Vidas cruzadas escrita por slytherina


Capítulo 3
Sam




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O trabalho no pequeno rancho não era difícil. Acordar de madrugada para alimentar animais, liberar alguns para pastar ao ar livre, ordenhar o leite, colher ovos. A esposa também já levantara, e providenciava o café da manhã. Ela estava pesadona nos seus nove meses de gestação, e o sofrimento das últimas semanas a tornava irritadiça e mal-humorada. Ele procurava agradá-la e poupá-la de dissabores, além de obviamente ficar fora do caminho dela.

A menina era um amor de pessoa, não dava trabalho. Diferente de sua mãe, não era opiniosa. Sempre agradecia tudo o que lhe davam, e sempre tinha um sorriso para ele. Às vezes ele se perguntava por que desposara uma mulher azeda e rancorosa. É claro, ela tinha suas qualidades, que decididamente pesaram no seu coração, e o fizeram se enamorar.

Ruby era confiante e serena. Suas fortes convicções e vontade férrea a tornavam uma força da natureza. Ela controlava o próprio destino, como se suas mãos fossem mágicas e ela tivesse acesso ao livro da vida.

Sam balançou e pendeu a cabeça, fazendo com que seus longos cabelos castanhos lhe cobrissem os olhos. Riu de si mesmo por sua fértil imaginação. Na verdade, lá no início ela não o quisera, deixando claro que o desprezava, mesmo depois que se envolveram intimamente. Mas Sam a queria tanto que se transformara da água pro vinho para merecê-la. Foram sete longos anos depois daquela singela cerimônia de casamento no cartório da cidade, com a presença apenas da família.

Após recolher o leite da vaca malhada, Sam rumou para casa. Ruby estava retirando o pão da máquina. O cheiro de massa fresca, quentinha, inebriou seus sentidos. Uma mecha de cabelo negro escapuliu do coque frouxo, emoldurando o rosto jovem e bonito de sua esposa. Uma onda de ternura ameaçou sufocá-lo. Sem conseguir se controlar ele se aproximou dela e colocou as mãos em seu quadril, sentindo o calor sob a camisola branca de algodão. Ela o afastou de si com um gesto de enfado.

"Tenho mais o que fazer do que ficar me esfregando em você, Sam. Ponha as xícaras na mesa, sim?" Ela falou firme.

Sam afastou-se triste e buscou as xícaras de vidro azul. Evitou até mesmo olhar a esposa gravidíssima, enquanto ao mesmo tempo procurava desculpá-la por estar prenha e sofrendo. Lembrou-se da filha que ainda não se levantara. Subiu as escadas que davam ao andar dos quartos. Abriu a porta devagarinho e flagrou sua filha de seis anos na cama brincando com bonecas. Quando a menina o viu deu um pequeno grito.

"Me assustou, papai. Não faça mais isso." A pequena se ergueu na cama e abriu os braços para o pai, que a suspendeu no colo.

"O que minha bonequinha quer comer no café da manhã?"

"Lucky charms, paizinho!"

"Por que, Lilith?"

"Porque eram os seus preferidos, papai." Ambos riram um para o outro.

Após vestir Lilith em sua farda escolar e arrumar sua merendeira, Sam pegou as chaves da caminhonete e dirigiu-se à saída. Quando já ia fechando a porta atrás de si, virou-se para a esposa e disse "tchau" tristemente. Ela não se incomodou em responder.

Sam dirigiu até à escolinha de sua filha imerso em pensamentos. Parecia que ontem mesmo estava na esquina ali adiante, esperando para ver passar a bela Ruby Espinosa, a garota mais sexy da escola.

Quando parou no semáforo vislumbrou a fachada do banco municipal. O mesmo onde foi pedir um empréstimo para poder comprar o rancho em que viviam agora. E assim poder provar a Ruby e seus pais que ele poderia sustentá-la.

Após deixar a filha na escola, não voltou imediatamente para casa. Dirigiu até uma estrada velha que terminava em uma lagoa muito popular na sua infância. Parou a caminhonete e ficou admirando a paisagem. Parecia voltar no tempo e sentir as mesmas antigas emoções. Sam fechou os olhos para apreciar melhor a ilusão.

Sam era um jovem muito comprido e ossudo, sem personalidade marcante e nenhum atrativo, exceto o espanador que era sua cabeleira. Suas roupas eram velhas e surradas, nem tanto porque fosse pobretão, e sim porque ele não dava importância à moda ou aparência física. As garotas o esnobavam, e ele era a vítima favorita dos valentões. Não era o preferido dos professores, e nem mesmo o dos seus pais. Afinal de contas, não é preciso muito para ser um fazendeiro, a não ser trabalhar duro, não é mesmo? E isso Sam sabia fazer.

Tudo corria bem, como devia ser, até que Ruby chegou na comunidade. Ela não levava desaforo para casa, embora raramente chegasse às vias de fato. Andava sempre tão bem vestida e cheia de si, que as pessoas naturalmente abriam alas para ela passar. Em pouco tempo ela estaria muito bem acompanhada e frequentando os lugares da moda. Ela chegou a ser considerada uma celebridade em sua cidade. Sam nem ousava chegar perto dela pois era muita areia para seu caminhãozinho, mas o destino quis que fosse diferente.

Certo dia alguns encrenqueiros pegaram Sam após a escola e começaram a espancá-lo, mais uma vez. Isso até um disparo ser ouvido. Todos se afastaram para ver a valente Ruby Espinosa empunhando uma pistola e almejando neles.

"Está destravada rapazes. E eu sei usá-la." Foi tudo o que ela disse. Os valentões ainda hesitaram, mas como o tiro atraiu a atenção de populares, muita gente veio correndo na direção deles. Saíram em debandada, olhando de esguelha para a garota corajosa.

Ruby guardou a arma e aproximou-se de Sam caído ao chão. "Precisa de ajuda, bonitão?"

Sam ficou boquiaberto, mas graças aos céus conseguiu responder: "Não, senhora!" Ele se levantou, mas não conseguia se afastar. Queria sair correndo também, para se esconder de vergonha, mas um senso de gratidão o deixou de língua solta. "Estou em débito com a senhora."

"Senhora só no céu, rapaz. E eu estou aqui." Ruby respondeu desafiadora.

Sam ficou sem palavras, apenas aprisionado pelo fascínio que aquela bela criatura provocava em si. Felizmente uma pequena multidão se formou e começaram a inquiri-los sobre o acontecido. Ruby afastou-se sem ser assediada.

Um barulho de buzina tirou Sam de seu devaneio. Ele olhou no retrovisor e viu o caminhão da fazenda Singer atrás de seu carro. Eles pelo visto não conseguiam passar pelo carro de Sam. Este não teve alternativa a não ser pôr o carro em movimento e voltar para casa.

De volta ao lar, aparentemente Ruby havia sofrido um pequeno acidente, pois a terrina de sopa estava espatifada no chão, e havia comida salpicada em toda a cozinha. Ruby estava agachada, tentando limpar a sujeira, mas a barriga ficava no caminho. Ele correu para ela e levantou-a daquela posição.

"Deixe que eu limpo tudo, Ruby! Venha para a sala, descansar um pouco." Ele a guiou para o outro cômodo, a apoiando em seus ombros. Ela se deixou ser manobrada até o sofá, onde Sam afofou almofadas em suas costas e colocou uma mesinha para elevar seus pés. Ela o olhava com raiva, como se ele houvesse quebrado a terrina e isso o machucou um pouco mais. Ao deixá-la sozinha e dirigir-se à cozinha, ele a ouviu murmurar "eu atirei a maldita tigela ao chão". Sam não disse nada.

Ele começou a limpar metodicamente a bagunça de cacos de porcelana e comida do chão e móveis. Ruby tinha mais auto-controle do que Sam, mas enquanto ela apelava para a ignorância em raras ocasiões, ele se limitava a discutir sem parar. Na primeira gravidez ela ficara intratável, quebrando toda a louça tentando acertá-lo, aos gritos de que ele era o culpado por seu estado. Por isso demoraram tanto tempo para tentar engravidar do segundo filho.

Ele terminou de preparar o almoço, e a seguir foi até a horta para colher verduras. Não sem antes dar uma olhada na esposa que estava cochilando no sofá da sala. Ela era muito bonita assim vulnerável e em paz, mas às vezes Sam tinha medo dela. Após o nascimento de Lilith, várias pessoas vieram dizer-lhe que Ruby o estava traindo com outros homens. Sam apenas balançava a cabeça negativamente. Ele conhecia sua mulher. Se ela realmente quisesse deixá-lo ela o faria sem pestanejar. Se ela quisesse substituí-lo em sua cama, também o faria sem recorrer a subterfúgios. Talvez porque soubesse que Sam não reagiria, mas tentaria aceitar sua decisão.

Só estavam juntos, porque ela ainda não desistira do casamento deles. Sam não tinha dúvidas quanto a isso. Ruby continuava querendo-o em sua vida.


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