Sweet Child O'mine escrita por Nowhere Unnie


Capítulo 1
Minha nem sempre tão doce criança.


Notas iniciais do capítulo

Algumas falas da criança estão escritas em uma linguagem mais simplificada, por causa da idade, então espero que não estranhem...



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Depois de tantos anos, eu já não me assustava mais com aquela velha sensação de estar caindo quando se chega perto de pegar no sono. Mas dessa vez eu havia realmente caído, mais precisamente do segundo ao primeiro andar da minha casa e, para meu total assombro, quando abri os olhos e me sentei na cama, percebi que não apenas dormi no meu quarto e acordei em outro cômodo da casa, como também estava em uma cama que não existia há anos e aquela prateleira com brinquedos à minha frente já havia sido retirada dali há décadas.

Meu primeiro pensamento foi voltar a dormir porque aquilo obviamente era um sonho, mas não resisti à curiosidade de sair daquele minúsculo quarto que um dia também foi meu e, como eu suspeitava, a casa inteira estava completamente diferente. A escada que me levaria de volta ao meu quarto sequer existia e eu não reconhecia quase nenhum dos móveis, a não ser um armário velho que fora descartado há muito tempo e virado entulho nos fundos do quintal mas, diante dos meus olhos, ele parecia recém chegado da loja e a madeira brilhava impecavelmente.

Eu caminhava a passos lentos pela casa enquanto observava cada detalhe daquele lugar tão familiar e ao mesmo tempo tão estranho. Comecei a me sentir como se tivesse sido transportada para a dimensão de uma foto antiga, pois lembrava vagamente de uma foto minha posando ao lado daquele vaso ornamental quando era criança e tinha quase certeza de já ter visto uma foto minha com uns três anos de idade sentada naquele sofá velho, abraçando a mesma boneca que estava jogada no chão e pela qual eu havia acabado de passar por cima. A única coisa realmente irreconhecível era a mulher que dormia no sofá, ela ressonava tão profundamente que cheguei à conclusão de que era uma babá, exausta por ter ficado o dia inteiro cuidando da pequena dona daquele quarto onde eu havia acabado de acordar e que provavelmente não aguentaria mais aquela criaturinha e logo seria substituída por outra, uma vez que eu sequer me lembrava dela hoje em dia.

Pensei em sair pela porta da cozinha para não acordá-la, mas já estava na metade do corredor quando escutei um barulho vindo do quintal e, só então, lembrei que minha mãe costumava ter um cão raivoso que não gostava de ninguém além dela mesma e por isso mordia todo mundo. Então caminhei na ponta dos pés pela sala, torcendo para que aquela televisão retrô ligada disfarçasse qualquer sinal da minha presença ali. Ao atravessar a porta, olhei por cima dos ombros e ela continuava imóvel, o que me deu um grade alívio.

Na porta da garagem, vazia pois meu pai e minha mãe deveriam estar no trabalho, ainda estava o grande e velho portão corrediço de grades. Na direção oposta, quase na metade do espaço, havia um quadro de giz relativamente pequeno encostado na parede, mas para a garotinha que estava sentada no chão com as pernas dobradas para trás, deveria ser gigante. Ela estava desenhando alguma coisa parecida a uma casa, um carro, ou uma árvore, era impossível saber do que se tratava ao olhar para aqueles rabiscos. Dei uma risada ao pensar o quanto eu sempre havia uma negação desenhando, mas me arrependi de não ter me segurado quando aquela menina levantou de um salto e girou os calcanhares para me encarar com aquelas bochechas gorduchas e olhos arregalados, não só por estar assustada, mas também porque o fato de serem arredondados sempre deram a impressão de ser gigantes. Eu mal me lembrava de como via o mundo antes de começar a usar óculos, mas aqueles mesmos olhinhos saudáveis e curiosos contemplavam agora a sua própria versão crescida.

— Quenhé você? — Ela me perguntou com uma vozinha esganiçada e eu nunca imaginei que minha voz pudesse ter sido mais estranha do que é agora.

— Eu sou… — Não achei muito animador responder “você”, então rapidamente busquei outra palavra. — Do futuro.

Ela franziu o narizinho, que ainda não tinha essa atual forma deprimente, e estreitou os olhos antes de fazer a próxima pergunta.

— É perto?

Mas é claro que uma criança tão pequena não saberia o que é o futuro, provavelmente nem sabia direito a diferença entre hoje, ontem e amanhã, ainda mais se tratando de uma pessoa que mesmo sendo adulta ainda se perdia no tempo de vez em quando, sem saber ao certo em que dia do mês ou da semana estava. Então me ajoelhei para nivelar nossas alturas e tentei explicar melhor:

— O futuro não é um lugar, é um tempo… É mais ou menos um amanhã, só que daqui a muitos anos… De onde eu venho, você já tem uns vinte e tantos anos…

Ao ouvir isso, a pequenina deixou o queixo cair involuntariamente, o que me permitiu reparar que ela já havia perdido um dente de leite em sua primeira grande queda e eu, que devo ter caído da barriga na minha mãe na hora do parto de tão desastrada, ainda faria o favor de me estabacar no chão e quebrar metade do dente que cresceria no lugar daquele em um futuro não tão distante daquele passado. Ela levou as palmas das mãos à altura dos olhos e logo cerrou os punhos, levantando vagarosamente cada dedo enquanto os usava para reconhecer aqueles números que contava em voz alta e arrastada:

— Uuum… Dooiss… Treeiss… Quaaatro… E eu vou fazeer… Cinco!

Fez o mesmo com a outra mão até chegar ao dez, logo começou a mover os dedos para frente e para trás enquanto parecia refletir sobre algo, que eu podia jurar ser o fato de que ela nunca pensou em ser assim tão velha além dos 10 anos, uma vez que não conhecia os outros números ainda. Em seguida abaixou a cabeça e começou a levantar e abaixar os dedos do pés enquanto os fitava fixamente. Ainda sem levantar o olhar, me fez mais uma pergunta:

— Isso dá quantos dedos?

— Todos das mãos, todos dos pés, duas orelhas, um nariz, uma bo… Bem, você não precisa saber exatamente quantos dedos faltam, isso não é tão importante assim! -Eu desisti de contar ao perceber que nem adicionando os órgãos da cabeça conseguiria dizer a minha idade e já estava começando a ficar chateada por ser assim tão velha.

— Eu num posso ser criança pra sempre?

— Não, um dia todo mundo tem que crescer…

— Ah…

Ver a sombra de tristeza e decepção que surgiu em seu olhar partiu meu coração, então imediatamente tentei animar-lá, levando minha mão ao lado esquerdo do peito:

— Mas eu te conheço bem e sei que aqui dentro, você sempre vai poder ser essa menina que estou vendo agora, disso você pode ter certeza! Nunca deixe ninguém te fazer acreditar que você precisa crescer para ser adulta, não faria sentido amadurecer se você não pudesse ter essa pureza infantil para aproveitar as melhores coisas da vida!

Enquanto me ouvia atentamente, ela também levou sua mão ao coração, embora tenha levado sua mão esquerda ao lado direito, tentando imitar meu gesto espelhado. Pude ver um sorriso surgir em seu rosto e não sabia se ela realmente entendia o que eu queria dizer, mas esperava que sim.

— E eu vou ser bem grande?

Ela perguntou de repente, dando vários pulos e levantando os braços para demonstrar o que ela queria dizer com “bem grande”. Dei uma risada e não queria acabar com as esperanças dela, então me levantei, olhei para o teto da garagem para dar a impressão de que estava falando de algo realmente grande e passei a mão deitada logo acima da minha testa levantada, mostrando a ela a qual seria sua altura:

— Você vai crescer até aqui!

— Tudo isso?

— Tudo isso! — Eu comecei a rir da inocência dela ao achar que seria gigante se fosse quase da minha altura, quando não chego nem a um metro e sessenta.

— E eu vou ser professora?

— Que ela me encheria de perguntas até o fim do dia, era algo que eu já imaginava, mas me surpreendi ao ver que desde tão pequena era isso que eu queria ser quando crescesse.

— E você sabe o que é ser uma professora? — Rebati aquela pergunta intrigada, principalmente porque eu não sabia o que se passava na minha cabeça ao escolher essa profissão e já estava quase ficando esgotada àquela altura da vida.

— É aquela tia legal que sabe de tuuuudo e é a rainha da escola e diz pra gente como que são as coisas e coloca elas num quadro igual esse aqui, depois cantam musiquinha, deixam a gente pintar, tem vez que pode rasgar jornal, colar bolinha, brincar de massinha e também sabem desenhar muito bem, eu quero ser igualzinha quando crescer!

Eu dei altas gargalhadas ao escutar aquilo, se ela imaginasse todo o trabalho que teria pela frente, com certeza teria mudado de ideia a tempo.

— Que foi? -Ela me olhava sem entender nada.

— Na-nada… — Tentei me recompor da crise de risos e logo respondi sua primeira pergunta, me abaixando mais uma vez para ficar da altura dela. — Você vai ser professora sim, eu arriscaria até dizer que a melhor do mundo! — Dei uma piscadela e ela sorriu de volta com um brilho tão intenso nos olhinhos que parecia até que eu tinha acabado de revelar que ela teria sorvete de sobremesa pelo resto da vida.— Eu já sei ler, sabia? Num vai demorar muito pra escrever também sem nem precisar olhar no quadro, daí já vou poder ser professora né?

— Você já sabe ler? — Mais uma vez não respondi e rebati sua pergunta, com aquele tom de voz que os adultos fazem quando desconfiam de uma mentira.

— Sei sim! Aqui tá escrito… “E” — Ela foi tocando a parte da minha blusa onde estava escrito “The Beatles” com o dedinho indicador e parava em cima das letras que reconhecia. — “E” de novo... “A”... “E”... Essas letras aqui tem no final do meu nome, mas não lembro essa… — Eu demorei um tempo para entender o que ela queria dizer com isso, até perceber que meu sobrenome realmente terminava com “ES” e nunca me senti tão inteligente quanto naquele momento.

— Nossa, você é muito esperta pra quem ainda está na pré-escola, sabia? Parabéns! Mas você ainda tem que estudar muito pra ser professora, afinal, tem que “saber tudo”, não é mesmo? Mas enquanto isso você pode continuar brincando com esse quadro, assim vai treinando…

— Mas eu já brinco de escolinha todo dia! — Parecia um pouco desapontada por ter que esperar tanto assim, mas isso não a desanimou de continuar o interrogatório. — Que mais você sabe de mim?

— Um montão de coisas! - Pousei as mãos sobre os ombros dela e comecei a contar algumas coisas significativas e interessantes. — Não falta muito pra você ganhar um irmãozinho como tanto quer, um dia você vai conseguir ter quantos presentes de natal e aniversário quiser porque vai ter dinheiro pra comprar eles, vai viajar pelo Brasil inteiro, vai até pra fora dele também…

— Eu vou pra lua?!

— Ela me interrompeu e sorria com a boca exageradamente aberta enquanto esperava a resposta.Me diverti com aquilo e dei mais algumas boas risadas, ela ainda não tinha nenhuma noção geográfica para saber o que existia fora do Brasil e devia achar que o país era um como um planeta inteiro e fora dele só existiam a lua e as estrelas.

— Não, tão longe assim não, um dia você vai entender o que eu quis dizer e ainda vai poder conhecer o mundo inteiro! Mas enquanto isso não acontece, você vai viver no mundo da lua… — Respondi em meio a risadas e terminei bagunçando o cabelinho dela, ignorando o fato de que eu mesma odiava aquilo.

— Deve ser muito legal o meu… fuu...turo, né?

— É sim, vai ser muito legal! Mas por enquanto você não precisa pensar muito nisso, aproveita bastante enquanto é pequena pra brincar e se divertir. O futuro sempre chega e você não precisa ficar imaginando como vai ser, é só ter um pouquinho de paciência que tudo o que você sonhar vai acontecer…

Ela balançou a cabeça em concordância e logo me lançou mais uma pergunta:

— E como você veio aqui?

Eu respirei fundo tentando encontrar uma forma de começar a explicar, mas no mesmo instante ouviu-se uma voz que chamava preocupadamente pelo nosso nome. Nós duas olhamos instintivamente na direção daquela voz e eu imaginei que seria a babá procurando pela menina, então saí correndo para dar a volta pelos fundos da casa, tentando evitar que a babá chegasse na porta da sala e me visse ali.

O cachorro da minha mãe latiu ferozmente quando me viu passando ao lado da casinha dele e aquela foi a primeira e única vez que vi um animal preso e me senti contente por isso.

Ao dar a volta pela casa, colei as costas na parede lateral até me recuperar do susto, onde nem a babá e nem o cachorro poderiam me ver. Em meio aos latidos não pude entender muito bem o que a babá dizia, mas algumas palavras soltas como “mãe”, “chegar” e “banho”. Era fácil deduzir que minha pequena versão precisava estar limpinha para quando minha mãe voltasse do trabalho e logo gritos esperneantes se somaram aos latidos do cachorro.

Obviamente minha criança estava se recusando a tomar banho e não precisei olhá-la para saber que deveria estar fazendo birra, esperneando, se jogando no chão e talvez até tentando morder ou dizendo que a mãe dava banho nela quando chegasse e não precisava disso agora. Fiquei com pena daquela moça, não devia ser fácil aguentar aquilo todo dia, também não era de se espantar que eu tenha tido mil babás ao longo da infância, porque nenhuma ficava ali por muito tempo, ainda mais quando o trabalho ficou dobrado graças ao meu irmão.

Eu já estava me desculpando mentalmente com aquela babá e todas as outras que já tive também, quando uma voz masculina me trouxe de volta à realidade, perguntando agressivamente do outro lado das grades:

— Ei, você! O que faz aí dentro? Se não responder eu vou chamar a polícia!

Demorei um pouco a reconhecer aquele quarentão como o senhor de idade que vivia na casa da frente e meu coração disparou sem saber o que fazer, se saísse correndo pelo portão, os vizinhos certamente me alcançariam, poderia subir até o terraço pela escada de madeira e escapar de algum modo pelo telhado da casa de trás, mas morria de medo de altura, se fosse até a garagem e explicasse a situação para a babá, ela provavelmente me acharia louca ou me atacaria para defender a menina. Correr por trás da casa e enfrentar aquela fera selvagem que minha mãe chamava de cachorro me parecia a melhor alternativa, se ele me mordesse, eu ainda poderia me fazer de vítima quando ela chegasse e diria que tinha pulado as grades para pegar goiabas, até que aquele monstro me abocanhou.

Eu poderia ter inventado essa última desculpa para o vizinho mesmo e sair de cabeça erguida pelo portão, que seria aberto pela babá, e tudo ficaria bem. Mas como sou a lerdeza em pessoa e só tenho “idéia” de girico até nos sonhos, corri bravamente pelos fundos da casa. No meio do caminho, acabei pisando em algum objeto pontiagudo, o que me desestabilizou por estar descalça e, com isso, acabei tropeçando em alguns engradados de garrafa vazios e já estava quase beijando o chão quando abri os olhos assustada, reconhecendo naqueles borrões à minha volta o meu quarto de verdade. Suspirei aliviada ao constatar que estava deitada na minha boa e velha cama de adulto, porém não me apressei em apalpar a mesa de cabeceira em busca de óculos porque pretendia voltar a dormir.

Fechei os olhos mais uma vez e, enquanto esperava pela volta do meu sono, me senti satisfeita e realizada comigo mesma ao perceber que se a criança que eu fui um dia me visse hoje, certamente ficaria feliz e se orgulharia de mim.


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Notas finais do capítulo

Se alguém leu e gostou, não gostou tanto assim, tem críticas construtivas ou elogios, deixe um comentário aqui por favor e faça a mim e a minha criança interior felizes!! XD