Hugo escrita por Rossetti


Capítulo 5
Cinco


Notas iniciais do capítulo

Sim, eu sumi. Desapareci, evaporei, por bem mais de um mês. E cada dia que passava, eu pensava: Como posso esperar ter qualquer leitor, se não tenho comprometimento? E se tornava difícil continuar naquele dia, ainda mais difícil no dia seguinte, muito pior no outro...
E o que eu tive não foi um bloqueio criativo, foi um bloqueio na minha autoestima, eu mesma inventei um monte de desculpas para me auto-sabotar. Infelizmente alguma coisa dentro de mim faz isso com frequência.
Espero que alguém ainda queira ler. Espero mesmo. Eu amo essa historia, então...
Desculpa tudo isso.



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Quando menos imaginei, o dia da verdade estava chegando. Eu nem lembrava mais o que tinha dito nos últimos anos. Mas esse ano eu estava me sentindo uma panela de pressão prestes a estourar. Mesmo que não soubessem o porquê, tenho certeza que minha família sentiu meu nervosismo e ansiedade aumentando e me consumindo. Muitas vezes, quando eu acordava de longos devaneios, encontrava alguém me olhando, com uma ruga de preocupação na testa.

E quando esse noite chegou, eu só conseguia olhar para meu prato. Até porque Hugo estava bem na minha frente; os nossos lugares eram os mesmos todos os anos, porque eu sempre fazia questão de poder olhar para ele. Mas naquela noite eu estava com medo de encarar aqueles olhos castanho-esverdeados. Porque meu maior segredo, o que mais me angustiava, era justamente o que me levou a querer estar perto dele e passar cada ocasião especial olhando diretamente para Hugo, meu Hugo.

Eu não poderia dizer qualquer bobagem, já que todos já esperavam que eu falasse alguma coisa séria. Minhas mãos estavam tremendo e o macarrão nem parava em cima do garfo.

— Greg, quer um copo de agua? – Tio Ed ofereceu, levantando as sobrancelhas.

— Não, eu tô bem. – Menti. Senti o olhar da família toda sobre mim e soltei o garfo. – Beleza. Olha, eu sou gay.

Eu não tinha planejado falar. Mas falei. E graças aos deuses era uma verdade forte o bastante para justificar o fato que eu deveria estar quase branco.

— Oh. – Sonia olhou em volta, depois para mim, com os ombros encolhidos. – Amorzinho, você ficou tão nervoso por causa disso?

— Ahn... – Eu não sabia o que dizer. Tatiane e Adassa trocaram umas risadinhas e minha vó fez o sinal da cruz. Mas o resto parecia meio indiferente. Fiz um certo esforço para encarar Hugo e ele... Ele estava brilhando de orgulho de mim, aparentemente. – Vocês já sabiam, então?

— Era segredo? – Meu pai bebeu um pouco de vinho.

Coloquei as mãos no colo. O assunto não era o que estava me angustiando, mas sinceramente, aquele momento estava surreal demais para se lidar.

— Vocês não ligam?! Vocês só... Perceberam e aceitaram isso? – Perguntei, pasmo.

— Amor... – Minha vó suspirou. – Querer eu acho que ninguém queria, né. Mas nós vamos fazer o que?

— Ah. – Fiquei parado um tempo, digerindo aquilo. – Hum. Obrigado, acho. – Falei baixinho. Sentia meu humor renovado, assim como o sentimento de amar todos eles.

— Minha vez, minha vez. – Hugo balançou a mão no alto e sorriu como se estivesse aprontando alguma coisa. – Já que entramos no assunto, vou falar logo. Gosto de meninas e meninos.

Silencio total.

Porque parece que ninguém esperava por essa.

Bom, eu suspeitava um pouco, mas... Nossa.

— Assim já é demais! – Minha vó levantou e saiu do cômodo, provavelmente indo rezar no quarto dela.

Tati e Adassa pareceram se contorcer para não rir, o resto começou a fazer perguntas para Hugo. O que me incomodou um pouco foi a reação de meu pai; ele olhou para mim durante alguns segundos, então desviou o olhar para a janela, quieto.

Consegui ficar sozinho com Hugo apenas na hora de dormir.

— Você é um safado corajoso. – Acusei, deitando na cama, com as costas na parede.

— E você parecia que ia morrer lá. – Hugo tirou a camisa e passou a mão no cabelo pra afastar dos olhos. Ele, eu tinha certeza, não fazia ideia de como ficava bonito fazendo isso. – Pensei que fosse falar alguma coisa mais séria.

Dei de ombros.

— Eu não imaginei que você... – Comentei, deixando a frase no ar.

— Sério? – Ele deitou e me abraçou. – Nunca passou pela sua cabeça, em momento nenhum?

— Hum. – Pensei um pouco. – Uma vez, ou outra, talvez.

— Sabia. – Ele riu baixo.

Passei os dedos entre os fios de cabelo macios e depois em suas costas. Em pouco tempo Hugo tinha dormido e enchido meu peito de baba. E eu... Gostaria ser como ele, leve e impulsivo, despreocupado.

Mas eu não era Hugo e por isso estava me corroendo com sentimentos impossíveis de identificar e ansiedade, muita ansiedade.



~

Hugo conseguia se superar.

Com quinze anos, ele era tão lindo que era difícil de olhar sem perder a noção da realidade.

Eu podia conviver com o que sentia, na maior parte do tempo, mas as vezes tinha a sensação de que ele dificultava de propósito. Como as vezes que andava sem roupa pelo quarto, sem nenhum motivo especifico, então eu tinha que disfarçar e desviar o olhar para qualquer outra coisa. Outras vezes ele parecia perder a noção de distância; não era coisa da minha cabeça, não mesmo. Cada dia Hugo se aproximava mais de mim, fisicamente. Algumas vezes, na hora de dormir, em vez de encostar o rosto em meu peito, ele colava os lábios no meu pescoço e a cada respiração quente na minha pele me fazia estremecer. Nesses dias eu esperava ele dormir e me afastava um pouco, em nome da minha sanidade.

Num domingo, eu estava dormindo de boa, quando Hugo pulou em cima de mim para me acordar. Isso era uma coisa normal, acordar o outro carinhosamente pulando nele e berrando um “sai da cama, preguiçoso”. Mas nesse dia ele resolveu que ia fazer cocegas em mim e eu ri até quase morrer sem ar. Mesmo depois que ele parou e ficou olhando eu me recompor, sorrindo.

— Quer sair? – Hugo se inclinou para mais perto de mim. Quando finalmente parei de rir, percebi que eu podia até mesmo sentir seu hálito, cheirando a café.

— É domingo de manhã, Hugo. – Reclamei, virando o rosto. – Sai de cima de mim.

Ele não saiu, só deu uma risada e se inclinou pra mais perto.

— Quero comer pastel na feira.

— Você me acordou pra isso? – Suspirei e virei o rosto. Então Hugo passou o nariz pela minha bochecha, devagar.

— Por favor. – Pediu baixinho.

— Como se eu conseguisse falar não pra você.

Hugo sorriu, daquela forma brilhante. Mas em vez de sair de cima de mim, se esticou sobre mim feito um gato preguiçoso e abraçou minha cintura.

— Por que você não consegue falar não para mim? – Indagou.

— Por que você tá deitando se eu tenho que me trocar para sairmos?

— Quero ouvir você dizer que me ama.

Eu ri um pouco e passei a mão no seu cabelo.

— Carência matinal, Hugo?

— Diz.

— Aí não vai ser espontâneo.

— Não importa, eu sei que você me ama de qualquer forma.

Ri mais alto.

— Então por que quer que eu diga?

Hugo demorou para responder. Ficou alguns segundos passando a unha pelo meu braço, olhando para os riscos que ficavam na pele.

— Porque faz tempo que você não me fala isso. – Respondeu, apenas minutos depois, quando não havia mais espaço para ser riscado no meu braço.

Fazia tempo? Eu nem tinha percebido. Talvez eu tivesse ficado mais hesitante, depois que as coisas ficaram complicadas.

— Eu não consigo dizer não para você porque te amo demais, Hugo. – Sussurrei, muito perto de sua orelha. E senti ele, literalmente, estremecer sobre mim.

No segundo seguinte Hugo tinha pulado de cima de mim e corrido para o guarda-roupa.

— Bora comer pastel! – Falou com seu tom animado. Mas senti uma certa hesitação dele em me encarar. Hugo estava fazendo aquele lance dele, esconder as mãos, olhar para qualquer lugar que não fosse meu rosto, expressão ilegível.


~

Eu não sabia se as coisas estavam mudando ou evoluindo. Existe uma diferença, mudar e evoluir.

Mudar pode significar sair de uma situação para outra. Evoluir é seguir um caminho, ser parte do que sempre esteve designado a ser. 

Não que isso importasse na pratica. Se algo acontece, não importa como se chegou até ali.

Engraçado que eu percebi nessa época, eu era meio que parecido com meu pai. Um habito que ele sempre teve e eu comecei a ter foi o de olhar pela janela. Ficava olhando os carros passando na avenida, perdido em pensamentos. O melhor horário para isso era a noite, os faróis eram visíveis. Com a visão desfocada, era um mar de luzes brancas e vermelhas.

Uma noite que não tive aula, eu estava olhando pela janela do meu quarto. Hugo entrou, recém tomado banho, e só percebi que era ele por causa cheiro, já que não fez barulho algum. Então, só porque sim, ele me abraçou por trás e encostou o rosto em meu ombro.

Era tão bom, aquele cheiro, aquele calor. Como se fizessem parte de mim mesmo, eu não estava completo sem Hugo. Ficamos assim por um tempo, até que ele beijou o meu rosto e se afastou.

Não falei nada sobre isso. Nem ele.

Houve um dia em que eu estava deitado a seu lado, quase cochilando, no gramado. Hugo estava de bruços, lendo um livro, com o braço direito por cima da minha barriga e mexendo no tecido da minha camiseta, sem perceber. Em algum momento ele passou a arranhar suavemente a minha pele, no espaço entre a camiseta e o cós da calça. Quando percebi, estava ligeiramente sem folego, por aquele simples toque. Me virei de lado e espreguicei e segurei sua mão, para que Hugo parasse com aquilo. Não sei se ele percebeu, apenas continuou lendo e entrelaçou nossos dedos.

Eu não tinha noção até que ponto Hugo entendia o que vinha fazendo, mas não iria perguntar nada; eu estava assustado. Era como se ele se sentisse da mesma forma que eu. E não havia nenhuma reação imaginável para... Bem, aonde é que chegaríamos?

Tive medo que mais alguém percebesse.


~

— A faculdade anda te estressando? – Tia Vani me perguntou, numa manhã que eu fui até sua casa usar sua máquina de lavar para bater umas camisetas minhas e de Hugo. Ele estava na aula.

— Um pouco. – Desviei o olhar da máquina para ela. Estava parada na porta, de braços cruzados. – Por que?

— Está com um olhar perdido há dias, até o Daniel me perguntou se você não tá doente. Talvez esteja cansando demais a cabeça.

— Ah. – Olhei para a máquina de novo. – São muitas provas. Eu acho que devia procurar um emprego para ocupar a cabeça um pouco.

— Isso não ia te sobrecarregar mais? – Ela perguntou, rindo um pouco.

— Não, eu acho que não.

— O que eu acho é que você devia sair mais. Você tem amigos, não tem? Mas acaba passando o tempo todo aqui, colado só com o Hugo. Vocês não cansam um do outro, não?

— Acho que não, tia. A gente se dá bem.

— Mas vocês precisam interagir com outras pessoas, Gregório. A vida tá passando. Vocês não vão poder ficar na saia um do outro para sempre. Um dia vão ter que viver por si mesmos, encontrar alguém com quem passar a vida... Mesmo você, tenho certeza que deve ter vontade namorar... Algum rapaz. – Ela disse isso devagar, como se tomasse cuidado para não escolher as palavras erradas.

— Eu sei, tia. – Olhei na direção da janela.

É claro que eu sabia. Já fazia tempo que eu percebia, em algum momento teria que cortar essa dependência que eu tinha de Hugo e ele de mim. Achei que o tempo faria isso naturalmente, mas conforme os dias passavam ficava mais e mais difícil imaginar minha vida sem ele. Algumas vezes eu chegava a imaginar nós dois dividindo um apartamento, fazendo coisas casuais juntos. Minha consciência ardia por eu me permitir ter esperanças disso.

— Não espere que ele faça tudo sozinho. – Vanielle disse, antes de me dar um tapinha no ombro e sair da lavanderia.

Não sei se não entendi o que ela disse ou me convenci que não tinha entendido.

 

 

~

Hugo tinha dezesseis quando sentou do um lado e disse:

— Queria dançar. – Ele balançou as mãos, para mostrar que estava inquieto.

— Tá. – Respondi, sem fazer ideia de que outra coisa responder.

— Com você, Greg. – Ele levantou e estendeu a mão para mim.

— Ok, você não pode estar falando sério. – Deixei a apostila que estava lendo de lado. – Não tem música, nem sent...

Ele me puxou pela mão com uma facilidade incrível.

E dançamos.

Não havia nenhuma razão para estarmos dançando, não éramos bons naquilo, não tinha nenhum ritmo definido. Mas era absolutamente certo.

Hugo conduzia a dança (e em momento nenhum tínhamos combinado isso, apenas aconteceu), eu me deixava levar. Vez ou outra ele improvisava um passo em que me afastava e depois me puxava para perto. Então dávamos risada da nossa bobeira. Uma bobeira meio apaixonada.

Ele tentou fazer um passo estranho, de não sei qual dança, e acabou atrás de mim, segurando minhas mãos, enquanto eu estava com os braços cruzados. Senti Hugo sorrindo na minha nuca.

— Não seria bom... – Ele me virou e me puxou para perto de novo. – Podermos dançar sempre, em qualquer lugar?

— As pessoas nos olhariam estranho. Começando por ser dois caras dançando juntos. – Expliquei, ligeiramente sem folego. – E pensariam que somos um casal.

Hugo parou de dançar e me encarou, apenas quieto. Imediatamente quis desfazer aquilo, voltar no tempo e não ter dito nada.

Era obvio que ele tinha entendido alguma coisa, eu não sabia se sobre mim ou sobre si mesmo.

Abri a boca para me desculpar, mas ele falou primeiro.

— Greg. – Sua voz estava estranha. Senti a sensação de ansiedade crescer e me engolir. – Você acha que temos que escolher?

— Do que você tá falando? – Perguntei, sinceramente confuso.

— Sobre... – Hugo não conseguiu encontrar as palavras e ficou olhando para o lado. Eu esperei. Percebi que ele apertava minha cintura a ponto de doer um pouco, mas não reclamei.

Quando pensei que ele iria apenas virar e se afastar, Hugo se aproximou mais.

Não tive seque um segundo para reagir ou entender.

Eu nem sentia meus pés no chão. Meu corpo queimava e meu coração batia tão rápido que poderia explodir só por isso. Não sabia o que fazer com minhas mãos, porque não sentia minhas mão, nem sequer lembrava que elas existiam, assim como o resto do meu corpo e de qualquer coisa existente.

Era surreal, mas ele estava me beijando.

Hugo, meu Hugo.

Seu corpo era tão quente e, de repente, desconhecido, mesmo sendo o mesmo ao qual tinha dormido abraçado pelos últimos dezesseis anos. Eu nunca tinha estado tão vivo, até ali.

Segurei seu cabelo assim que lembrei como coordenar minhas mãos, o trazendo para mais perto. Ele fez o mesmo, mas com minha cintura. E parecia não ser o bastante, apenas não estávamos próximos o bastante, então ele me encostou na parede e eu quase vi fogos de artificio quando senti a forma como esfregou seu corpo no meu.

Percebi que precisava parar de beijar sua boca, mesmo que sua boca fosse a melhor coisa que eu já tinha provado, simplesmente porque eu precisava beijar o resto do seu corpo, cada parte dele, com uma necessidade inexplicável. Precisava tirar sua camiseta, para começar, então levantei ela.

Hugo interrompeu o beijo e por um momento espetacular achei que fosse para possibilitar que eu tirasse a peça de roupa. Mas minha alegria se foi tão rapidamente quanto tinha chegado.

Ele estava com a expressão errada, muito errada. Parecia perdido, prestes a chorar, confuso.

— Hugo. – Chamei, com a voz meio falha. – Hugo, isso foi...

Mas ele fechou os olhos e balançou a cabeça, sem querer me ouvir. Então saiu do quarto, sem dizer nada.

Acho que entrei em choque, porque não lembro o que aconteceu nas próximas horas.

Meu mundo ruiu. E eu passei as horas seguintes tão afundado em dor, que não consigo descrever nem uma fração do que senti. Quando lembro é como se houvesse uma nevoa encobrindo tudo. Apenas não sei como sobrevivi, já que sentia que realmente poderia morrer apenas de excesso de sofrimento sentimental.

Hugo não dormiu comigo naquela noite.

Não dormiu comigo mas nenhuma noite.

E embora as coisas tenham continuado muito iguais durante o dia, a noite a solidão me esfolava devagar, até eu dormir exausto de tanto sentir e sentir e sentir.

Eu queria morrer. Ou superar. Ou simplesmente encarar Hugo, nos olhos. Não dava mais para fazer isso.

Toda a família percebeu que tinha algo de errado, é logico. Lembro de me tratarem como se eu fosse uma bomba relógio, prestes a explodir; mal sabiam eles que eu estava vazio demais para isso.

Terminei a faculdade e não faço ideia de como passei nas provas. Eu poderia ter ficado ao menos um pouco feliz, mas foi a época que Hugo anunciou que ia fazer faculdade numa cidade a mais de dez horas de viagem da nossa cidade, morar lá durante os quatro anos.

Mais uma vez, eu queria morrer.


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Notas finais do capítulo

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