P.O.V. Mali

Quando meu avião pousou em Seul, tive vontade de pedir ao capitão para voltar e buscar meus órgãos internos, que eu tinha certeza de que havia deixado lá em cima.

Eu ainda estava com um tom de pele um tanto pálido quando entrei no táxi e disse ao motorista o endereço do hotel, tanto que nem aproveitei muito bem a vista da cidade onde sonhei em ir pelos últimos cinco anos. Naquele momento, só tinha cabeça para pensar em duas coisas: o terrível enjoo que custava a passar, e a competição que teria no dia seguinte.

Campeonato mundial de Taekwondo. Eu estava, orgulhosamente, representando o Brasil no campeonato, junto com outras cinco garotas que haviam vindo em um voo diferente do meu, e já estavam instaladas no hotel. No último ano, havia me esforçado muito para vencer o meu terceiro campeonato brasileiro e então ser chamada para o mundial. Dividi meu tempo basicamente entre os treinos intensos e a faculdade que consumia os meus neurônios, o que foi suficiente para ocupar meus dias ao ponto de meus amigos reclamarem. Mas eu tinha um objetivo, e ninguém me convenceria a mudar de ideia.

Depois de terminar a escola mais cedo por ser adiantada, o que ajudou minha mãe a concordar que eu tinha uma boa base para entrar na faculdade, eu também concluí o curso de coreano, e entrei para a faculdade de Letras-Japonês. Tudo isso, é claro, só servia para alimentar minha paixão por cultura oriental.

Fazia pouco mais de um ano desde meu encontro com Kim Taehyung, e eu ousei manter as esperanças de que ele cumpriria a promessa. Mais um motivo para me empenhar em ir à Coréia, apesar de estar me preparando psicologicamente para a maiso decepção da minha vida. Eu sabia o quanto aquela esperança era insana. V tinha um mundo para conquistar, se é que me entende. Parecia impossível que ele pudesse ao menos lembrar do meu nome. Mas, se tem algo que aquele momento no provador e aquela tarde na praia me ensinaram, é que de vez em quando o impossível tira folga, e dá lugar a acontecimentos extraordinários. Só parecia pedir muito torcer para que se repetisse comigo ao menos um pingo do que tive naquele dia.

Agora minha querida faculdade pública havia entrado em greve e eu tinha no mínimo um mês livre. Por isso, nem havia comprado uma passagem de volta para o Brasil, apesar das reclamações da minha mãe. Havia algum tempo que eu vinha trabalhando com tradução de texto via internet e ganhando meu próprio dinheiro, de forma que meu pai só precisara pagar pelo aluguel de um apartamento pequeno para onde eu me mudaria depois da competição.

Aliás, meus pais haviam se separado e estavam em pé de guerra. Por isso, sempre que minha mãe não queria me dar algo, eu recorria ao meu pai. Acordo daqui, acordo de lá, acabei indo parar do outro lado do planeta, para o intercâmbio que mais sonhei.

— Moça. - o motorista chamava, arrancando minha concentração - Moça, já chegamos.

— Ah, desculpe! - respondi, passado para ele o valor e descendo do carro, em seguida tirando minhas três malas.

Arrumei a mochila nos ombros e fiz um malabarismo para levar tudo para o interior o prédio enorme onde eu e a equipe ficaríamos. Estava até me saindo bem, quando dei de encontro com alguém.

— Desculpe! - exclamei, largando as malas no chão e estendendo a mão para uma garota caída.

Ela tinha cabelos curtos, em um tom quase rosa, e corpo delicado. Arregalei os olhos.

— Yoora?! - exclamei.

Ela se assustou, levando então o indicador aos lábios, pedindo discrição, e eu cobri a boca. Será que é minha sina esbarrar em idols por aí? 

Yoora era a Maknae de um grupo feminino que eu recentemente acompanhava. Ela tinha uma personalidade quieta que me fazia lembrar idols como Jungkook, e eu amava sua voz, como também admirava suas habilidades como dançarina. Além disso, rondava o rumor de que ela estava trabalhando com o Maknae do Bangtan em alguma coisa, mas era apenas uma especulação.

— Desculpe. - repeti, baixinho, ainda cobrindo a boca, e ela soltou um risinho, provavemente vendo graça no jeito em que eu me inclinava para frente com uma expressão abismada.

— Não tem problema. - respondeu.

— Eu amo a sua voz. - deixei escapar. "Droga" pensei "Vou ter um fangirl attack aqui!"

Ela ficou com as faces rosadas.

— Obrigada. - disse - Desculpe, qual o seu nome?

Eu me curvei.

— Sou Marina, mas pode chamar de Mali. 

Ela correspondeu.

— Você não é daqui, é? - ela parecia curiosa - Tem um tom de pele tão diferente. É... bonito.

Abri um sorriso, levando a mão à pele do meu braço. Eu tinha um tom quase chocolate, cabelos pretos meio ondulados e olhos castanhos e grandes. Apesar de me orgulhar da cor que tinha, esse conjunto não me deixava muito confiante em terras asiáticas, onde o padrão exigia pele branca. O elogio de Yoora me pegou desprevenida.

— Obrigada. - respondi - Sou brasileira.

— Ah! Brasil! Samba? - ela sorriu e eu assenti, achando graça.

Nesse momento alguém a chamou e ela se despediu, e eu voltei a caminhar rumo ao meu quarto, novamente com os pensamentos sendo tomados pelo campeonato que enfrentaria na manhã seguinte. Tão imersa nesses pensamentos, que nem notei que deixava para trás, no táxi, o meu telefone (sim, de novo), onde estava gravado o número de Kim Taehyung.

***--***

Kim Taehyung sentou meio apertado no banco da arquibancada, tendo como vizinha uma senhora de tamanho um tanto... avantajado. Ele usava uma máscara branca para fazer de conta que estava doente e impedir que as pessoas o reconhecessem, boné preto cobrindo os cabelos e suas costumeiras roupas largas. À sua esquerda, Jimin parecia nas nuvens, sorrindo feito bobo para uma garota baixinha sentada ao seu lado, que fora apresentada a Tae como Ayui, a colecionadora de histórias. E foi nesse momento que ele percebeu que estava segurando vela. 

V refletiu sobre como havia ido parar ali. Na noite anterior, Jimin entrou como um furacão no quarto, dizendo que seu amigo Ren o havia convidado para assistir ao campeonato mundial de Taekwondo, pois tinha dois ingressos sobrando. E ele resolvera arrastar Tae junto. Claro, o garoto ficou animado com isso, mas agora se sentia estranho por estar presente em um dos esporádicos momentos do amigo com sua garota. E esse era o motivo pelo qual prestava agora tanta atenção na curta cerimônia de abertura, na qual as equipes dos países participantes desfilariam antes dos discursos e formalidades.

Era em ordem alfabética, e estavam no "B", o que fez Taehyung pensar que logo chegaria a equipe do Brasil. Ele tinha uma relação especial com aquele país, e esse fato o fez se inclinar para frente na expectativa. Não que ela fosse estar ali, mas...

— TaeTae! - a voz de Jimin o tirou dos pensamentos nostálgicos.

— Hm? Quê? - resmungou, desviando o olhar para o amigo.

— Aigoo, te chamei umas três vezes! - o menor disse, e então lhe estendeu algumas notas de Won - Compra alguma coisa pra gente comer?

V ergueu uma sobrancelha, mas acabou levantando e seguindo para a lanchonete do lado de fora no estádio, onde uma fila enorme o esperava. Revirando os olhos, esperou pacientemente para comprar dois baldes de pipoca e quatro copos de refrigerante, pensando se Ayui e Ren também iam querer. Quando voltou, a cerimônia já havia encerrado e ele estava com dores nos pés por ter ficado tanto tempo de pé. E percebeu também que havia esquecido que Ren os havia deixado logo após a entrada, dizendo que iria encontrar-se com um amigo, que era competidor, nas salas privadas do estádio. Acabou tomando o refrigerante extra, na empolgação das lutas.

Cerca de seis tatames eram montados, onde as lutas se desenrolavam ao mesmo tempo. Os competidores eram divididos por sexo e idade, e o campeonato feminino ocorria ao mesmo tempo que o masculino, enquanto as categorias iam em uma rotatória, revezando a vez. Vendo os lutadores que se acumulavam um pouco distantes das bordas dos tatames, V pensou que, para um campeonato mundial, até que não tinha muita gente, o que lhe levou a imaginar que o evento como um todo não seria muito longo. Talvez eles até conseguissem assistir às finais antes de terem que voltar ao dormitório para uma reunião com o PD. 

Pura ilusão. Na verdade, o que Taehyung não sabia era que aquele evento durava dois dias, com as semifinais e as finais de cada categoria acontecendo apenas no segundo. 

— Veja! - Jimin apontou para o telão que até agora só estivera exibindo a logo do evento. O garoto estava sem a máscara para permitir que Ayui lesse seus lábios - Eles vão anunciar os semifinalistas.

Taehyung desviou o olhar de um besouro interessante que havia pousado em seu sapato e fitou a tela. 

Nesse momento seu coração acelerou. Pois, estampada na tela, com uma bandeira verde e amarela sobre os ombros e cabelos pretos presos em um rabo de cavalo alto, estava Marina.

**--**

Taehyung precisou de dez segundos para se dar conta de que não estava sonhando - o que o fez lembrar da reação da garota quando o viu entrar naquele provador, há mais de um ano. Tal pensamento fez o garoto firmar os pés no chão, colocar o balde vazio de pipoca sobre o colo de Jimin e correr para descer as escadas das arquibancadas.

— Tae?! - Jimin exclamou, mas o garoto só parou quando já se encontrava contra as barras que impediam a passagem dos espectadores para a quadra. 

Ele se inclinou sobre elas, apertando os olhos numa tentativa de confirmar o que a câmera havia mostrado a todo o estádio. Ali estava ela, de pé entre os outros semifinalistas, a franja caindo sobre os olhos, a pele chocolate brilhando de suor e a faixa preta sendo exibida orgulhosamente em sua cintura. 

— Mali... - V murmurou, admirado.

Ela era tão... incrível. 

O garoto sorriu, meio bobo. Não era de se admirar, pensou. A garota que o defendera de três caras certamente podia chegar ao mundial de Taekwondo na Coréia do Sul.

"Um dia irei à Coréia" ele relembrou sua fala. Então era disso que se tratava? Taehyung começou a olha ao redor, em busca de algum jeito de chegar até Marina. "Preciso falar com ela..." seus pensamentos foram ficando mais urgentes, e uma onda que perguntas se seguiu: desde quando ela estava em Seul? Por quanto tempo ficaria? Por que não ligou para ele, como haviam combinado? Ainda o queria encontrar? Talvez não estivesse mais interessada...

Ele balançou a cabeça numa tentativa de espantar os questinamentos e querendo se concentrar em como chegar até ela. Afastou-se um pouco da grade, dando de encontro com alguém.

— Gomen! - ouviu a pessoa dizer, e então se virou para encarar Ren. O mais velho ergueu as sobrancelhas - Ah, Taehyung! Miane.

— Ren hyung! - Tae exclamou, tendo uma ideia - Ren hyung, pode me ajudar?

Cinco minutos depois, Taehyung estava em uma sala na parte interna do estádio, à espera da chegada de Marina. Ren era incrível mesmo, V pensou, visto que o rapaz havia facilmente sido capaz de abrir para ele a entrada normalmente restrita. 

Encostado numa mesa da sala, com uma quietude que expressava sua ansiedade, Taehyung ouviu a música de encerramento soar lá fora, e, pouco depois, o corredor foi preenchido de vozes e passos. Seu coração disparou quando identificou vozes femininas próximas à porta, conversando em outra língua.

A porta se abriu, enquanto Tae se punha de pé, deixando passar seis garotas metidas em kimonos surrados pelas lutas, a maioria delas com algum tipo de hematoma ou machucado. Quando aquele bando de meninas bateu os olhos na figura parada no meio de sua sala, assustou-se, calando a conversa animada. 

— Miane... - Taehyung começou, procurando Marina com os olhos, até achá-la, estática, no meio do grupo - Mali...

A garota arregalou os olhos, e recuou alguns passos. Em seguida, levou a mão ao próprio braço, beliscando o local, o que fez Taehyung apertar os lábios para segurar uma risada. Era ela, com certeza. Tae caminhou até Marina, e apertou a pontinha de seu nariz.

— Boba. - murmurou - Você não está sonhando.