Deirdre, a Descendente escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 7
VI - O Coração Oculto da Floresta


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente! Tudo bem?

Após meses e meses de árduo empenho, meu capítulo novo terminou saindo junto com a novela medieval da Globo. Vocês viram que estão shippando a Sansa com o Jon Snow? Falo mal, mas provavelmente vou assistir, nunca resisto à essas novelas de época. E a abertura é cantada pela Aurora ♥

Enfim, sobre a demora: não foi bloqueio. Foi só falta de tempo. E eu sempre reclamei de falta de tempo por causa da faculdade, mas ainda não tinha chegado ao nível de me impedir completamente de fazer qualquer coisa além de estudar. Espero que tenha sido culpa do fim de período.

Geralmente, quando eu formulo um capítulo, levo 3 dias no máximo pra pôr no papel, e nesse caso levei 3 meses. Foi bem agonizante. Cheguei até a deixar um aviso no meu perfil. Mas agora entrei de férias. Como não era um capítulo simples, ainda levei mais um tempo pra terminar. Enquanto ainda estava em aulas, consegui escrever as primeiras 1.700 palavras e só. Houve uma época em que eu postaria o capítulo só com isso, mas gosto de me dedicar mais com essa história, não sei porquê.

E como perrengue pouco é bobagem, depois de ter terminado o capítulo e postado, eu ainda passei horas e horas consertando o HTML. Porque é o seguinte: eu uso o LibreOffice, uma alternativa pirata para o Word. E aquela minha estripulia de colocar trechos em russo no último capítulo basicamente estragou a formatação da história inteira. Mas eu só percebi quando tentei postar no Nyah. Estava parecendo um código. E aí não teve jeito, tive que consertar tudo manualmente. Basicamente, eu precisava separar todos os parágrafos, depois voltar e juntar mais um pouco. Acho que não consegui deixar perfeito, porque só uma máquina consegue acertar a formatação do Nyah. Meu conselho é ler com o celular deitado. Desculpa, gente. Compartilhei aqui o problema pra vocês não passarem pelo mesmo.

Mas valeu o trabalho: esse capítulo ficou gigante e, na minha humilde opinião, muito legal.

Mais uma coisa: vocês talvez não tenham notado, mas o nome do rei Mathew está escrito errado. O certo é Matthew com dois Ts. Passei muito tempo remoendo se isso valia o trabalho de consertar, mas no fim venci a preguiça e agora vou corrigir tudo aos poucos. Neste capítulo ainda está errado.

Foi mal pelo textão aqui nas notas iniciais, é pra matar saudade. Espero que aproveitem a leitura ♥



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 Deirdre abriu a porta do estábulo com um singelo chute. Agora ela já sabia como aquelas velhas e enferrujadas dobradiças rangiam e não valia a pena tentar ser delicada. Assim que entrou, já pôde constatar que desta vez não havia ninguém lá dentro. Irwing foi embora naquele meio tempo. Mas pela forma como as coisas estavam espalhadas e a aborrecida Daphne tentava se livrar de uma sela mal-colocada sobre seu lombo castanho-avermelhado, era possível deduzir como o rapaz havia dado apenas uma pausa e voltaria em breve. Mais uma razão pela qual ela precisava se apressar.

— Pronto, pronto. Já voltei para resgatar-lhe. – murmurou a garota enquanto se aproximava da égua, que estava claramente irritadiça, como se houvesse encarado tudo aquilo como uma grande traição seguida de abandono. Ela sempre teve personalidade forte.

  Deirdre retirou de uma vez aquela sela (as pessoas daquele lugar precisavam mesmo de todos esses apetrechos para simplesmente montar em um cavalo?), subiu com todo o respeito no equino mal-humorado e partiu dali o mais rápido que podia, ao mesmo tempo em que evitava fazer muito estardalhaço. Seu objetivo mais urgente era apenas deixar a região do castelo. Embora as palavras do Mago a tivessem assustado, ela imaginava que fosse um pouco cedo para haver toda uma tropa de guardas ao seu encalce.

  Ocultando a cabeça com a capa, Deirdre galopou dotada de surpreendente confiança na direção da saída. Mal reparava em como os gritos de Evelyn já haviam cessado. Então ela alcançou a área do sinistro fosso, e sua segurança momentânea logo foi sobreposta pelo pânico. A ponte levadiça, que a garota encontrara misteriosamente abaixada durante a aurora, já havia sido erguida mais uma vez. Deirdre estava presa junto à sua égua dentro do terreno do castelo. Essa era a última coisa de que precisava. Não parecia haver outra forma de escapar, e encarar o fosso obviamente não era opção. A intuição que ela teve quando Irwing a trouxe ali pela primeira vez por fim se mostrava correta. 

O desespero já parecia dominar cada aspecto de seu ser e a sensação que tinha era a de que todos os objetos inanimados compondo a paisagem ao seu redor estavam prestes a atacá-la. Com uma mão trêmula, ela acariciou a crina de Daphne, na tentativa de evitar que seu medo contaminasse o animal.

 — Mago… – chamou ela com voz aflita. O vento cortante prontamente arrastou a palavra para longe. – Por favor, senhor Mago… Onde está você quando eu preciso? Mago… Mago… Por favor… Mago…

Logo ela sentiu um arrepio curto e urgente que fez com que se calasse.

Pelos druidas que me consagraram, Deirdre! Acalme-se! Acha que uma donzela nervosa falando sozinha montada numa égua diante do castelo não vai terminar atraindo a atenção de alguém?

  Deirdre engoliu em seco e deu uma rápida olhada para trás, para cima, para os lados. O pavor poderia estar afetando um pouco sua percepção, mas aparentemente tudo continuava na mais tranquila e monótona paz.

 — Certo… Já parei. – respondeu em um tom quase inaudível. – Mas o senhor percebe o problema com o qual me deparei aqui? Estou presa.

Claro que sim. Eu costumo ver através dos seus olhos… Só em momentos pertinentes, mas vejo. Enfim, já estou há algum tempo no processo de abaixar essa coisa inconveniente, mas, como você pode imaginar, é algo que exige bastante energia e poder. E meu poder, que um dia já foi quase ilimitado, se esgota facilmente devido à minha condição.

  — Que condição?

É algo complicado demais para explicar agora. Talvez mais tarde. Não há motivo para pânico, Deirdre. Aquele rapaz da guarita é um inútil; está imerso num sono profundo. Espere um pouco… Estou quase lá…

 A garota sentiu um formigamento muito incômodo da cabeça aos pés.

Saia do caminho.

 Assustando Daphne com o comando brusco, Deirdre logo se afastou para um canto e encarou a ponte lá em cima, cheia de expectativa. Porém, no primeiro instante, nada pareceu acontecer. Então ela notou um movimento bem vago, que talvez fosse só impressão. A ponte estava abaixando muito devagar… Em avanços quase imperceptíveis… Mas de repente, quando havia atravessado pouco além da metade da rota até o chão, ela apenas despencou, gerando um terrível estrondo e erguendo muita poeira. Isso deixou Daphne completamente aterrorizada e ela saiu em disparada na direção do reino sem precisar de qualquer atitude de Deirdre, que, tossindo e com os olhos ardendo intensamente, só conseguia se agarrar à égua firme o suficiente para não cair.

Gritos de: “O que diabos foi isso?!”“São os inimigos!” e “É o Diabo vindo reduzir nosso reino à ruínas!” ecoavam, cada vez mais distantes enquanto a égua e a menina se afastavam em velocidade insana. Daphne só foi parar, exausta, quando alcançaram as construções, onde os plebeus continuavam trabalhando indiferentes, dando a entender que confusão alguma era digna de quebrar sua concentração.

   Deirdre estava enxergando tudo não apenas dobrado, mas quadruplicado. Enquanto tentava descer da égua ainda ofegante, ela perdeu o equilíbrio e desabou no chão poeirento de terra batida. A solidez e estabilidade do solo era reconfortante. Ela poderia passar algumas horas daquele jeito.

       Perdão…, murmurou, após um segundo, a voz envergonhada em sua mente. Aquilo foi um acidente.

       — Percebi. – retrucou a garota num fio de voz, enquanto, aplicando algum esforço nos braços, conseguia se sentar. Embora todos os seus membros fraquejassem, ela logo constatou que não estava nem um pouco machucada. Após esfregar os olhos, percebeu que pobre Daphne também já havia se acomodado no chão ali ao lado e não parecia disposta a sair do lugar tão cedo. Depois de tanta confusão, aquela era uma cena quase cômica. – Um acidente pra lá de ruidoso que definitivamente atraiu a atenção de todos os guardas. Agora é questão de tempo até que eles nos alcancem e…

   Querida… Não se preocupe. Uma certeza que eu tenho é a de que todos os membros daquela corte são muito estúpidos. Em geral, eles não entendem nada além do aparente e lógico. Raros são aqueles que ainda sabem dar ouvidos à intuição. Há de levar muito tempo até que eles compreendam o que realmente aconteceu, e mais tempo ainda até que associem alguma coisa a você. De qualquer forma, não temos tempo a perder. A floresta de Penllergare aguarda.

   — Pen o quê? – indagou, um pouco embasbacada, a jovem sacerdotisa, ao passo que conseguia se firmar nos dois pés e contemplar a paisagem à distância, mirando na direção leste. A tal floresta era um pouco difícil de ignorar. Parecia um enorme monstro verde-escuro, prestes a devorar todo aquele mísero reino em sua sede de vingança contra os mortais por terem ousado ocupar parte de seus domínios. E Deirdre ainda sentia um leve receio de se embrenhar ali.

  Penllergare. Duvido que tenha mudado de nome junto com o reino. O que está esperando?

  — Daphne não parece nada bem e não posso deixá-la para trás.

 A garota ajoelhou ao lado de sua égua e passou a acariciá-la gentilmente. Torcia para que ela estivesse apenas em um sono profundo e não desmaiada.

   Ela está fazendo corpo mole, garantiu o Mago, um pouco rabugento.

   — Tem certeza? – insistiu Deirdre, preocupada. Mas Daphne logo reagiu ao seu toque e lentamente se ergueu, trotando devagar na direção em que a dona a guiava. – Boa menina. – sussurrou a jovem alegremente próximo ao ouvido dela. Já não cogitava montá-la. Esperava apenas que aquele passo arrastado pudesse levá-las logo ao seu objetivo.

   As ruas foram tomadas por um profundo e anormal silêncio enquanto Deirdre avançava na direção da floresta, com o capuz ainda disfarçando sua identidade. Embora muito provavelmente fosse apenas impressão sua, aquilo a deixava nervosa. O fato de a voz ter silenciado de vez após aquela última afirmação também não ajudava. Ao menos, as frondosas árvores já não pareciam tão distantes, exalando sua energia serena e misteriosa que tanto se distinguia do ambiente provincial daquele reino em suas fronteiras.

   Deirdre envolveu sua égua com mais firmeza antes de reprimir o medo e se embrenhar mata adentro. No entanto, uma vez em seu interior, o único sentimento que aquele lugar lhe transmitia era paz. Toda e qualquer perturbação presente no mundo parecia ter sido retida do lado de fora. Aquela era simplesmente a natureza, manifestando-se no auge de sua harmonia e esplendor. A folhagem das árvores filtrava todo o brilho solar, resultando num atordoante jogo de luz e sombras. Por sobre o canto dos pássaros e chilrear dos esquilos parecia haver um vago som de água corrente, e Deirdre decidiu segui-lo. Aos seus olhos, era como se a vegetação se abrisse diante dela e de Daphne, facilitando a passagem – e não era apenas impressão. A floresta era uma força viva, sensível a qualquer mudança. Uma vez aventurando-se por seus domínios, ninguém conseguia se fazer despercebido.

   Não demorou até que alcançassem uma linda clareira – um espaço onde a luz conseguia penetrar mais diretamente e variados tipos de flores desabrochavam, circundando um rio de águas fluídas e cristalinas. Na visão da fonte, Daphne desprendeu-se sem hesitar do enlace de sua dona e rumou desesperada até o frescor daquela água – estava morrendo de sede. A garota abriu um sorriso contente diante da cena e logo acomodou-se também em meio à relva macia e perfumada. O banho de sol parecia quase mágico, afastando de uma vez todo o frio que ela sentia, todas as dores musculares, toda a fome e cansaço, qualquer sensação negativa, enfim. Enquanto sentia um sono muito bem-vindo a envolvendo, tudo o que ela se perguntava era porque o Mago não a havia enviado direto para aquele lugar, obrigando-a antes a passar maus bocados naquele castelo fedido. Talvez ele não fosse tão sábio quanto tentava parecer…

 Um estranho canto surgido de lugar nenhum começava a se misturar ao ruído constante da correnteza, ao mesmo tempo em que pequenos brilhos dourados circulavam delicadamente em torno do corpo estendido da garota. Só podiam ser vaga-lumes… Mas em pleno dia? Deirdre já não era mais capaz de refletir sobre isso. Um torpor sobrenatural, muito semelhante àquele que a acometera no barco que a trouxe até Trechairen, deixava-a completamente à mercê da floresta viva.

***

      Desde o estrondo misterioso, a parte superior do castelo estava um absoluto caos. Para quem havia ficado confinada no subsolo, entretanto, todo aquele barulho poderia se reduzir a um burburinho incessante. Incapacitada de trabalhar mesmo se quisesse, Evelyn encarava sua tigela de mingau esfriado com preocupação. Sua mente estava claramente em outro lugar. Rosemary estava ali por perto, ocupada orientando as criadas aflitas com a situação, mas não demorou a perceber aquela expressão incomum no rosto de sua filha adotiva e decidiu dedicar um pouco de sua atenção a ela.

      — Onde está sua amiga? – perguntou ao se aproximar, adotando um tom bem mais suave que o usual.

      — Deirdre? – respondeu Evelyn, erguendo melancolicamente os olhos azuis. – Não sei. Ela andava agindo meio estranho. Talvez esteja perdida na confusão. Ou talvez…

      — Talvez tenha decidido ir embora. – sugeriu Rosemary.

      Ao ouvir pronunciada aquela ideia que já vinha assombrando seus pensamentos há algum tempo, Evelyn sentiu algo incômodo no peito e tratou de engolir uma colherada inteira do mingau viscoso, reprimindo qualquer traço de choro.

     — Ela parecia ser uma boa menina, mas esteve aqui por muito pouco tempo e desconhecemos suas origens. – continuou a outra, sentando-se em uma cadeira próxima. – E sei que você sente falta de uma boa amizade…

     Evelyn assentiu com afinco, tentando evitar que aquele assunto se prolongasse demais:

    — Ela aparecerá. E se continuar desaparecida, está claro que fugiu porque não aguentou o trabalho duro. – Ela respirou fundo antes de voltar a encarar a mãe. – Já chegaram notícias lá de cima?

    — Ah, sim. – concordou Rosemary, mais animada. – Ao que tudo indica, aquele som foi simplesmente a ponte levadiça despencando. Chegou a ficar um pouco lascada. Pobre Barrett… Não é a primeira vez em que ele dorme no serviço e faz besteira. E por ter causado um transtorno tão grande, é bem capaz de…

    — Nem me diga… Nem me diga. – Evelyn estremeceu um pouco e continuou tomando colheradas preguiçosas de seu café da manhã. Até que a lembrança de algo reacendeu uma faísca de esperança em seu coração. – Rosie...?

   — Sim?

   — Há algo que eu não pretendia contar, por ser um assunto pessoal da Duquesa… Mas devido às circunstâncias…

   — O quê? – demandou Rosemary, já severa novamente.

   — Ela e o senhor Irwing parecem estar em um cortejo. Tenho a forte impressão de que eles estiveram juntos no estábulo hoje cedo, pouco antes de ela desaparecer. – Como bem previa, Evelyn observou o rosto da mãe se retorcendo. Mas era tarde agora. – Eu estava pensando… Talvez eu poderia procurá-lo mais tarde. Se alguém neste reino sabe o que aconteceu, deve ser ele.

    Rosemary passou mais algum tempo em silêncio enquanto ponderava; os traços marcados por uma leve careta. Evelyn já esperava ouvir nada além de um velho discurso sobre luxúria, desonra e meretrizes, mas a urgência da situação pareceu amaciá-la um pouco.

    — Bem… – anunciou ela, levantando-se. – Deirdre é sua amiga. Então caso ela não reapareça por conta própria, e caso você termine suas tarefas com tempo de sobra, a permissão estará concedida.

    Com isso, a expressão de Evelyn iluminou discretamente.

     *** 

Na tranquila isolação de seu quarto, a rainha Hilda cantarolava para seu bebê enquanto uma criada escovava por ela seus longos cabelos. Qual não foi seu susto quando o rei entrou de repente, escancarando a porta com violência. Estava lívido de raiva. Mas não parecia ser algo relacionado à esposa.

    — Imogen, saia! — ordenou ele à criada que, trêmula, ainda lançou um olhar preocupado à rainha antes de sair correndo.

    Hilda envolveu o ventre com as mãos.

    — Meu senhor…

    Mathew ajoelhou ao lado do leito, encarando-a com olhos arregalados. Reis não se ajoelhavam com muita frequência.

    — Desculpe, querida, mas você não vai acreditar no que aconteceu.

    A rainha suspirou.

    — Sim, eu soube da ponte levadiça. O servo Barrett será punido?

    — Claro. Mas não é isso. Eu estive atento àquela garota. Ordenei que alguns guardas também estivessem. E parece que ela se aproveitou da confusão para fugir. – De tão nervoso, ele parecia ter esquecido de falar em outra língua. No máximo, baixava um pouco o tom.

  Hilda ficou atônita por um segundo.

  — Tem certeza? Ela roubou alguma coisa? – quis saber, finalmente. Não entendia muito bem o motivo de tanto alarde. A garota havia trabalhado na limpeza apenas por um dia e não era uma prisioneira. Além de que poucas horas antes, Mathew parecia ter tudo sobre controle. Mas aquelas mudanças de estado de espírito eram algo típico dele.

  Em resposta, o rei a encarou no auge de sua impaciência. Qual era mesmo a razão de estar discutindo algo tão importante com sua mulher? Ah, sim. Ela era uma das poucas pessoas que entendiam do que ele estava falando, e certamente a única em quem podia confiar. Que situação.

  — Sim. – confirmou ele com sarcasmo aflito. – Ela roubou nada mais, nada menos que nosso reino inteiro. Essa Deirdre era claramente uma espiã, e neste momento deve estar revelando todos os segredos do castelo aos nossos inimigos de longa data, cujas faces sequer conhecemos com precisão. Já podemos preparar os soldados para uma invasão, mas desta vez não há escapatória. É o nosso fim. – Em seguida, lançou um olhar fúnebre sobre o ventre da esposa. – Não testemunharei sequer o primeiro choro de meu filho…

  Sem se abalar nem um pouco, Hilda ergueu suas mãos para envolver as do marido. Aquela era sempre uma forma aceitável, feminina e eficiente de dizer: “acalme-se!”

  Na verdade, seu primeiro impulso foi perguntar porque Mathew sequer permitira a entrada daquela menina na corte, se ela era visivelmente tão perigosa assim. Porém sabia que não seria nada prudente: tal petulância com certeza a faria apanhar com uma criada, estando grávida ou não. Limitou-se a dizer:

  — Ela não pode ter ido tão longe, meu senhor. Podemos enviar os guardas em sua procura. E aquele rapaz que a trouxe aqui parecer ser tolo o suficiente para acobertá-la…

  O rei negou com um gesto de cabeça.

  — Não há como, pela mesma razão pela qual não pude mandar matá-la. Somente eu e você sabemos o crime que ela cometeu. E acusá-la falsamente de algo geraria uma agitação que não queremos. Tudo precisa ser feito na surdina. Portanto, acho que nossa única saída imediata é… o velho demente.

 A rainha esboçou um sorriso aliviado.

— Refere-se ao ancião? Já lhe enviei um pombo-correio. A resposta não deve demorar muito.

— Não… – retrucou Mathew, nervoso, antes de levantar e ir até a janela, dando uma rápida espiada no mundo exterior. – Não temos todo esse tempo. Devo ir ao encontro dele pessoalmente. – Enxugando o suor da testa, ele contemplou a esposa. – E você… Fique onde está.

Antes que Hilda pudesse articular a palavra “espere!”, ele a havia deixado, largando a porta aberta em sua pressa. A vontade dela era de levantar e ir atrás, mas sentia-se especialmente fraca naquela manhã. Tinha feito até demais para uma rainha. Ainda pesava sobre ela a consciência de que era tudo sua culpa: ela o assustara. Por mais que ele negasse, sabia que Mathew tinha muito medo de lendas e histórias da carochinha.

A questão era a promessa dele, aparentemente esquecida, de não sair em viagem antes do nascimento de seu filho. Hilda temia o momento do parto de qualquer maneira, e estar ali sozinha com suas criadas só piorava a situação. O herdeiro poderia nascer em qualquer dia das próximas semanas… E ela poderia estar morta antes do retorno do rei. Sufocando as lágrimas, ela agarrou seu terço e passou a rezar para a Virgem Maria.

*** 

   Longe, muito longe de toda a confusão que havia causado, Deirdre despertava do sono mais agradável de sua vida. Demorou um pouco para que ela percebesse o quanto algumas coisas não faziam sentido. Tinha a impressão de estar deitada sobre uma nuvem, embora tivesse certeza de que adormecera na relva. O aroma que a cercava parecia diferente. Já era noite: a ausência do sol e a umidade fria no ar eram inconfundíveis, e Deirdre havia adormecido ainda de manhã. Que tipo de sono pesado era aquele? Então ela finalmente abriu os olhos e a resolução se completou. Não, não estava no mesmo lugar de antes e havia dezenas de vaga-lumes voando para lá e para cá na escuridão em torno dela, os quais ela espantou com um grito e um movimento brusco. 

Sua perplexidade aumentou ainda mais quando aqueles insetos se transformaram em mulheres e saíram correndo alarmados para fora do quarto. Apenas uma restou. Tinha ares de ser a líder e Deirdre a observou de seu leito, encolhendo-se, embora ela não fosse tão assustadora assim: tratava-se apenas de uma menina de cerca de 18 primaveras, dona de enormes asas de libélula e bem bonita. Após alguns minutos recompondo-se de ter sido atirada no chão, ela levantou com um suspiro e tentou sorrir para sua hóspede.

  — Boa noite, querida. Peço perdão pelo susto.

  — Tudo bem. – murmurou Deirdre em resposta enquanto reunia alguma coragem para sentar-se na beirada da cama, cujo forro parecia ter sido fabricado com paineira pura. – Posso saber onde estou?

 — Você está n’O Coração Oculto da Floresta. – Ao notar como a confusão no rosto de Deirdre aumentou, a jovem acrescentou rapidamente: – Caso prefira, pode chamar apenas de Lar dos Elementais. Eu sou Miríade, a fada da neblina, e estou encarregada de orientá-la.

Em seguida, ela fez uma breve e elegante reverência. Deirdre, então, conseguiu reparar um pouco melhor em sua aparência: estava coberta de adornos translúcidos e prateados, desde a tornozeleira em um de seus delicados pés ao pó brilhoso que enfeitava seus olhos cristalinos. Parecia mesmo névoa personificada. O vestido que usava era feito de tiras desordenadas de tecido reluzente, mas ainda assim ficava lindo em seu corpo. Nada parecido com algo que Deirdre já houvesse visto. Por outro lado, aquela também era a primeira vez em que ela se deparava uma fada ou qualquer outra criatura do tipo, embora estivesse familiarizada com magia desde sempre. Dois dias antes, ela nunca tinha visto sequer um homem! Seu medo já parecia ter se dissipado por completo, e ela estava quase abrindo um sorriso quando lembrou de algo muito urgente.

 — Daphne… Minha égua… Onde ela está?! – quis saber, aflita.

 — Ah, quer dizer aquela coisa... doce e boazinha que encontramos ao seu lado? – respondeu Miríade, soando levemente insincera. – Ela foi acolhida, está sendo muito bem tratada e você poderá vê-la mais tarde. Mas por enquanto, recomendo tomar um banho e vestir algo mais adequado. A rainha Elleinad está muito animada para conhecê-la.

— Quem..? Por quê?

— Porque você é a descendente. A lendária e tão aguardada descendente. É até um pouco diferente do que eu imaginava...

— Sou mesmo? – retrucou Deirdre, um tanto aborrecida com o jeito daquela fadinha. – Acho que já entendi. Deixe-me tomar meu banho, por favor.

— Claro… Venha por aqui.

Ela foi guiada até uma portinha em um dos cantos de seu quarto arredondado, sem deixar de reparar em como todas as paredes daquele lugar pareciam feitas de tronco de árvore. Ali havia um lavatório com uma convidativa banheira de pedra que estava sendo preenchida por uma… fonte vinda do teto? Erguendo os olhos, Deirdre percebeu como lá no alto cresciam folhas esverdeadas, e da maior delas escorria um fluxo de água, como num dia chuvoso. A diferença era que aquela água era quente, cobrindo todo o ambiente com seu vapor. A garota decidiu não perguntar nada. Apenas despiu-se quando Miríade foi embora e mergulhou de bom grado na banheira.

    Depois do sono mais agradável da sua vida, ela teve o banho mais delicioso de sua existência. Aquela água era naturalmente perfumada e muito relaxante. Deirdre quase dormiu algumas vezes e estava receosa de que horas inteiras houvessem se passado quando finalmente saiu dali. Então ela foi avaliar as roupas limpas que haviam sido deixadas ao lado e quase levou um susto. Era um vestido deslumbrante e exótico, assim como o de Miríade, mas ainda mais belo. Tratava-se de uma mistura vertiginosa de azul-claro, branco e lilás, feita de pedaços de tecido preguiçosamente unidos. A saia tocava o chão e sob ela havia uma longa anágua que parecia feita de orvalho solidificado. A garota teve um pouco de receio de que aquilo se desfizesse em seu corpo; em vez disso, coube perfeitamente e se revelou muito confortável. Só não havia sapatos. Ela já havia reparado em como Miríade também estava descalça. Talvez fosse um hábito daquelas guardiãs da natureza. Não seria problema; ela estava quase acostumada.

  Sua ajudante a aguardava pacientemente do lado de fora, onde, sob alguns de seus protestos, ela penteou seus cabelos e enfeitou o topo de sua cabeça com dois ramos floridos, formando uma singela diadema. Havia um espelho ali e Deirdre foi correndo olhar-se nele. Estava encantadora. A única coisa que parecia diferenciá-la de alguma fada era a ausência de asas. Já Miríade não pareceu muito impressionada:

   — Bem, você ficou mais apresentável, com certeza. Que banho demorado, hein? Agora siga-me. A rainha deve estar impaciente.

   Com isso, ela saiu flutuando do quarto. Deirdre precisou apertar o passo para alcançá-la. Desembocaram em um corredor que não se assemelhava de forma alguma aos do castelo de Trechairen. Flores brancas brotavam por rachaduras em cada centímetro das paredes e do teto, exalando um aroma inebriante. E em seus miolos, havia delicadas bolinhas de luz contribuindo para iluminar o local. O chão era dourado; talvez feito de puro ouro. Não foi sem esforço que a filha de Nimuë conseguiu seguir seu caminho em vez de ficar parada ali, admirando.

   Após uma leve caminhada, alcançaram a porta dupla feita de galhos entrelaçados que dava acesso à sala do trono. “Trono” no singular, porque ali parecia haver somente uma monarca.

   — Creio que neste ponto devemos nos separar, querida. – informou Miríade em tom baixo, antes de abrir a porta.

    — Por quê? – quis saber Deirdre, com uma sensação desagradável despontando no estômago. – Você não precisa me apresentar para a rainha?

   — Não. Certamente não será necessário, e eu tenho alguns outros afazeres. Apenas siga em frente. Não precisa ter medo.

   Deirdre estava mesmo um pouco temerosa. Era natural. Assim que a fadinha se virou para ir embora, ela fez questão de lhe mostrar a língua. Então respirou fundo, atravessou a porta e encarou seu destino.

Porém, assim que ela entrou, algo atraiu de primeira seu olhar e a fez avançar sem hesitação. Confortavelmente acomodada em um estranho assento, que parecia ter sido entalhado na base de uma colossal árvore cujos ramos desapareciam no teto alto, estava a mulher mais inigualável e bela que Deirdre jamais imaginou conhecer. Suas delicadas asas de borboleta refletindo todas as cores do arco-íris eram, por incrível que pareça, uma das coisas que menos chamavam a atenção em sua aparência. Seus grandes olhos negros pareciam conter todo o universo e iluminavam-se calorosamente diante da aguardada visita. Seu sorriso, estampado em um rosto que remetia à obra mais renomada do artista mais talentoso do planeta, causava arrepios. Sua pele era escura e seus longos cabelos estavam trançados em um arranjo complexo, acima do qual repousava uma coroa muito simples que parecia ter sido feita à mão a partir de objetos bonitos encontrados pela floresta: flores, folhas e pinhas unidas por musgo.

Era muito difícil baixar a cabeça e desviar os olhos da rainha Elleinad, portanto Deirdre esqueceu completamente de como deveria ajoelhar e saudá-la com formalidade. Isso não parecia ser um problema. Na verdade, era ela quem estava indo ao seu encontro, sem nunca deixar de ostentar aquele exuberante sorriso nos lábios carnudos. 

  — Ah, finalmente! – exclamou ela em sua voz melodiosa, ao descer os degraus do trono elevado. Em seguida, deu um abraço em Deirdre que tirou seus pés do chão, como se fosse uma parente muito distante e querida. – Às vezes eu achava que esse dia jamais chegaria. É um inenarrável prazer conhecê-la, jovem Deirdre.

Deirdre apenas sorriu de volta, corando. Levou algum tempo até que ela conseguisse articular:

— Como a senhora sabe meu nome? 

— Ele foi confidenciado a mim muito antes de seu nascimento. – respondeu Elleinad, transparecendo sabedoria. – É estranho… – acrescentou ela enquanto envolvia o rosto de Deirdre nas mãos brilhosas. – Você tem tanto do seu pai quanto da sua mãe. Seus traços são iguais aos de Nimuë, para a sua sorte. Mas esses olhos vieram definitivamente de Merlin. E há algo na sua maneira de andar, falar e se expressar… Creio que se um dia seu pai foi jovem e inexperiente, ele teve muito em comum com você.

— Mas… Eu não tenho pai. Não sei quem é Merlin.

Elleinad pareceu confusa por um breve momento. Então, com um suspiro, seu sorriso murchou.

— Ah, é claro que ela esconderia isso tudo de você. Não imagino o que ela lhe dizia. Você tem pai, sim. Todos os humanos costumam ter. Mas se você está aqui… Como você veio parar aqui, se me permite perguntar?

Deirdre franziu o cenho, tentando colocar sua história em palavras.

— Eu vim parar nesta floresta durante uma fuga, na verdade. E minha desventura começou há alguns dias, quando decidi dar ouvidos à uma voz que surgiu na minha cabeça… Isso não é algo que eu contaria para qualquer um, mas estou certa de que a senhora deve entender.

— Entendo, sim. – disse a rainha, voltando a sorrir. – E essa voz também não quis lhe revelar muita coisa, certo? 

A garota concordou com a cabeça.

— Não por falta de insistência minha…

— Bem… – murmurou Elleinad, cruzando levemente os braços. – Percebo que, no fim, caberá a mim lhe explicar tudo. Será um prazer. Assim aproveito para saber mais sobre você. Preferiria apenas que fosse durante um bom lanche… O que acha? 

Deirdre não podia negar o quanto estava esfomeada.


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Notas finais do capítulo

Sou levemente apaixonada pelo Irwing e sinto falta quando ele não aparece. Carência e solidão faz isso com as pessoas.

Em um surto de inspiração nos últimos dias eu escrevi uma outra fic de Rei Arthur, é uma one-shot centrada na Guinevere: https://fanfiction.com.br/historia/750084/Ultimas_Palavras/



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