Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 46
Os Prédios Condenados




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Em meio à minha curiosidade persistente Saret então finalmente parou tudo o que estava fazendo e soltou um cansado suspiro -sabendo que eu ainda não tinha sumido de trás dela-, me falando então em um tom bem mais irritadiço.

— "Haah... Dá para sair de frente do meu prédio logo? Eu já sou obrigada a te aguentar na clínica, não quero também ter que ficar olhando para a sua cara aqui no meio da rua!"
— "Ah-! Então você mora aqui?"
— "...Minha vida também não é do seu interesse."
— "Concordo que não é mesmo... Mas fiquei surpreso por você morar aqui."
— "Porque? Essa região é simples demais para o nível de um "prodígio" como você?"
— "... Bem, comparado à Cidade Baixa definitivamente qualquer lugar se torna "simples" demais-..."
— "Então você mora naquele bueiro? Faz todo sentido agora."
— "...Você sabe que mora em uma área de prédios condenados, não?"

Ao que eu disse aquilo, Saret então cortou sua atitude orgulhosa e começou a me encarar com um misto de desconforto e intimidação -ao que eu juro que seu olhar tentara me atravessar igual à uma chuva de agulhas sendo atiradas contra mim- admitindo sem querer com aquela sua atitude que ela sabia muito bem o quão perigosos os prédios daquela área das Escadarias tinham a fama de ser. E o quanto o lugar em que ela morava não era nenhum lugar para se orgulhar também...

Existia alguma explicação bem lógica para as Escadarias em si serem formadas por esses pedaços grandes de blocos lisos derrubados e amontoados uns nos outros.
Eu pessoalmente não conheço a verdadeira história por trás de como essa região foi criada -porque cada pessoa conta uma história um pouco diferente- mas quase todos dizem que isso foi resultado de alguns prédios antigos que foram derrubados com o tempo porque haviam sido feitos pelos Skreas em uma época que eles testavam vários tipos diferentes de estruturas (antes de se prenderem às estruturas de pedra e material escuro apenas).
Parece que nessa época eles tentavam ainda usar muita madeira em suas estruturas (herança da cultura das outras regiões das quais eles vieram) e como resultado esses prédios se tornaram algumas das mais fracas construções em toda essa cidade.
"Ao menos considerando as construções normalmente feitas por Skreas, porque se for comparar com as outras casas humanas aqui dentro, e em especial comparar também todo o Gargalo, esses prédios definitivamente parecerão extremamente resistentes."

Quando as pessoas começaram a notar que ainda existiam prédios com essas estruturas de pé, lentamente elas começaram então à considerar todos eles como condenados -por temerem que eles um dia pudessem acabar vindo facilmente ao chão- abandonando-os e deixando-os para que os moradores mais pobres dessa cidade se apossassem deles gradualmente.
Mas com o tempo porém (até hoje) nenhum desses prédios realmente chegaram à cair ainda, e com isso admito que o medo que as pessoas tem deles se tornou mais o tipo de coisa que herdamos uns dos outros (como uma doença contagiosa), do que realmente um medo que surge do nada por conta de um fato ou um desastre real.
E é por isso que as pessoas que os evitam são na verdade as que moram à mais tempo aqui pela cidade mesmo, enquanto muitas pessoas de fora parecem não se intimidar em admitir que vivem neles.
"Saret se mudou para cá acho que tem 2 anos só, por isso ela também não deve se impactar muito com as histórias sobre esse lugar ainda."

E no fundo eu acho que o real problema dessa história toda não são os prédios em si, mas sim a própria natureza humana -de não querer confiar em algo feito por alguém que não é do seu povo ou da sua raça, quando o próprio criador não parece convencido ou seguro daquilo que fez.
Esse tipo de insegurança definitivamente contamina as pessoas dessa cidade (que já estão mais do que contaminadas pelo convívio com os Skreas), e nos faz preferir acreditar que esses prédios todos realmente são condenáveis, ao invés de apenas ver que eles continuam firmes e admitir que talvez estejamos exagerando um pouco.
Continuando com o tempo à esses se tornarem bons lugares apenas para as pessoas pobres ou de fora morarem, já que ninguém irá cobrá-las por arriscarem suas vidas e também porque provavelmente quem não é daqui está muito mais acostumado com construções resistentes que usam madeira, do que nós que moramos nos desertos.
"E no fundo até que isso agrada todos os lados, já que afinal isso significa menos concorrência para se conseguir achar uma casa nas outras regiões da cidade."

Já eu não consigo me desprender também da insegurança alheia sobre essas construções, mas isso é porque eu vim dos desertos profundos e lá casas de madeira são facilmente destruídas pelas tempestades mais fortes, não ficando de pé por mais do que 2 dias seguidos.
Desde o inicio eu já carrego esse receio, não importa o quanto eu me convença de que essas construções nunca virão à realmente cair e que esse papo todo é um mito, e por isso principalmente que eu jamais quis morar aqui nessa área -mesmo ela tendo uma das melhores localizações na minha opinião.
Se eu for comparar todas as outras áreas, cada uma possui um defeito que facilmente não é visto aqui pelas Escadarias.
As Avenidas não só são muito caras como também são lotadas de Skreas nada amistosos, a Cidade Baixa tem uma taxa de crimes muito alta por culpa das gangues e é exageradamente movimentada durante a noite, o Gargalo inteiro é um problema e ainda por cima a vizinhança é segregaria com estranhos, e as áreas residênciais como os Distritos e os Aquedutos se tornam regiões fantasmas quase que o dia todo porque são longes demais de qualquer comércio.
"No fim, as Escadarias realmente são o melhor lugar para se viver se você conseguir passar por cima da história dos prédios condenados. Mas Saret não precisa também ouvir isso de mim."

Nisso então eu voltei à prestar atenção nela -que aparentemente dera suas costas para mim pretendendo me ignorar durante todo esse tempo em que eu ficara quieto na minha-, finalmente entrando naquele prédio sem qualquer outro tipo de aviso além de um alto e irritado "humph"-ao que confirmara com o canto de seu olho que eu continuava ali.
Porém antes de realmente desaparecer prédio adentro, eu pude então ouvir sua voz uma última vez, se dirigindo à mim em provocação como se ela realmente não pudesse deixar de aproveitar aquela chance para tentar me desafiar.

— "Pelo menos é bom saber que não somos vizinhos. A última coisa que eu quero é ficar esbarrando em alguém como você todos os dias."
— "Verdade, mas você ainda não pode dizer o mesmo quanto à Ebraín, não é?..."

Ao que eu mexi com ela em seu ponto mais fraco (Ebraín), Saret então deixou escapar um cansado gemido de sua boca -um gemido que parecia carregar várias cansativas lembranças- tencionando seus ombros no processo e fazendo ela cruzar seus braços como se um calafrio a percorresse.
Nisso então Saret se virou rapidamente na minha direção com uma expressão nada agradável -ao que eu acho que ela queria muito me mandar para algum lugar- e agarrou a maçaneta da porta de seu prédio com vontade.
A última coisa que eu pude ver então em seguida foi ela esmurrando aquela porta na minha cara e fechando-a com vontade. Usando toda a violência que ela não podia deixar escapar de outra maneira comigo sem que acabasse perdendo a sua própria razão diante de Sal mais tarde.

Já eu por outro lado então apenas balancei a minha cabeça em desaprovação, rindo comigo mesmo ao que eu sabia que havia ganho a última palavra dentro de nosso pequeno embate -dessa vez!
"Talvez usar Ebraín tenha sido um pouco baixo, mas sempre funciona quando quero que ela me deixe em paz. Hehehe!"
Lidar com Saret era muito diferente de lidar com qualquer outra pessoa para mim. Mas em um bom sentido, já que com ela pelo menos eu me sentia apto à mentalmente enfrentá-la no mesmo nível!
Outras pessoas como Gale, Sal ou Ebraín sempre me impuseram um desafio mental grande demais para eu sequer me sentir confiante em desafiá-los. E por isso que eu agradeço as vezes por Saret ser a maior pedra no meu sapato, ao invés deles.

Pensando assim eu então voltei com o meu caminho até minha casa na Cidade Baixa. Com meus passos lentos e tranquilos até lá, o momento em que eu finalmente cheguei em casa já era o momento em que a noite e o frio estavam cobrindo o deserto inteiro -me fazendo querer mais do que nunca cair na cama independente dos barulhos que vinham da rua.
O clássico som latente da Cidade Baixa começando a despertar também entrava sorrateiramente pela minha janela, junto daquela característica brisa gelada da noite. E aquilo sempre desafiava a minha mente diáriamente à querer despertar e arrumar algo diferente para fazer.
Só que o meu corpo já estava bem pesado, implorando para eu deixá-lo descansar mais do que algumas poucas horas -ao que minha cama já estava tão próxima de mim- fazendo com que minha mente desistisse e resolvesse realmente ir dormir logo de uma vez.

Nisso eu então fui tirando aos poucos cada uma das minhas peças de roupa sem qualquer pressa até que restassem apenas as minhas roupas de baixo -arrumando e guardando todos aqueles panos da melhor forma possível por sobre algumas cômodas que eu tentava sempre deixar organizadas.
Nessa minha atitude rotineira então foi que eu finalmente notei aquela carta de Gale -sobre o móvel na qual eu havia deixando-a de manhã- ainda intocada como se ela estivesse esse tempo todo me aguardando voltar com notícias.
Como se algo estranho desse em mim, eu então tomei-a em minhas mãos com um pequeno desconforto (por me lembrar ainda o que estava escrito dentro dela) e a rasguei em vários pedaços sem qualquer tipo de embromação.
Fazer aquilo me trazia à tona todo o sucesso de minhas ações e me satisfazia por dentro de uma maneira indescritível! Era como se eu pudesse projetar e misturar minhas raivas sobre Gale naquele gesto, desabafando muita coisa naquele simples papel picado.
E assim que eu então terminei -me dando conta da bagunça que eu fizera no chão- foi que então eu relaxei finalmente meu corpo e comecei à divagar um pouco...

"Eu poderia estar morto a essa altura mais uma vez... E é muito estranho admitir que deu tudo certo hoje graças àquele Skrea."
Eu pensei comigo mesmo sabendo que eu devia de ser grato por Damian ter estado ali por perto, mas que por outro lado eu ainda me sentia muito incapaz de ignorar que ele era um Skrea e que eu não queria esquecer que odiava toda a raça dele.
"Não importa o que aconteça, estar perto dele sempre me faz sentir como se eu estivesse "traindo-a" de alguma maneira... Mesmo que eu nunca concordasse com a filosofia da SevenRoses que ela por outro lado seguiu tão fielmente até o fim."
Aquilo tudo somado ao fato de que eu havia sido salvo das ações de alguém que eu considerava meu amigo, por alguém que eu facilmente consideraria meu inimigo... era o suficiente para fazer não só minha cabeça doer, como meu peito também.
"Deixar de pensar nisso é o melhor para mim. Afinal nada muda por causa disso. Ainda odeio Skreas, ainda não quero ter nada haver com Damian... e ainda sei que vou continuar cruzando o caminho de Gale como se para ele nada demais tivesse acontecido."

Às vezes eu acreditava que Gale era uma sina pessoal minha. Eu gostava muito de andar com ele -independente de seus avanços estranhos sobre mim- porque eu sempre senti que ele me respeitava de uma forma que outras pessoas por sua vez nunca conseguiram.
Eu notei isso por exemplo quando ele decidiu que queria trazer as Feiticeiras D'água para sua gangue (fazendo Sal desaparecer com suas meninas em resposta), me colocando na difícil posição de escolher entre trair os desejos de Sal e continuar andando com ele, ou trair os desejos de Gale e sumir de sua vista para sempre junto à Sal.
Para minha sorte porém Gale naquela época me surpreendera. Eu sabia o quanto ele era manipulador com as pessoas, e por isso principalmente que eu fui pego de surpresa quando ele resolveu me garantir que jamais iria me envolver naquela história se eu não quisesse, dizendo que não iria também me forçar ou misturar a nossa amizade nessa história -me isolando totalmente de seus planos assim como ele está fazendo hoje.
Para ele realmente eu nunca fui apenas um Feiticeiro, um prodígio, ou apenas um cara vestido de mulher. Para ele eu era a pessoa que eu era -sem títulos ou adjetivos-, e é por conta disso que eu acabei criando essa dificuldade em me convencer a odiá-lo de verdade.
"Mesmo que ele seja muito errado aos meus olhos. Ainda sim ele continua a ser a pessoa que mais me quer por quem eu sou, e não pelo que eu sou... E eu não sei como me opor de verdade à uma pessoa assim."

Nisso que eu fui pensando aquilo, lentamente eu fui me ajeitando sobre os panos na minha cama e me enrolando neles desajeitadamente sem muito me importar -ainda um pouco consternado.
Gale no fundo era uma fraqueza secreta minha que eu conseguia manter sobre controle -me afastando dele sempre que preciso.
Mas quando ELE se tornava o problema em si, era então que eu quase sempre perdia a noção do que fazer ou de como reagir às coisas. Eu sabia que não tinha realmente que me preocupar mais com ele por um tempo, mas eu sabia que ele continuaria à ser um problema enquanto tivesse essa mentalidade anti-Skreas bem pior que a minha.
E o fato dele ter uma atitude firme quanto a concretizar seus sonhos só o tornava ainda mais perigoso no segundo em que ele encontrava meios de enfrentar essa outra raça.
Era isso que mais me preocupava no momento -as coisas que ele conseguiria fazer para chegar aonde queria, mas que por outro lado eu não conseguiria fazer para detê-lo.

Porém mesmo com esse obstáculo que eu não conseguia ultrapassar, para minha sorte Gale continuava à ser um limitado humano. Não importa o quanto eu soubesse que não poderia impedi-lo para sempre, eu também sabia que ele não conseguiria resistir para sempre contra mim.
Não importasse quantos contatos ou membros ele tivesse para encurtar seus caminhos na busca de um mundo sem Skreas, eu ainda sim conseguiria atrapalhá-lo dentro de meus próprios limites -fossem eles físicos, ou sentimentais. E por isso em especial que eu também conseguia me sentir ainda no controle dessa situação, sabendo que não haviam razões para me desesperar e envolver Sal ou Ebraín nessa história por enquanto.
"Eu sei que eles também precisam ficar apostos ao pior, mas ainda é cedo demais para eu os alarmar atoa. Especialmente se eu ainda sentir que posso resolver isso sozinho e poupá-los no processo."
E ao que esses meus pensamentos então foram se afirmando mais e mais por conta própria, o sono finalmente veio... Embalado pela brisa que vinha da janela e pelo peso do meu corpo que não conseguia mais mover sequer um músculo sobre aquela cama dura -porém no momento muito confortável.


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