O Legado escrita por Luna


Capítulo 62
Capítulo 62




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Dá pra viver

Mesmo depois de descobrir que o mundo ficou mau

É só não permitir que a maldade do mundo

Te pareça normal

Pra não perder a magia de acreditar na felicidade real

Era uma vez – Kell Smith

 

Os dias foram passando sob o olhar atento de Albus e Scorpius, com amabilidade excessiva de Rose e o semblante culpado de Amélia. Mas ela não reclamava de nada, respondia sempre que lhe perguntavam algo, não pedia espaço e repetia ao menos três vezes ao dia que aquilo não tinha sido culpa da irmã. As cartas dos pais, Anthony e de Eliza tinham formado um pequeno volume que ela mantinha guardado no malão, às vezes antes de dormir ela pegava algumas e lia, apenas para poder sentir o amor deles. Suas palavras confortadoras a ajudavam quando achava que iria sucumbir às memórias e fraquejar durante o dia.

Eles haviam sumido durante o ataque e só voltaram horas depois, quando todo o Castelo ainda dormia, quando acordaram eles estavam em suas respectivas mesas com semblantes sérios e os corpos tensos, não falavam sobre o assunto, não respondiam as perguntas constantes, enquanto o resto do Castelo só sabia falar sobre isso.

Os olhares suspeitos agora eram acusatórios, os jornais não aliviavam a situação para o Ministério e os Aurores. Todos os funcionários estavam sendo alvo de críticas e a cada dia alguém diferente era alvejado. Freya lia impassível a matéria denegrindo a imagem de Hermione Granger em uma manhã, sabia que se erguesse o rosto e olhasse para a mesa da Grifinória iria encontrar uma Rose vermelha e furiosa. Não falavam apenas sobre a incompetência da bruxa, mas faziam suposições que Eric Nott tinha conseguido seduzir a mulher e por isso se mantinha no emprego. Claro que ninguém seria obtuso o suficiente para assinar tal afronta, o jornal trazia uma pequena nota no final dizendo que o artigo foi enviado anonimamente, sendo, portanto, algo indigno e inverídico, mas obviamente que a maioria das pessoas não deu atenção a esse detalhe.

Ela leu a matéria até o fim, conseguia ver o mais velho dos Nott ficando vermelho e amassando o jornal com a mesma força que apertaria o pescoço do autor daquela matéria pérfida. Hermione deve ter se indignado, mas algo tão banal quanto aquilo não atingiria a mulher mais importante do mundo bruxo britânico.

Mas sentia o quão desesperador deveria ser para as pessoas do lado de fora do Castelo, o maior ataque da década havia acontecido a menos de um mês e os Aurores não estavam perto de encontrar um responsável. As notícias eram escassas e o medo era preponderante, sobretudo àqueles que vinham de famílias trouxas ou tinham parentes nascidos trouxas, estes corriam um risco adicional.

De repente a comida não parecia mais tão saborosa, o mingau de aveia descia por sua garganta amargo e ela sentiu o puxão no estômago que a fazia pensar que iria vomitar. Ela apertou as mãos com força sentindo suas unhas entrarem na carne, a dor a trazia de volta, a lembrava que aquilo agora era apenas memórias, ela estava sentada na mesa da Sonserina, tinha Timothy na sua frente e Albus ao seu lado, eles falavam sobre a redação de História da Magia, Albus respondia uma pergunta de Scorpius sobre a aula de Astronomia que teriam a noite naquele dia, ela ouvia os risos dos alunos e o barulho que vinha das outras mesas, ouvia os passos apressados e o bater dos talheres nos pratos de ouro. Ela estava em Hogwarts, estava segura.

Não conseguiria comer mais, empurrou o prato e jogou as pernas para fora do banco. A dor na palma da mão ainda estava presente, era quase reconfortadora. Ignoraria os olhares pesados que recebesse, mas não pode ignorar a voz que a chamou.

— Tenho que ir à biblioteca. – Ela não olhou para nenhum dos três em particular, nem mesmo saberia dizer quem perguntou. – Vejo vocês na aula de Feitiços.

Não esperou que eles falassem algo, pegou a mochila no chão e jogou por cima do ombro. Aquele dia seria como todos os outros, ela olharia para frente, faria suas anotações, depois gastaria parte do tempo na biblioteca fazendo seus deveres, Rose, Albus ou qualquer um dos outros lhe fariam companhia por algum tempo, mas eventualmente iam embora. Todos tinham outros compromissos, pessoas para quem dar atenção. Freya às vezes sentia que tinha apenas ela mesma, mesmo que ele se mostrasse uma figura tão presente nas últimas semanas.

 Quando o pensamento de inveja e ciúme surgia ela se sentia realmente patética e logo o afastava. Era tão indigno dela se sentir rejeitada, sabia que não era. Percebia os olhares que recebia do corpo masculino dos alunos, mesmo de alunos do quinto e sexto ano, mas para ela eles eram tão comuns e invisíveis. Entretanto ela sentia a necessidade de ter alguém como os amigos tinham, sentir o que eles denominavam de amor.

Se chamaria de patética mais uma vez, quando ele apareceu como sempre aparecia. Sem lhe cumprimentar, jogando a mochila de qualquer jeito no chão e pegando algum livro que seria necessário para fazer a lição do dia. Ela revirou os olhos, como sempre fazia e fingiu que ele não estava lá, como sempre fazia. Em algum momento ele lhe faria alguma pergunta e ela o ignoraria até ele começar a bater no papel com a ponta da pena fazendo barulhos irritantes, ele sorriria com aqueles lábios ridicularmente rosados e estreitaria os olhos estupidamente azuis e bagunçaria o cabelo que na opinião dela precisava de um corte urgente.

— O dia está bonito hoje. – Ele falou.

Freya não levantou os olhos do pergaminho, começou a sentir um formigamento quando ele fugiu do roteiro implicitamente estabelecido. Aquilo era uma constante para ela nos últimos dias, algo que sabia que aconteceria e quando não foi como ela pensou sentiu-se nervosa e sem saber como proceder.

— Tive aula de Trato das Criaturas Mágicas hoje. – Ele continuou. – Com a Corvinal, Amélia não leva muito jeito com os animais, acho que ela tem mais medo deles do que o contrário. A primavera finalmente chegou ao que parece. Faz tempo que não temos um inverno tão frio, não acha?

Ela o encarou, os olhos dele pareciam buscar algo no rosto dela, a perfuravam em busca de uma verdade que ela não queria contar, não sabia se conseguiria. Ela olhou para baixo, sua letra era pequena e rebuscada, Mary sempre foi exigente quanto à caligrafia dos filhos. Freya se orgulhava de como as letras pareciam bem desenhadas. Ele ainda a encarava quando ela ergueu o rosto, sabia que ele queria uma resposta, mas não eram amigos, ele já tinha deixado isso claro nas outras vezes. Ele odiava sua família e, portanto deveria odiá-la também, mas lá estava o garoto sentado na sua mesa, mesmo que houvesse mais meia dúzia de mesas vazias no lugar.

— Não fui lá fora hoje, como deve saber não conseguimos ver o céu nas masmorras. O máximo que eu peguei do tempo foi o céu encantado no Salão Principal e o que consegui ver na sala de Feitiços.

Ela deu de ombros, sua participação naquela conversa estranha tinha terminado. Ele deu-se por satisfeito por enquanto, baixou a cabeça e voltou a fazer sua própria lição. Normalmente ele juntaria suas coisas e sairia sem falar nada, ela torcia para ele fazer o mesmo naquele dia, mas uma parte de si sabia que algo tinha mudado. Ele começou a juntar os pergaminhos os colocando em ordem para botar na mochila, depois se levantou e ficou alguns segundos parados em pé ao lado da mesa sem saber se deveria ir embora ou espera-la. Por fim ele decidiu que já tinha ficado muito tempo com ela.

— Nos vemos na torre, Freya.

Ele não esperou que ela respondesse se tivesse ficado por mais alguns segundos teria visto a expressão contrariada dela ao ouvir seu nome na voz dele. Ele nunca a chamava pelo nome, nunca.

Durante o jantar sentiu o ímpeto de perguntar a Amélia sobre ele, se havia acontecido algo durante a aula de Trato das Criaturas Mágicas, se ele havia sido mordido ou batido a cabeça. Mas mordeu a língua antes que pudesse se arrepender de abrir a boca, a situação não precisava ficar ainda mais estranha.

Quando a aula de Astronomia chegou, Freya agradeceu por não ter se demorado no Salão conseguindo pegar a mesa mais distante de onde o pessoal da Lufa-Lufa costumava ficar. Estava determinada a terminar aquilo o mais rápido possível, assim poderia sair mais cedo e evitaria qualquer tipo de encontro. Sabia que aquela não era a melhor matéria dele e em seguida se recriminou por saber aquela informação. Ela não deveria saber em quais matérias ele era bom ou não.

Seu desejo foi arruinado, ela não conseguia manter a concentração e o culpava por isso. Errou cálculos que em outro momento teria feito com os olhos fechados, viu Albus recolher seus pergaminhos e entrega-los à professora e em seguida Scorpius fazer o mesmo, assim como Timothy. Os três olharam para ela, mas ela os despachou com a mão, quando insistiram em espera-la ela se irritou e disse que não precisava de escolta para chegar às masmorras. Os três deram sorrisos idênticos e foram expulsos pela professora por estarem atrapalhando os outros alunos.

Quando voltou seus olhos para sua mesa encontrou os olhos dele, ele também sorria, não como os seus amigos. Era algo contido, mas os olhos dele brilhavam como se ele tivesse visto algo que sentia falta. Ela estreitou os olhos e jogou o cabelo por cima do ombro o ignorando prontamente. Demorou mais trinta minutos para terminar, a torre já estava quase vazia e agradeceu a Merlin quando viu que o lufano já tinha sido um dos que tinha ido embora.

Ela descia as escadas com calma, o silêncio era esmagador e um pouco aterrorizante. Sentia-se uma tola por não ter aceitado a companhia dos meninos, mas não esperaria Melissa Thorpe, sua paciência não era infinita e sabia que poderia muito bem azarar a colega de Casa se tivesse que seguir por todo aquele caminho até as masmorras com a morena.

Quando faltavam três degraus um vulto surgiu a assustando e apenas não caiu porque se agarrou no corrimão gelado. Juntou o resto de dignidade que ainda possuía e ajeitou sua postura, passou a mão pela saia e a outra arrumou o cabelo. Olhou para o menino com uma fúria gelada e o viu segurar o riso.

— O que está fazendo aqui?

— Você está bem? – Ele perguntou ignorando a pergunta dela. Levantou a mão para ajuda-la a descer o último degrau, mas ela a afastou com uma tapa. – Esperando você. – Ele falou como se fosse óbvio. – Aconteceu alguma coisa? Você demorou mais do que o normal hoje.

Ela o encarou por alguns segundos sem entender qual era o jogo que ele estava tramando. Ele nunca tinha feito isso, ela sempre voltava com... Então lhe ocorreu que em todos aqueles meses ela nunca tinha feito esse percurso sozinha, geralmente ela acabava antes dos meninos e os esperava pacientemente. Eram um dos primeiros a ir embora quando havia alguma lição e quando era apenas aula iam embora juntos com os colegas de casa.

— Eu me confundi com os últimos cálculos, acho que meu telescópio estava mal posicionado. – Ela respondeu sem convicção.

Ela começou a caminhar sem esperar por ele que a acompanhou sem grandes problemas. Os passos soavam alto, a varinha ia afrente iluminando o caminho e deixavam para trás apenas os resmungos de alguns quadros que porventura acordavam com a luminosidade. Freya olhou para o lado e o viu andar decidido e concentrado, como se eles fossem encontrar alguém quando virassem o corredor. Observou que com a luz da varinha os olhos dele brilhavam mais intensamente atingindo uma nova tonalidade de azul. Não ficou nessa observação por muito tempo, não queria que ele percebesse e tirasse as conclusões erradas.

Eles caminharam mais um pedaço quando ela ouviu uma risadinha vinda dele.

— O que?

— Você não precisa andar tão rápido. As masmorras não sairão do lugar.

Ele virou para ela sorrindo e ela estancou. Reconhecia aquele sorriso, as pequenas rugas formadas no cantinho do olho, o vinco formado em sua bochecha. Aquele sorriso não era para ela, ele nunca sorria assim para ela. Ele parou também e se virou. Olhou para os lados esperando ver o motivo que a tinha feito parar.

— O que você quer? – Ela perguntou e continuou depois de ver a expressão confusa dele. – Você senta comigo na biblioteca, me ignora nos corredores, mas deixa torradas na minha mesa porque eu não comi o suficiente pela manhã. E agora me espera depois da aula. O que você quer?

— O que aconteceu no dia do ataque à Hogsmead? – Ele percebeu ela empalidecer. – Você mandou um sonserino para a enfermaria apenas por estar irritada antes, não que eu esteja o defendendo. Mas depois você simplesmente não fez mais nada. Mesmo quando insultaram sua mãe, mesmo quando as palavras ofensivas contra o seu pai irritaram até mesmo Arwen você permaneceu intocável...

— Eram palavras insignificantes de pessoas insignificantes. – Ela se defendeu.

— Você nem parecia estar aqui nas primeiras semanas, seus olhos pareciam vagar por todos os lugares e ao mesmo tempo você não estava olhando para lugar nenhum.

— Por que você se importa, Thomas? – Ela gritou. – Eu sou uma Zabine, esqueceu? Venho de uma família de traidores, nós matamos seus avós, podemos ter matado seu pai também. Eles podem estar lá fora agora matando nascidos trouxas.

Ela respirava ofegante e seus olhos brilhavam.

Ele deu um sorriso brincalhão, aquela era a menina que ele conhecia. Não a garota apática que ele tinha visto vagar pelos corredores desde o ataque, ele gostava daquela fúria em seus olhos, do calor em suas bochechas e de sua póstuma ameaçadora. Freya nunca seria uma vítima, ela não baixava a cabeça, não recebia insultos. E ele nem tinha percebido o quanto sentia falta de ouvi-la falar tão ferinamente.

Geralmente os insultos dela eram dirigidos a outras pessoas, tolos que insistiam em perturbá-la. Ele apenas observava de longe, achando graça de sua expressão contrariada e se surpreendendo com a ação veloz de sua varinha. Só imaginava que algo muito ruim tivesse acontecido para apagar aquele fogo que sabia viver dentro da sonserina.

Com poucos passos ele chegou até ela, eram quase da mesma altura, caso se inclinasse um pouco mais tocaria o nariz dela com o seu. Arwen dizia que às vezes ele era muito temerário, que deveria controlar seus impulsos antes que acabasse levando uma maldição no meio da testa, mas ele apenas sorria e a ignorava. Lá estava ele novamente com seu excesso de ousadia fazendo algo que provavelmente faria seu corpo entrar em combustão.

— Não sei o que tem na sua cabeça. Mas caso se aproxime mais você passará mais do que somente uma noite na enfermaria.

Ela não se moveu, não sabia se conseguiria. Tentava controlar sua respiração, ele estava muito perto, perto demais para seu raciocínio funcionar adequadamente. Seus lábios estavam minimamente abertos e o rosado era bastante convidativo, com ambas as varinhas apontadas para baixo seus rostos estavam meio encobertos pela escuridão, mas ela ainda conseguia ver o brilho azulado nos olhos dele que de tão perto pareciam ainda mais bonitos.

— Se beijem ou saiam daqui. Sabem que horas são? – Uma voz grave ecoou os assustando, ambos ergueram as varinhas e viram um bruxo velho sentado em uma cadeira torta os olhar com raiva. – Apontem essa varinha para a cara de sua avó.

Thomas segurou uma gargalhada e puxou Freya pela mão a tirando de lá. A menina não deixou que o toque continuasse por mais tempo, tomou distância do lufano e parou apenas quando tiveram que tomar direções diferentes.

— Posso te acompanhar até as masmorras. – Ele sugeriu, ela viu que ele estava inseguro agora com as mãos nos bolsos e os ombros encolhidos.

— Não é necessário. – Ela garantiu.

Eles tinham tomado o caminho mais longo para chegar até ali, provavelmente eram os únicos fora da cama e não queria ouvi-lo reclamar de ter pego uma detenção.

— Você tem certeza? – Ele olhou na direção que ela tomaria, os archotes davam pouca iluminação, o corredor escuro parecia um cenário de um dos filmes de terror que sua mãe gostava de assistir.

— Com medo do escuro? Talvez eu devesse acompanha-lo até seu salão.

Ele riu e ela se permitiu sorrir um pouco. Ela diria que se distraiu por um momento com o bruxulear da luz e não o viu se aproximando. Ele plantou um beijo em seu rosto e em seguida passou o polegar onde seus lábios tinham tocado.

— É bom ter você de volta, Freya.

Ele não esperou para ver qual a reação dela, uma atitude inteligente considerando a forma como ela tinha apertado a varinha.


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