Black Desert escrita por Kallin


Capítulo 2
Skreas e a Cidade Negra




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De repente escapando de minha viagem ao passado, pude sentir a direção dos ventos mudando do topo de uma das dunas das quais eu solitariamente me encontrava... Aquele era o presságio da própria natureza me mandando observar bem no longínquo horizonte o batalhão negro que cruzava hostilmente aquelas instáveis dunas do deserto como uma mamba negra dividindo as terras com seu corpo... Mal conseguiriam eles me notar, de tão longe que eu estava sobre aquela duna, coberto com aqueles leves panos tão claros quanto as areias em que eu pisava, e que dançavam, ao que o vento batia em mim... Apoiando-me em meu bastão, e mantendo apenas meus olhos descobertos que facilmente eram contornados pelas mexas irregulares do meu cabelo -que já havia crescido e sido cortadas várias outras vezes durante todos esses anos- eu apenas ficava ali... desconfiado, observando a vida lentamente tomar seus passos, ao que eu já sabia aonde exatamente ela irá chegar...

Quando eu fugi dos desertos profundos para encontrar algo melhor do que as cidades controladas pelo crime e pelo medo que as pessoas causavam umas nas outras, acabei por fim me deparando com um mundo e uma realidade totalmente diferente do das quais eu cresci...
Eu jamais cheguei a sair do deserto em si, ao que todos os passos que eu dei para chegar até aqui não foram suficientes para me fazer ver algo além desse mesmo horizonte amarelo que sempre se chocava com o mesmo céu azul e sem muitas nuvens... Porém mesmo sabendo que existem florestas, mares e cordilheiras de onde várias pessoas vem, trazendo histórias e produtos, eu nunca senti a necessidade de conhecê-los, e nem de sair desse lugar no o qual tão brutalmente cresci e aprendi a viver...
Talvez qualquer desejo de aventura que eu poderia ter tido, já houvera sido saciado por todos os anos que passei viajando entre vilas, sem jamais ter um lugar para o qual voltar.

No fim, saber apenas o que dizia respeito ao lugar em que eu morava já me era o suficiente... Por isso foi um choque cultural quando tive meu primeiro real contato com os Skreas, mesmo sem precisar ter ido tão longe assim para isso... foi ali que eu percebi o quanto éramos isolados da realidade do qual todos já fazíamos parte, e como ela facilmente atropelava nossa miserável existência e os pequenos crimes causados por nós, humanos...
Na verdade, não era como se não houvesse Skreas nos desertos profundos, afinal eles foram a "segunda raça" que resolveu exterminar minha geração, mas eu sempre havia morado em lugares aonde a presença deles conseguia ser mínima e imperceptível, comparado ao resto dos humanos... E por isso, eu sempre acreditei que eles eram apenas... criaturas exóticas. E não a verdadeira raça dominante nesse mundo como eu acabei descobrindo, nesse pequeno choque de realidade.

No fundo eu não sei falar muito sobre o que penso dos Skreas, se são eles os grandes vilões da minha história, ou se os verdadeiros donos desse título são os próprios humanos... Os Skreas fizeram coisas ruins para mim, mas comparado as pessoas, as vezes os humanos conseguem ser tão piores, que eu passo a não saber mais se os Skreas estão errados, ou realmente certos na sua forma de agir... Mas seja como for, eu ainda não consigo gostar deles e das atitudes que muitos deles tomam... Mesmo no fim eu entendendo que é graças a eles que o pior da humanidade jamais tomara conta de todo o deserto, e que é graças a eles serem como são, e nos dominarem da forma que dominam nessas terras, que eu e muitos outros inocentes podemos fugir para suas terras para vivermos em segurança... dentro de suas cidades e sob a sua guarda, a salvos de todas as piores coisas que já assombraram o meu passado em algum dia.
E olhando por esse lado, talvez qualquer coisa ruim que venha da presença deles acabe sendo nosso lucro no fim das contas.

"Eles são um mal que precisa existir, para que algo pior não aconteça aqui..."
Eu pensei enquanto via aquele batalhão desaparecendo entre as dunas, deixando apenas um rastro que era apagado em questão de segundos pelas areias que trocavam mais uma vez de lugar, com os ventos que sopravam constante e gentilmente...
Olhando por fim os céus, eu pude me dar conta de como estava ficando tarde e como eu já deveria começar meu retorno para a cidade, antes que a noite surgisse, e o frio seco e congelante do deserto retornasse mais uma vez.
Firmando um pouco os pano que folgadamente contornava meu rosto e cobria minha cabeça como um capuz, eu dei meia volta, retornando para leste, aonde se encontrava a cidade em que eu agora morava...
Não demorei mais do que o tempo que o céu levou para ficar completamente alaranjado, para finalmente avistar a "Citadela".
O símbolo de maior poder dos Skreas nessas redondezas, e seu maior orgulho.
Eu não sabia mais do que boatos sobre outras cidades construídas por eles em outras regiões, mas era fácil de perceber na Citadela o ar da predominância deles exalando de cada prédio levantado e de cada muro erguido.
Para qualquer um que vinha de fora, a primeira coisa que dava para se ver eram os imponentes muros gigantes e escuros feitos de um estranho material... negro como a noite, resistente como o diamante, e frio como o ferro... era uma visão intimidadora para qualquer humano, ou pelo menos havia sido para mim (Mas com o tempo dá para se acostumar). Tudo lá dentro também era feito desse material, já que no deserto não se consegue encontrar direito recursos como madeira ou pedras para construir uma cidade nas proporções da Citadela sem se gastar muitos anos...
Eu nunca soube que material era esse, ou de onde ele vinha, e realmente havia uma falta até mesmo de boatos girando em torno desse assunto... Mas assim como tudo que criavam e que não dividiam com os humanos, os Skreas o utilizavam para construir desde seus prédios, até seus armamentos, tudo com uma perfeição invejável...

"Perfeição", essa era afinal a diretriz deles...
Os Skreas, também conhecidos como "povo dragão", fisicamente eram tão humanos quanto eu ou as outras pessoas que andam nesse mundo... Mas eles não são exatamente iguais a nós... Para qualquer um que pare para olhá-los com mais calma, dá para perceber: Suas posturas mais imponente e corpos levemente maiores, pares de chifres de vários tamanhos saindo da parte de trás de suas cabeças, cabelos quase sempre negros e pele clara, não importa o quanto o sol os maltratem... raramente também apresentando marcas de falsas escamas, quando atingem já uma certa idade. Seus olhos também são sempre vermelhos como sangue fresco, e suas pupilas conseguem dilatar e contrair, assim como a dos felinos selvagens que se pode encontrar próximo a algumas fontes d'água no deserto. Skreas também são muito mais inteligentes, práticos, racionais e fisicamente capazes do que os humanos, e por isso não é de se imaginar, que eles facilmente se tornaram superiores a nós, virando a maior ameaça -depois de nós mesmos- que nos assombra diariamente com sua presença...
Mas ignorando as aparências e o modo de viver, o real divisor de águas entre eles e nós, sempre foi realmente a falta de capacidade deles de criar emoções... Enquanto nós humanos lidamos com todas as emoções possíveis, tão naturalmente quanto a própria respiração, Skreas tem uma enorme dificuldade de naturalmente sentir essas emoções, e se deixarem influenciar sozinhos por elas...
Foi daí que surgiu uma das mentalidades mais famosas deles...:
"Se somos perfeitos, e vocês não... e se vocês sentem, e nós não... então são os sentimentos, aquilo que torna vocês uma raça ainda imperfeita, e inferior a nós. E isso deve ser removido de vocês."

Eu como humano, poderia me ofender com isso... E até me ofender bastante porque isso já causou muitos problemas para a minha raça inteira, enquanto eles insistem em dizer que é simplesmente uma "ajuda" que querem nos dar... Mas para falar a verdade, bem lá no fundo, saber que eles pensam assim torna muito mais engraçado o fato de que eles não são realmente imunes ao "sentir", apenas são deficientes. E por isso a nossa mera presença consegue também influenciá-los a experimentar os nossos sentimentos, nos tornando um afrodisíaco natural para os Skreas falharem em serem perfeitos como sempre se dedicaram a ser (e muitos deles adoram isso, mesmo que seja contra suas próprias regras).

Assim como com toda raça, essas diferenças entre nós de pensamentos, ideais e características acabaram pelo que entendo separando e moldando a sociedade dos lugares como a Citadela...
Não existe uma forma de explicar a sociedade na Citadela se eu generalizar... Cada um, Skrea ou Humano, tem uma visão ou um interesse diferente sobre como cada um deve agir e viver... e até mesmo para mim é surpreendente que consiga haver uma falsa harmonia lá dentro, com ambas as raças dividindo o mesmo espaço...
Se eu mal consigo me convencer que humanos mantenham a paz entre si... pensar que exista paz lá dentro, me faz acreditar ainda mais que é tudo graças a racionalidade e o controle firme que os Skreas tem sobre todos vivendo nessa cidade negra...
Poucas foram as vezes aonde conflitos se formaram lá dentro, e eu prefiro apenas não pensar nessas vezes, porque cada uma delas me provou que nós humanos somos facilmente subjugados, e ainda mais facilmente provocados...

— "Ainda estou para descobrir um conflito sequer em que os humanos não começaram, e que ainda por cima acabaram ganhando..."

Eu repeti para mim mesmo, enquanto atravessava a calma porém protegida entrada oeste da Citadela... A tropa que eu vira no deserto a pouco tempo já havia cruzado os portões e retornado para seu quartel mais a fundo na cidade.
Ao redor da entrada, não havia mais do que os rotineiros guardas, e os vários mercadores humanos concentrados aguardando permissão para entrar ou sair com as mercadorias que traziam...
Normalmente os Skreas não se importavam com as pessoas que passava pelos portões da Citadela, mas buscavam manter uma vigília dura sobre os produtos que entravam lá dentro, tanto para o bem deles, quanto para o nosso bem... como uma tentativa de ajudar seus exércitos a não terem que se preocupar tanto com o que poderia acontecer dentro de sua própria cidade.

Para os Skreas, aquela cidade e provavelmente qualquer cidade feita por eles, eram seus bens mais preciosos.
Eu comentei apenas sobre a diferença com os sentimentos, mas até mesmo se tratando de hábitos, os Skreas e os Humanos eram de polaridades opostas... Nós humanos conseguíamos facilmente agir como nômades, encarando longas viagens e nos espalhando pelo mundo, criando diversas pequenas vilas nos lugares mais remotos possíveis...
Por outro lado, os Skreas eram extremamente sedentários, escolhendo um lugar para assentarem e ficando ali, sem explorarem ou se aventurarem muito longe do centro de seu poder.
Eu vim a entender isso com o tempo, percebendo que esse era o porquê de eu sempre ter visto tão poucos Skrea nos Desertos Profundos quando jovem. Assim como também acabei aprendendo que é incomum haver mais do que uma única e enorme cidade de Skreas espalhada em cada uma das diferentes regiões por aí.
"É incrível como mesmo ocupando menos terras e estando presentes em menos lugares que nós, eles ainda sim sejam oficialmente a raça dominante..."
Eu pensei comigo mesmo em descrença, enquanto me afastava dos guardas da entrada que não me davam a menor atenção.

Quando eu comecei a viver aqui na Citadela, um sábio amigo me disse enquanto eu me acostumava a essa nova realidade:
"Jamais cruze o caminho de quem está melhor armado."
Ele se referia ao conhecimento universal aqui de dentro, um que eu jamais precisei ter lá fora... Esse conhecimento era para que sempre ficássemos na nossa, já que todo o poder militar da região é controlado por essa outra raça... Isso inclui as armas, as regras e a quantidade de gente pronta para matar se preciso (Claro, não é que humanos não portam armas também, mas faz parte do nosso bom senso manter essas coisas entre nós, já que esse assunto tem uma parte dentro da ilegalidade).
Já que os Skreas são uma raça sedentária que vive acerca de apenas 1 cidade por região, eles acabaram crescendo muito rápido no setor militar, seja para ataque ou defesa... Suas armas são bem trabalhadas, sua disciplina é inabalável, sua ordem é primorosa... eles são uma raça feita idealmente para isso.
Com esse aspecto já sendo tomado conta, os humanos em um geral foram lentamente perdendo a necessidade de ter seu poder militar próprio, e acabaram se tornando deficientes nesse setor, aprendendo a depender da raça mais militarista para os assuntos de segurança que venham a aparecer, ao menos aqui dentro na Citadela.

Enquanto os Skreas dominaram todas as tarefas envolvendo a segurança, a gerência e a ordem da sua própria cidade, para os humanos, sobrou muitos dos custosos trabalhos que os Skreas não gostam de perder tempo fazendo... em especial o entretenimento e o comércio...
Humanos sentiam, humanos viajavam, humanos tinham carisma e vivência... São esses os poucos atributos que conseguimos diariamente usar como moeda de troca para mostrar que temos como ajudá-los a também manter a cidade.
Graças a essa repartição de tarefas, literalmente os trabalhos na cidade se tornaram divididos quase que por um abismo, e para qualquer um que ande por aqui é fácil perceber como no fim as duas raças simplesmente não passam de "água e óleo" em um mesmo frasco...
Podemos dividir o mesmo espaço, mas não quer dizer que mesmo assim nos misturemos...
No fundo somos diferentes demais para nos misturarmos...


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