava a ser só um objeto inanimado:

— Você está aqui tempo suficiente, Aprendiz, para saber que existem certas coisas que nós não devemos procurar. Você está aqui, está bem e consciente. Por que você iria querer mais?

O Aprendiz abaixou a cabeça, desnorteado. Por que se torturar?

— Só porque eu não me lembro, significa que não aconteceu? — Ele falava consigo mesmo — Eu vivi algo! Eu tive uma vida! Eu fui alguém! Não deveria saber disso?

— Não vale a pena se lembrar de algo que só te trouxe dor. Você ganhou uma nova vida, não desperdice isso, Aprendiz. Esqueça tudo isso — A Recepcionista falou.

— Eu só posso viver genuinamente se eu souber quem eu fui e o que eu fiz, garantir que meus erros não se repitam... Ser pleno, em toda minha totalidade. Meu passado faz parte de mim.

— Nem sempre, existem coisas que temos que dar graças por termos esquecido. Algumas coisas são imperdoáveis. O que você viveu não importa, não faz diferença, para que você quer saber? Esqueça disso, Aprendiz, eu insisto.

— Eu também insisto. De que adianta viver se nada vale a pena? Eu vou descobrir de onde eu vim, eu preciso disso — Ele olhou para a mulher, com um olhar incriminador. Não precisou de muito para ela entender.

— Eu entendi! Mas eu te falei, além de ter sido há muito tempo, não fui eu que te fiz esquecer, eu mal me lembro de ter sequer falado com você. Se você quer descobrir o que aconteceu, vai precisar falar com a pessoa que te ajudou na primeira vez.

...

O local estava diferente do normal. Geralmente uma imensidão alva, dessa vez, o aspecto era de uma simples casa de veraneio, paredes e assoalho de madeira, poltronas, mesas e outros móveis rústicos, um relógio enorme na parede, dezenas e dezenas de vasos com pequenas flores coloridas por todo lugar davam um aspecto primaveril. Havia uma pilha de livros na mesa central, o ultimo, o que a Dama devia estar lendo antes dele chegar, chamava-se “Nova Estação”.

— Já leu esse? É a continuação daquele livro que você tem no seu apartamento, acho que era “Primavera de Rulim” o nome. Enfim, você devia ler, o autor elevou a história a novos níveis que, admito, nem eu imaginava que seria tão bom. Mas creio que você não está aqui para pedir conselhos literários. Quer uma xícara de chá? — Vez ou outra o Aprendiz se questionava como os mortais reagiriam ao saber que a Dama, o Deus deles, estava absorvendo aquele tipo de leitura. Seria curioso e irônico.

— Já tomei chá o suficiente por agora, mas obrigado mesmo assim — Os dois estavam sentados, olhando um para o outro, o local emanava um cheiro delicioso de rosas, tudo parecia fofo e aconchegante.

—E café?

— Recuso também.

Dessa vez, a Dama trocou seu clássico vestido branco por uma blusa azul, coberta com um macacão jardineira jeans que chegava até seus joelhos. Usava tamancos amarelos simples e um chapéu de palha na cabeça, com seu cabelo arrumado numa trança longa.

Os dois se encararam por um longo e estranho tempo.

— Você não costuma ter esse humor taciturno... Sabe, eu sempre imaginei que chegaria um dia em que você viria até mim, para descobrir a verdade — Ela suspirou — Eu sei por que você está aqui, e imagino que você tenha recebido os avisos necessários sobre o assunto. Ainda escolhe ignorá-los?

— Não acho certo simplesmente apagar isso.

Os dois se encararam por mais um tempo. Uma brisa morna entrou pelas janelas e levantou os cabelos soltos da Dama. Não existe brisa, é tudo coisa sua, minha senhora.

— Eu poderia apagar sua memória agora mesmo e fazer você se esquecer de ter vindo me perguntar isso, ou até mesmo criar lembranças novas para você.

— Mas você não é assim.

— Exatamente, e as vezes, me odeio por ser assim. Quando você veio até mim, eu já tinha escolhido você há muito tempo, eu entendi sua dor e minha empatia me fez te compreender profundamente. Não é algo fácil para você, tem certeza de que quer ter isso de volta?

— Eu preciso saber a verdade, Dama, é algo que está além do que posso racionalmente te explicar.

— Entendo perfeitamente  — Mias um suspiro, dessa vez, meio resignada. Ela não estava confortável naquela situação e deixou isso claro.

Ela estendeu sua mão. Em segundos, um pequeno frasco roxo se materializou. O conteúdo dele parecia brilhar.

— Antes de tudo, saiba... — Ela se levantou da cadeira e foi até seu pupilo, colocou as duas mãos em seu rosto e o olhou nos olhos, um olhar maternal. Você sempre foi uma mãe para mim. —... Não para mudar o que já aconteceu. O passado é passado, não importa o quanto quisermos, não podemos voltar atrás.

— Eu sei — ele respondeu, resignado.

— Mesmo assim, essa decisão não é minha, e vou deixar a escolha na sua mão até o ultimo segundo. Esse frasco contém Lágrimas de Hécate, basta desejar seu passado e ele virá.

O Aprendiz pegou o frasco e analisou-o. Enquanto chacoalhava o conteúdo quase translúcido e tentador, pensava se devia realmente tomar. Pelo que lhe foi dito, algo muito ruim o traumatizou, será que ele estava pronto para isso? Não importava, ele precisava daquilo. Era o certo a se fazer. Seja corajoso.

Então ele bebeu.

...

O ano era 1990. Para alguns, era uma década promissora, com expansão econômica, reformas sociais e novas descobertas tecnológicas que prometiam trazer o futuro visto nos filmes para a casa das pessoas. Para outros, era apenas mais um ano, com novas guerras a serem travadas, novos medos e novos problemas.

Alexander Reyes tinha quinze anos, vivia em Toronto, quando o Canadá começou a estabelecer uma identidade própria novamente, após anos vivendo na sombra de seu vizinho americano.

Independente de qualquer posição que as pessoas tomassem, todos sabiam que nada jamais voltaria a ser como era, uma nova era havia se iniciado com a Queda do Muro de Berlin, a União Soviética vivia apenas no papel, o mundo olhava para o fim da apocalíptica Guerra Fria, e o Medo Nuclear parecia cada vez mais distante da cabeça das pessoas. Uma onda de otimismo tomava cada vez mais espaço, Na visão dos adultos que viram um eminente fim do mundo, Reyes tinha um futuro brilhante pela frente, garantido pelo inflado sentimento de renovação.

Mas não era assim para Reyes.

Com um leve grau de autismo, nunca foi um garoto intrépido, não brincava com as outras crianças da vizinhança e nem tinha interesse nelas, pareciam tão distantes em seus mundos vazios e rasos, sem magia. E Reyes queria mais, via além do que os outros, até mesmo além dos adultos.

Na escola, ia até que bem, conseguia acompanhar as matérias e até era considerado um prodígio em certas áreas. Nada mais são do que um sistema, quando decifrados, são simples traços. Números, letras, seu poder e ameaça se concentra no desconhecido que elas mostram. São apenas traços num papel. Seu problema só se acentuava na interação social.

Sua família era estável e até que feliz. Seus pais se amavam, sua irmã e seu irmão era carinhosos, apesar de serem meio hiperativos as vezes. Eles até tinham acesso a algumas coisas boas, Alex tinha um radio só para ele, por exemplo, que ele ligava toda vez que chegava da escola, ignorando tudo e todos e subindo para seu quarto.

♫♫♫♫♫♫♫♫♫♫

  Ain't shady baby

I'm hot like the prodigal son

Pick a petal eenie meeny miny mo

And flower you're the chosen one

 

Well your left hand's free

And your right's in a grip

With another left hand

Watch his right hand slip

Towards his gun

Oh, no
           

E naquele dia, 19 de julho de 1990, ele a viu pela primeira vez.

Alguém estava se mudando para a casa da frente, uma mulher de cabelos negros e um homem de cabelos castanhos, vestindo uma blusa social azul. Os dois pegavam as caixas que o caminhão trazia e, animados e rindo, levavam para dentro da antiga casa dos Jensen. Até que uma garota saiu da casa também, parecia ter a mesma idade de Reyes, usava uma calça jeans e uma blusa preta com uma estampa “Cherry Bomb”.

Alex a encarou por alguns segundos, até ela olhar para a janela e vê-lo. Imediatamente, ele desviou o olhar e se deitou na cama, esperando que ela não o tenha reparado.

Mais tarde, os pais de Alexander foram até os novos vizinhos, a mãe fez uma limonada para levar, achava que causaria uma boa impressão assim. Era um costume que seus pais ainda tinham. Começaram a conversar enquanto a mudança era feita, e logo, já estavam ajudando também. Os dois casais pareciam ter se dado bem. Sr. Reyes então foi até a porta de sua casa e pediu que seu filho mais velho descesse para ajuda-los.

Alex foi, a contragosto.

Assim que chegou, pôde ver melhor a menina. Os cabelos negros e curtos dela eram lindos, mesmo soltos e desarrumados. Seus olhos eram castanhos, mas traziam uma doçura incrível no seu olhar.

— Filho, essa é a nossa nova vizinha — A mãe tratou de apresentar os dois adolescentes, Alex permaneceu quieto — Espero que vocês possam ser grandes amigos, ela é uma jovem muito educada e simpática, meu docinho.

Está tão desesperada para me ver com outro ser humano que já está me arrumando amizades? Espero que você já não tenha proposto ela em casamento por mim.

Então a garota estendeu a mão.

— Prazer, sou Aurora Bronn.

...

  Alex permaneceu ajudando na mudança pelo resto da noite, tirou dezenas de caixas e desempacotou todos os utensílios de cozinha que os Bronn tinham, até ajudou com a porcelana de casamento deles.

Até que Aurora pediu que ele subisse em seu quarto.

Quando chegou, deparou-se com um pequeno cômodo, um terço do espaço da sala de estar. Havia um armário, uma cama e uma penteadeira, nada mais. As paredes eram brancas, iguais a mesa e ao lençol que cobria a cama. Uma grande janela ficava no canto esquerdo do quarto.

— Preciso que você me ajude a dar vida a esse quarto. Pode?

Ela desempacotava suas roupas e tentava achar um meio organizado de guardá-las no guarda roupa. Alguns vestidos, mas a sua maioria eram calças e shorts, ela não fazia o estilo de garota patrícia. Alex veio até a parede e começou a alisá-la.

Teve uma idéia.

Foi até o final do corredor, abriu uma caixa que ele havia desembarcado e procurou furiosamente nela até achar o que queria. No caminho de volta, pegou um martelo e alguns pregos.

Aurora ainda mexia nas roupas. E ele estava inspirado.

Sem dizer uma palavra sequer, começou a martelar alguns pregos nas paredes dela. Ela se assustou no inicio com as batidas. Chegou até a pensar ser seu pai antes de ver Alex.

— O que você está fazendo? — ela perguntou. Reyes olhou para ela, sem demonstrar muita surpresa ou receio. Ela respondeu olhando sem desviar, e de alguma forma, os dois se entenderam e ela voltou-se para as roupas enquanto o garoto terminava de colocar sua idéia em prática.

Não demorou mais do que vinte minutos.

Quando ela terminou de guardar tudo, virou-se e viu o resultado do trabalho de seu vizinho: várias luzes de natal se penduravam pelas paredes, presas nos pregos, dançando alegres pelo cômodo. Sua penteadeira foi posta bem no meio, onde ela teria melhor iluminação.

Ela achou aquilo tudo incrível. Maravilhoso.

Jogou uma outra caixa para ele.

— Quer me ajudar com isso também?

Ele não respondeu. Ao abrir a caixa, deparou-se com dezenas de fotos e uma câmera Polaroid. Por um momento, Reyes achou invasivo demais ajudá-la com algo que parecia ser intimo. Mas a curiosidade parecia gritar mais alto. Havia algo de diferente com aquela garota, e ele queria muito descobrir o que era.

As fotos eram, no mínimo, incomuns. A família de Alex tinha álbuns onde haviam fotos de família, aniversários, churrascos, algumas viagens mais relevantes. Aurora Bronn tinha fotos de paisagens, algumas fotos tremidas dela com uma garota de cabelos castanhos longos presos numa faixa, outras com dois meninos vestidos com camisas pretas com nomes de algo que poderia ser uma banda de rock. Haviam fotos de ruas, de cachorros, de gatos, de um semáforo, de um campo com rosas. Uma delas chamou a atenção de Alex: um lago congelado, com alguns pinheiros cobertos de neve e uma aurora boreal linda no céu. Ela devia ser uma fotografa muito boa para tirar fotos com tamanha perícia e qualidade.

— É bonito, né? Eu morava em Boston, tinha alguns lugares bonitos para tirar fotos — Ela pegou as fotos com os outros adolescentes e as olhou, por um longo período. Seus olhos marearam, sua respiração pesou. Seu olhar era carinhoso, doce como mel. Alexander sentiu algo incrível sendo emanado dela ali, naquele momento. Ela levantou o olhar e encontrou os olhos curiosos do seu vizinho e sorriu — São fantasmas, coisas de um passado distante. Mas pretendo manter elas aqui ainda, são boas fotos. Posso usar em algum concurso algum dia — Ele a encarou de volta, com curiosidade, e ela se virou para a caixa, depois de novo para Alex — Tem alguma idéia para elas?

Alexander Reyes coçou o queixo. Desceu do segundo andar da casa, pegou mais alguns pregos e um barbante.

Quando voltou, martelou a parede a esquerda da penteadeira, que ficava num canto que parecia feito especialmente para ela. Aurora sentou na cama e observou ele. O garoto pregou em duas fileiras, com um considerável espaço entre elas, depois usou o barbante e o enlaçou entre os pregos, criando uma espécie de pequeno varal. Saiu do quarto de Aurora novamente e quando voltou, estava com prendedores. Pegou as fotos e começou a prendê-las com cuidado. Quando terminou, Aurora veio até ele e viu o que tinha feito.

Ela então olhou para Alex, e ele retribuiu o olhar.

— Agora sou eu que tive uma idéia — Ela foi até a caixa onde estavam as fotos, tirou a Polaroid e foi até o garoto. Ela o pegou por um ombro e o arrastou até perto do rosto dela. Ela clicou — Vamos ver — Quando a foto saiu, mostrou uma menina sorridente abraçada a um menino tímido pego de surpresa. Alex odiava fotos, mas ele tinha que admitir que a sensação dessa vez foi diferente, tinha algo de especial naquela.

Aurora então pegou um prendedor e colocou a foto deles bem no meio do varal.

— Tá na hora de ter um novo começo.

...

Aurora Bronn e Alexander Reyes se tornaram inseparáveis. Ela entrou para a escola dele, se mostrou uma aluna bastante teimosa, mas um prodígio nos esportes, não demorou muito para que ela o arrastasse para as aulas de educação física junto. O resto das matérias, ele a ajudava. Aos poucos, deixou seu humor soturno e passou a sorrir mais, conversar mais, nem parecia o mesmo Alex.

Quando saiam da escola, iam para fliperamas e casas de jogos, onde ela parecia ter uma certa  habilidade já precedente. Conforme foram crescendo, vez ou outra iam para algum bar pegar algumas bebidas e beber escondidos. Tragaram juntos seus primeiros e últimos cigarros. Até outras coisas mais pesadas, eles experimentaram juntos.

Um certo dia, que Alex viria a se lembrar por muito tempo, os dois saíram da escola e foram para suas casas. Era um sexta feira, e Aurora havia conseguido duas entradas para uma discoteca pequena no centro de Toronto. Era a primeira vez que iriam em um lugar assim. Alex havia visto danceterias em filmes no cinema, mas estava ansioso para ir em uma na vida real. Aurora segredou a ele que não era sua primeira vez, mas ao invés de chateado, pareceu ficar até mais aliviado.

E tudo, é claro, sem seus pais saberem.

Quando o relógio indicou nove horas, os dois se encontraram na frente da casa dos Loyd. Ele estava com uma camisa social branca cobrindo uma camiseta preta com a estampa “Super Mad”. De resto, calças e tênis normais. Havia usado gel no cabelo, numa tentativa de fazê-lo parecer arrepiado. Conseguiu, mesmo que não fosse o resultado cinematográfico que ele esperava.

Aurora usava um vestido preto que chegava até o começo de suas coxas. Completava com uma meia calça também preta e um tênis de cano alto. Um anel de caveira na mão esquerda e um anel dourado na mão direita. Um colar com algum tipo de símbolo em madeira completava. E Alex não podia deixar de admitir, ela estava linda aquele dia, com seus cabelos negros curtos balançando ao vento, seus lábios vermelhos pelo batom e os olhos ainda mais realçados pela maquiagem.

Quando os dois chegaram no local, após o ônibus, perceberam que era realmente uma discoteca pequena: havia um bar minúsculo, um stand pro DJ e seus equipamentos, duas mesas com cadeiras num dos cantos, e a “pista de dança” não era maior que o espaço somado da sala, cozinha e quarto da casa de Aurora. Como resultado, não tinham mais do que dez pessoas lá.

— Vou pro bar ver se consigo algo pra gente beber, fique aqui — ela falou, mexendo no decote do vestido, avolumando mais os peitos. Nem sequer tinham idade para beber, qualquer coisa que arrumassem era lucro.

Dois minutos depois, ela voltou, com dois copos.

— Margaritas, Sr. Reyes! Sirva-se em... 3...2...1... Já — Os dois viraram.

Dez minutos, e mais umas duas rodadas depois, os dois não conseguiam conversar sem darem risadas. Alex encarava Aurora mais do que deveria, mas era difícil de evitar. No fundo, ele nunca entendeu direito porque ela acabou se apegando a ele, não parecia ter nada que interessasse uma menina como ela. Era uma icognita. Mas temia perguntar e saber a resposta também.

— Venha! — ela falou. A voz parecia ecoar na cabeça de Reyes, e assim que levantou, o mundo girou em todos os graus possíveis — Venha dançar!

Os dois saíram de seu canto e foram bem no meio da pista de dança. Só os dois dançavam, enquanto os outros apenas olhavam. Mas nenhum dos dois ligou. Eles não precisavam da aprovação de ninguém, estavam juntos lá, um apoiando o outro, e naquele momento, parecia ser só o que precisavam.

♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪♪

In the Jangle jungle
        Jingle junkie, juggle juggle me
        A better standard than mediocre
        I watch you tumble

Ela jogava os cabelos de um lado para o outro, ele pulava, mexia os braços, dançavam de qualquer jeito, sorrindo, rindo, cantando. O mundo ao redor deles, frio e solitário. Nada mais importava.

Então, não se sabe se pelo efeito da bebida ou por qualquer outro tipo de intervenção, Alex viu tudo desacelerar. A musica era lenta, as luzes piscavam mais devagar, as pessoas mal se moviam. Olhou Aurora. Havia algo de mágico ali, não apenas nela, mas no que os dois tinham, uma ligação, eram distantes e próximos ao mesmo tempo, tão diferentes e tão iguais, jamais saberia se ela sentia o mesmo, mas acreditou que sim, queria acreditar nisso. Ela o fazia querer viver mais e mais feliz, sem medo, sem julgamentos, sem mentiras. Ela era única e especial para ele.

How I wish I knew you
        How I wish I knew you from before
       'Till I die, 'Till I die, 'Till I die
        Run the avenues, until the city unfurls
       Won't we have to know
       Do we have to know what truth is?
       Why I wish I knew you?
       Why I wish I knew you from before?

Sairam da discoteca rindo aos montes, terminavam de beber sua ultima dose. Aurora arrumou uma escarpe rosa, que nem ela sabia de onde, junto de um par de óculos rosa em forma de coração. Começaram a andar pelo centro, em direção ao porto.

A Lua brilhava intensamente, poderiam enxergar plenamente o caminho mesmo sem qualquer poste de luz. Não haviam estrelas, apenas umas nuvens perdidas. Atipicamente, estava uma noite bem quente e a brisa era um bálsamo.

Quando chegaram no porto, Aurora apoiou os cotovelos no parapeito do cais. Alex foi até ela e fez o mesmo. Ficaram em silêncio por uns dez minutos, apenas apreciando a paisagem.

— Eu adoro esses nossos silêncios — ela disse. Fechou os olhos quando uma brisa mais forte levantou seus cabelos. Estendeu o braço direito e começou a “brincar” com o vento — Eu nunca devo ter me divertido tanto.

— Nem em Boston? — ele perguntou.

Ela então abaixou a cabeça, abriu os olhos e mordeu os lábios. Olhou para Alex, parecia ter ficado meio tonta e meio triste quase que instantaneamente. Reyes achou que ela ia falar algo a ele, mas ela se virou de novo.

— Reforço o que eu disse, gosto de você quieto.

— Já faz dois anos. Eu nunca te perguntei e eu te digo agora, não importa para mim se foi algo ruim que você fez... O que aconteceu em Boston, Aurora?

Ela voltou a olhar para ele, cabisbaixa. Encararam-se por alguns segundos. Ele achou que tinha ido longe demais, que tinha botado tudo a perder, que ela ia se virar e ir embora... Mas ela sorriu.

— Quer ver algo legal? — Ela mostrou para ele uma moeda, virou-a, gesticulou com ela, então a colocou entre as mãos e a amassou. Depois, ela abriu as mãos e mostrou-as. Não havia nada, nenhum sinal da moeda. Então ela veio até próximo de Alex e colocou sua mão na orelha direita dele — Olha só! Veja onde veio parar! — ela disse, retirando a moeda e mostrando para ele — Pode ficar com ela, pra dar sorte.

Ela então saiu do cais. Ainda meio atordoado, Alex a seguiu.

No meio do caminho, ela parou, abaixou-se e começou a tatear o chão.

— Perdeu alguma coisa? — ele questionou.

— Na verdade, estou procurando algo.

Ela continuou a procurar alguma coisa no chão, até parecer ter achado... Uma pedra. Um resto de concreto que parecia ter se quebrado da calçada. Antes que Alex perguntasse o por que daquilo, ela atirou o pedregulho no vidro de um dos carros que estavam ali estacionados.

— Aurora?

Mas ela não respondeu. Enfiou a mão por dentro da janela recém espatifada e abriu o carro. Ela fez uma reverência, ironicamente o convidando para entrar. E ele o fez.

Assim que ela entrou, pegou a mesma pedra e acertou a parte inferior do volante, espatifando um pedaço. Aurora enfiou a mão numa das rachaduras e puxou, abrindo um compartimento com alguns fios.

— Você sabe fazer isso? — ele perguntou.

— Me dê dez minutos!

Oito minutos depois, eles estavam dirigindo pela cidade. Depois de algum tempo, Alex percebeu que estavam saindo da cidade. Ele pensou seriamente em protestar... Mas confiou em Aurora, ele sempre confiava nela. Resolveu, naquela noite, apenas viver.

Dirigiram até Detroit, ouvindo rádio no máximo, cantando todas as musicas, rindo a noite toda. Voltavam pela rodovia para Toronto, vendo o nascer do Sol.

 ♫♫♫♫♫♫♫♫♫♫♫♫♫♫

But don't remind me of home,

 there's everywhere I'd rather

It's true that some things

have to change.

 

And don't remind me of home,

or I might notice where I am

Incase it isn’t quite the same

Não era raro ela fugir de casa durante a madrugada e vir até o quarto de Reyes. Ela dizia ter pesadelos, mesmo parecendo improvável para uma menina tão audaciosa. Alex vez ou outra tentava perguntar para ela algo de seu passado, fosse sobre Boston, fosse sobre os garotos nas fotos dela, que ela depois trocou por fotos com ele que tirou com o passar dos anos. Mas ele nunca soube nada do passado dela, e as vezes, nem se importava com isso. Até um dia em que ela veio até ele de madrugada, pedindo para dormir ali. Ao contrário das outras vezes, ela deitou-se de frente para ele.

— Eu tenho um monstro dentro de mim, Alex — ela disse, baixinho, após, fez uma longa pausa. Talvez esperasse que ele falasse algo ou a julgasse boba, o que ele não fez — Ele me faz ficar triste as vezes, muito triste. Ele vem até mim, as vezes até quando eu to indo dormir, e fica me falando coisas ruins. Me lembra do meu passado, dos meus piores momentos, me faz sentir saudades das coisas boas, mas uma saudade que parece tão ruim. Ai ele vem e me diz que meu futuro não vai acontecer, que eu vou falhar em tudo e com todos... Especialmente com você, Alex.

— Você nunca vai falhar comigo, Aurora.

— Mas eu tenho medo — Lágrimas começaram a brotar nos seus olhos — Eu não queria que as coisas fossem assim. Você afasta esse monstro, Alex, queria que você ficasse comigo por mais e mais e mais tempo. Podíamos ter sido irmãos. Ou até mais — Ela enfiou a mão no bolso e tirou a foto da aurora que Alex tinha visto há dois anos atrás, quando ela se mudou — Eu sempre amei essa foto, é o lugar mais lindo do mundo. Eu queria que você tivesse visto ele.

— Onde fica?

— No norte, bem ao norte. Eu vi numa viagem que fiz até Arctic Bay. Só o encontrei uma vez, depois nunca mais. Nem vi ninguém que tenha visto local com essa descrição. Acho que é um lugar único.

— Um dia você me leva lá, alias, podíamos viajar pra muitos lugares: Londres, Amsterdam, Paris, Madrid, Moscow... Tem uma variedade enorme de lugares pra gente ir.

Ela o olhou ternamente, passou a mão no rosto dele, onde começava a se formar uma barba. Dezessete anos, afinal. Depois aproximou-se dele e se aninhou.

— Um dia... Obrigado por tudo, Alex.

...

E o resto da história tomou o curto espaço de uma semana;

Reyes acordou sem Aurora na cama;

Os Bronn vieram final de tarde perguntar por Aurora;

Ninguém a viu o dia todo;

A policia foi chamada e saíram na mesma hora;

Encontrar a menina de quem ninguém sabia nada;

Nem quem era, nem de onde veio, nem para onde foi;

As fotos sumiram, só a do lago congelado ficou;

Uma semana de procura;

E Alex ainda se perguntava quem era Aurora Bronn.

...

Depois de uma semana, Reyes havia se cansado das desculpas da policia. Ele sabia onde sua melhor amiga estava, talvez sempre soubesse, mas não sabia o que falar. Precisava chegar ao lago congelado, no norte, no extremo norte.

Só precisava descobrir como.

Ele sabia que Reyes precisava de ajuda, e ele queria muito ter ela de volta, a salvo, em segurança.

Ele faria o que fosse preciso.

...

Dois meses que Aurora desapareceu, Alex havia chegado bem longe de casa. O garoto roubou os cartões dos pais, pegou todo o dinheiro que tinha guardado e ainda roubou o que pôde da sua ultima visita a casa dos Bronn. Eu vou trazê-la de volta, por favor, me perdoem. Antes de ir, foi até o quarto de Aurora. As luzes de natal não estavam mais lá, nem as fotos, os pregos foram todos removidos, a única lembrança de que Aurora já esteve ali eram os buracos na parede que ele tinha feito. Repetiu a si mesmo que não estava ficando louco.

Ele pegou um ônibus até Sudbury, depois outro até Thunderbay e um ultimo até Winnipeg, tudo pago com dinheiro. Avisou seus pais que iria passar um dia na casa de um colega para se distrair um pouco, o que lhe deu algum tempo. O dinheiro despistaria qualquer um que tentasse encontrá-lo através de cartões.

De Winnipeg, pegou um vôo até Thompson, onde pegou outro vôo até Arctic Bay. Foi um custo relativamente relevante, se posto na ponta do lápis, mas ele não ligava, precisava ir atrás de Aurora, e iria até o fim do mundo por ela.

E ele, de certa forma, foi.

Permaneceu em Arctic Bay por dois dias, perguntando sobre Aurora e sobre o lugar da foto que ele segurava, até que uma velha senhora, nativa americana, contou para ele sobre uma historia. A mulher falava em sua língua nativa e sua neta traduzia. Disse que existiam lendas sobre um vale ao norte, que aparecia para alguns em determinados momentos, um lugar místico, onde antigos deuses habitavam.

Ignorando o misticismo, pegou todas as orientações que pôde.

— Siga a aurora, ela vai te levar para onde você quer — A neta traduziu a ultima coisa que sua avó falou para Alex. E durante a noite toda, ele sonhou com essa frase.

Alugou uma bicicleta no dia seguinte e decidiu seguir seu caminho sozinho.

Siga a aurora. Siga a Aurora.

...

Por três dias, ele andou, perdido feito uma criança, sentindo-se tolo e um lixo por ter falhado. Vasculhou todo lugar que pôde, seguiu rios, subiu em morros e observou o horizonte. Nada parecia levar ele para sequer um lugar parecido com sua foto.

Pelo contrário, a paisagem não podia ser mais diferente. E mesmo assim, ele se acostumou com a idéia de passar duas vezes pelo mesmo lugar. Olhou para a foto novamente. Continuou durante o dia todo, até montar acampamento de noite.

...

Olha só, parece que é meu aniversário.

Completaria dezoito anos, a idade em que muitos anseiam chegar, um momento que todos dizem ser um divisor de águas na vida. E lá estava ele, perdido no ártico, praticamente no pólo norte do globo, atrás de uma menina que ele próprio começava a duvidar da existência. Mas ele ainda acreditava em Aurora Bronn, ele ainda acreditava.

E foi então que olhou novamente a moeda mágica que ela dera para ele. Uma enxurrada de lembranças vieram na sua cabeça, dos dias em que ficaram tristes e desanimados juntos, dos dias felizes que tiveram, das noites em claro conversando, das risadas, dos sorrisos e do olhar doce dela, de como ela era encantadora em todas as formas possíveis.

Ela salvou a vida dele. E ele jamais conseguiria esquecê-la, nem se perdoar por tê-la abandonado, ainda mais quando ela parecia precisar mais do que tudo. Ele a ajudaria a derrubar o monstro que a assombrava, ele estaria lá sempre para ela, e ele sempre iria alcançá-la, não importa o quão longe ela fosse.

Eles eram uma coisa só, por mais distintos que fossem.

Faça um pedido. Fechou os olhos com força, enquanto o céu estrelado o engolia na sua escuridão. Eu quero encontrar Aurora.

Pediu a Deus, e até aos deuses antigos daquelas terras, que o ajudassem a achá-la, a trazê-la em segurança para casa. Que o ajudassem a ser o que ela precisava, a ser seu melhor amigo de novo, a salvá-la, a vê-la sorrir de novo e dizer que o mundo, por pior que estava, ficaria melhor, que ele daria um jeito.

E ele desabou em lágrimas.

Olhou para o céu.

Uma aurora. Uma onda verde e azul que dançava na escuridão, o mais próximo de magia que qualquer humano veria na vida, o mais místico dos fenômenos.

E sua possível salvação.

Pegou a bicicleta, seus últimos pertences, e foi seguindo a grande mancha verde no céu.

...

Não podia acreditar quando viu.

Ele tinha certeza absoluta de já ter passado pela região, mas só naquele momento, ele encontrou o vale que ele tanto procurava. E quase igualzinho a foto que Aurora havia tirado. O lado congelado, uma montanha ao fundo, a aurora esverdeando o céu, haviam mais pinheiros dessa vez e até pequenos arbustos.

Se perguntava como não tinha visto aquilo antes. Como era possível?

Calou todo tipo de pensamento quando, ao longe, avistou uma figura a beira do lago, admirando a noite. Parece uma... É uma garota! Os cabelos negros dançavam com a leve brisa fria que soprava, Alexander não podia ver que roupas ela utilizava, mas eram pretas. Seu coração acelerou astronomicamente, esboçou um sorriso enorme e respirou pesadamente. Finalmente! Finalmente te achei, Aurora! E ele correu desesperadamente até ela, usando suas ultimas forças.

E não era ela. Assim que ela se virou para ele, ele pôde constatar isso.

 Usava uma calça jeans preta, um casaco de couro cobrindo uma blusa branca, que Alex podia ver poucos detalhes. Calçava botas de cano alto. A pele era pálida, até demais. Os cabelos eram compridos, diferentes de sua amiga. E haviam estrelas nele.

— Alexander Reyes — A garota não perguntou, apenas parecia ter constatado. Ela parecia ter a idade dele, talvez um pouco mais velha, mas nem tanto. O garoto a encarou e pôde ver... O quão linda ela era. Seus olhos reluziam em cores distintas, assim como suas sobrancelhas, seus lábios, suas unhas e seus cabelos. São como galáxias, constelações, nebulosas... Auroras.

— Quem é você?

— Eu sou a Morte. Está procurando por alguém?

Estranhamente, ele respondeu sem questionar nada.

— Aurora Bronn, ela é uma amiga minha. Você a viu?

— Eu vi a senhorita Bronn duas vezes. Uma quando ela visitou esse lugar pela primeira vez, alguns anos atrás. A segunda, foi bem... Recentemente. Gosta desse lugar, senhor Reyes?

— É maravilhoso, surreal, igual como Aurora me contou que era.

— Ela nunca se esqueceu desse lugar, ela o visita quando consegue sonhar, quando está junto de você.

— Como você sabe?

— Eu sei de tudo.

— Sabe onde ela está?

E a Morte então calou-se.

Virou para frente, admirando o lago novamente. Cruzou os braços por alguns segundos, olhando para as estrelas, sentindo o vento que parecia soprar apenas para agradá-la. Alexander chegou a se esquecer o porque de estar ali, apenas aproveitou a paisagem por alguns minutos.

— Deite-se comigo — a Morte falou, enquanto ela repousava no chão de cascalhos. Os movimentos dela eram tão leves que Alexander ficou estupefato. Os dois deitaram-se lado a lado, olhando para o céu. Morte então começou a contar as estrelas para o garoto, explicou-lhe sobre os planetas, as constelações e até mesmo algumas coisas que ele sequer imaginava como ela sabia.

Os dois aninharam-se conforme o frio ficou mais intenso.

— Você deseja encontrar Aurora? — ela sussurrou para ele.

— Mais do que tudo nesse mundo.

A Morte encarou Reyes por alguns instantes. Ela parecia ter se afeiçoado a ele de uma maneira estranha. E ele ficou tão fascinado com tamanha beleza que ela tinha. Havia algo estranhamente especial ali, algo novo que nascia. Eles sorriram um para o outro, cúmplices, honestos, de certa forma, perdidos, tentando encontrar seu lugar.

— Feche os olhos e durma.

...

Foi como mergulhar numa piscina e prender o fôlego. Quando o Aprendiz retornou, sentiu um profundo mal estar. Estava cansado, tenso, exausto ao máximo, mas o pior de tudo, lembrando-se.

A Dama veio acolher ele e ajeitá-lo na cadeira onde ele estava antes. Pegou um abanador e começou a movê-lo devagar. Com uma mãe, materializou um copo de água e entregou ao pupilo.

— Você está bem? — ela perguntou.

— Não, nem um pouco, me dê um minuto.

Ela foi até um outro cômodo, deixando-o sozinho por alguns minutos. Ele tentava recuperar a consciência de onde estava. Mas o que ele mais sentia era dor, era o coração partido, era sua moral abalada, era toda sua vida que, de uma vez só, caiu nas suas costas.

Ele explodiu num choro infantil e desesperado.

Quando a Dama voltou, acolheu ele em seus braços e o trouxe para seu peito, afagando os cabelos e cantando uma melodia suave. Um abraço apertado e maternal. Com pouco tempo, ele parecia ter se acalmado exponencialmente. As coisas pareciam não tão ruins mais. Sua magia é especial, minha senhora, e a amo por isso. O conforto o fez voltar a si.

Quando voltou para a cadeira, ele notou uma bandeja trazida pela Dama, com uma xícara de chá, duas torradas com creme, um pedaço de bolo de chocolate e uma fatia de pão com centeio, com um patê escorrido por todo seu comprimento.

— O que aconteceu depois? As coisas estão voltando muito rápido!

— Alexander Reyes morreu de hipotermia. Quando você veio para cá, continuou a procurar por Aurora, vasculhou infinitos corredores e quartos, nunca desistiu de procurá-la, nunca parou... E isso o quebrou.

— Eu nunca a encontrei?

— Nunca. Você foi enlouquecendo aos poucos, pichou diversas paredes, deixando instruções e se perguntando por ela. Um dia, a Morte te trouxe para mim, e eu te fiz uma proposta, lhe ofereci o cargo de meu Arauto. Você aceitou, contanto...

— Contanto que você apagasse Aurora da minha cabeça.

A Dama não precisava responder.

— Você sabe o que aconteceu com ela?

— Ela nunca chegou a fazer a Iluminação.

— A Morte... Ela falou... Aurora Bronn está aqui então? No Lugar?

A Dama retorceu os lábios, e meio contrariada, respondeu.

— Sim.

Aquilo era muito para o Aprendiz. Ou seria Reyes agora? Ele falhou com Aurora, com sua Aurora, não apenas por não ter salvado ela, mas por tê-la esquecido, por tê-la abandonado. Aquilo era imperdoável, tudo nele doía e parecia se desfazer, ele não sabia se era possível, mas sentia que estava morrendo de novo, dessa vez, parecia estar simplesmente deixando de existir. E se arrependeu na mesma hora de ter bebido a Lágrima. Ele sabia a verdade, e isso só lhe trouxe dor, tristeza, só revelou o quanto tudo parecia sem sentido, e o pior: a saudade. Ele sentia falta de Aurora, de sua melhor amiga. E era uma saudade que o dilacerava, que o destruía por pedacinhos.

— Aprendiz, meu querido...

— A Lágrima... Você... Você tem mais?

A Dama o olhou, com pena. Um novo frasco se materializou na palma da sua mão esquerda.

— Você não pode ficar se iludindo para sempre, em algum momento, vai ter que enfrentar Aurora, vai ter que enfrentar sua dor. Nada dura para sempre, igual essa ilusão que você criou. Você vai precisar da verdade alguma hora.

...

E ele estava de volta no apartamento dele. Havia conjurado um feitiço que fez a pequena Gabrielle dormir. Ele a adorava, mas precisava de um tempo a sós, precisava pensar e muito.

O Aprendiz tinha uma escolha clara na sua frente: viver uma vida nova, ou continuar a viver sob o peso da culpa, tanto de não ter conseguido encontrar Aurora viva, quanto de não ter conseguido encontrar ela morta... E por ter, deliberativamente, abandonado-a. Ele escolheu esquecer. Um crime que ele considerava terrível. Eu jamais me esqueceria dela sozinho. É impossível se esquecer de Aurora Bronn.

O que seria melhor? Viver sabendo que você decepcionou aqueles que você ama, ou nunca ter sequer sabido da existência deles? É melhor se lembrar da dor ou viver na ignorância?

Ele abriu o frasco da Lágrima de Hécate e bebeu todo o conteúdo.

...

 

 

...

 

 

...

 

 

 

 

Em algum lugar do Lugar;

Aurora Bronn ainda está esperando por Alexander Reyes.


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