Deirdre, a Descendente escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 4
III - A Mudança de Ares




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— Basta de petições por hoje. – grunhiu o rei, antes de levantar-se do trono e se retirar. A rainha o seguiu com alguma dificuldade, sustentando a barriga com as mãos.

Deirdre correu na direção de Irwing, que se apoiava contra uma parede e pressionava o nariz com um lenço.

— Obrigada! – disse a garota, aflita. - Mas você não precisava ter feito aquilo. Foi imprudente.

— Precisava, sim. - afirmou ele com a voz anasalada. - Queriam te mandar para o bordel.

Deirdre não sabia do que exatamente se tratava um bordel. Era outra coisa que não existia em Avalon. Mas não achou que seria apropriado perguntar.

— Você se arriscou demais… Isso é sangue?

— É. - respondeu Irwing com um sorriso dolorido. - Mas tudo bem, não é como se nunca tivessem quebrado meu nariz. Poderia ter sido pior e valeu a pena. Um bom cavaleiro deve sempre defender donzelas…

— Pense melhor na próxima vez. - retrucou Deirdre, franzindo o cenho. - Você deveria ir para alguma enfermaria.

— Eu irei mais tarde, mas agora vou te levar até as criadas da limpeza. Antes eu do que algum guarda, certo? - ofereceu ele, estendendo-lhe o braço livre.

Juntos, os dois deixaram a sala dos tronos – Deirdre olhou para trás, apreensiva, mas percebeu que nenhum dos guardas parecia muito desconfiado ou disposto a escoltá-los na ausência do rei –, atravessaram algumas portas e começaram a descer uma longa escadaria.

Quanto mais fundo avançavam, mais claro ficava o som de vozes femininas – conversas animadas e risos. Não parece tão ruim, pensou Deirdre, otimista. Chegaram em um corredor mal iluminado e Irwing abriu uma das portas sem qualquer cerimônia, pigarreando para que as criadas entretidas em sua fofoca lhe dessem atenção. Várias mulheres estavam reunidas naquele quartinho, lavando roupas, sem parecerem com muita pressa de terminar sua tarefa.

— Senhor Irwing! - sorriu uma delas, exibindo os dentes podres. - Não é todo dia que… Quem é essa?!

— Uma nova criada. Ao menos por algum tempo. - Após terminar essa última frase, Irwing lançou a Deirdre um olhar encorajador. Ela deu um passo à frente.

— Sou Deirdre. P-prazer em conhecê-las. - A voz da garota falhou assim que ela notou a quantidade de olhares carregados de divertimento, desprezo e desconfiança que a examinavam ao mesmo tempo.

— A criada mais bem-vestida que eu já vi! - exclamou uma voz esganiçada ao fundo, cuja origem Deirdre não era capaz de identificar ao certo. - E esse cabelo perfeito? E essa pele sedosa? E essas mãos delicadas? Parece a filha deserdada de um duque! Duvido que aguente uma semana aqui.

Deirdre fixou os olhos no chão, sentindo as bochechas arderem. Mas Irwing não deixou que a humilhassem.

— É claro que aguenta! Vocês não a conhecem. Acho melhor serem gentis com ela.

Algumas risadinhas ecoaram, junto a murmúrios e pequenos comentários debochados. Deirdre encarou Irwing, no auge do desespero.

— Você aguenta. - repetiu ele em tom baixo, assegurando-a. - Elas fazem parecer grande coisa, mas é só lavar, estender e passar algumas roupas, esfregar um chão ou outro, esvaziar urinóis… Hã, desculpe. Você vai se dar bem, tenho certeza. E veja pelo lado bom, agora terá onde dormir.

Deirdre assentiu em silêncio.

— Obrigada… por tudo.

— Não foi nada. - retrucou o rapaz gentilmente. - Estou de folga hoje.

— Então normalmente você é muito ocupado?

— Sim. Vida de escudeiro não é fácil. Às vezes o Sir Desmond me trata como um escravo.

A enorme responsabilidade que Deirdre estava prestes a receber em Avalon atravessou sua mente por um momento, fazendo-a estremecer.

— Posso imaginar. - murmurou ela.

— Pode? - questionou ele, curioso.

— Posso. Mas… Se você está sempre ocupado, significa que não o verei com tanta frequência no futuro, certo? Você é a única pessoa que eu conheço por aqui…

— Não se preocupe. Eu já disse que costumo frequentar o castelo. Voltarei para ver como você está indo assim que puder. Juro pela minha espada.

Ele apoiou a mão direita na bainha, solenemente. Deirdre sorriu.

— Então eu acredito. Agora, por favor, vá para uma enfermaria.

— Por quê? Já até parou de sangrar… - Ele afastou o lenço do nariz por um segundo, e logo colocou de volta. - Na verdade, ainda não.

A garota forçou uma expressão severa.

— Vá.

— Tudo bem… Até breve. Cuide-se. - E com isso ele se virou, voltando a subir as escadas.

— Vou tentar. - Deirdre respondeu tardiamente, e ficou parada ali, observando enquanto o amigo avançava pelos numerosos degraus. Um sentimento de desespero começava a percorrê-la aos poucos. De repente, alguém a cutucou com força no meio das costas.

— Já terminou de se despedir do seu cavaleiro galante?

Ela virou-se, irritada, para ver quem havia disparado aquela ironia, e se deparou com uma jovem atarracada de ar esperto e impaciente. Seu rosto era coberto de sardas e os cabelos, presos por um lenço puído, eram cor de mel.

— Meu nome é Evelyn. Prazer em conhecê-la também, madame… Como é mesmo? Mandaram eu te explicar como funcionam as coisas por aqui. Primeira regra: trabalhe e não fique de frescura.

Deirdre deixou escapar um suspiro enquanto a outra a arrastava pela mão lavanderia adentro. Ótimo início para sua aventura mágica pelas terras além-mar.

***

Enquanto era levada de um lado para o outro por sua enérgica guia, Deirdre pôde notar que embora aquele espaço no subsolo fosse pequeno, era dividido em vários cômodos minúsculos. Ela certamente se perderia bastante. O lugar onde havia chegado era a lavanderia, mas havia um quarto somente para secar e engomar as roupas, outro para armazenar os instrumentos de limpeza como baldes, vassouras e esfregões, mais um com uma espécie de escoadouro onde eram esvaziados e limpos os urinóis e escarradeiras (Deirdre clamava silenciosamente à Deusa para nunca receber essa tarefa) e, por fim, um cantinho que servia como o dormitório das criadas – algumas camas largas feitas de feno amarrado nas quais deviam se acomodar duas ou três moças de uma vez, com pequenos baús para guardar os pertences. A jovem sacerdotisa sentou pesadamente em uma delas, ofegante. Seu rosto alvo estava quase escarlate e ela suava como jamais antes na vida.

— Você é realmente muito frouxa. - comentou Evelyn em tom amigável, enquanto servia-lhe um pouco d’água de uma jarra de barro. - Não aguenta sequer um passeio, quanto mais o trabalho pesado da limpeza.

Deirdre quis rebater, mas mal conseguia falar, então apenas bebericou da água, que parecia ter sido fervida recentemente. Não era exatamente cansaço. A garota costumava passar a maior parte do tempo ao ar livre, respirando apenas a brisa fresca e pura de Avalon – e de repente a enfiavam debaixo do chão, onde não parecia haver uma boa ventilação e, devido ao vapor, estava sempre muito quente. Aos poucos a sensação de que iria desmaiar foi passando. Ela enxugou o rosto com a manga.

— Não sou frouxa. Aposto que você também teve dificuldade para se adaptar quando chegou aqui.

Evelyn riu alto.

— Quando eu cheguei? Eu nasci aqui. Literalmente. Minha mãe estava carregando um cesto de roupa suja quando entrou em trabalho de parto.

Deirdre arregalou levemente os olhos, imaginando a cena.

— Bem, ela não sobreviveu. - prosseguiu Evelyn, subitamente séria. - Terminei sendo adotada pela melhor amiga dela, que também trabalhava aqui. E passei a vida inteira neste lugar, embora só tenha começado a trabalhar de verdade aos 10 anos. Acho que só vejo a luz do sol quando vou buscar água no poço… Mas geralmente as criadas novas se habituam rápido.

Enquanto Deirdre tentava engolir o nó que estava querendo se formar em sua garganta, Evelyn havia começado a remexer em um armário decadente. Logo tirou uma pilha do que pareciam ser trapos e colocou-a no colo da novata.

— Aqui. Este é o seu uniforme. Talvez você se sinta melhor se tirar essas vestes pesadas de duquesa.

— Tenho a impressão de que “duquesa” vai virar meu apelido por aqui… - murmurou Deirdre, esforçando-se para sorrir.

— Provavelmente vai. É mais fácil de pronunciar do que seu nome. Certo, Madame Duquesa, acho que agora você já conhece o lugar… Preciso voltar para a lavanderia. Quando já estiver vestida e de fôlego recuperado, vá procurar as outras; o que não falta é trabalho para você fazer.

Deirdre assentiu sem muito ânimo e passou a examinar as peças de vestuário que recebera enquanto a colega deixava o dormitório. Eram iguais às das demais criadas – um vestido branco em tecido grosso e cru, um avental esfarrapado, um par de sapatos de couro de aparência desgastada e um lencinho seboso para prender o cabelo. Rapidamente, ela tirou sua túnica, que de fato parecia sufocante, e vestiu as roupas humildes. Couberam melhor do que ela esperava e não eram tão desconfortáveis quanto se poderia imaginar. Era um autêntico traje de trabalho.

Agora ela já estava vestida, mas não tinha a menor vontade de voltar e descobrir qual seria sua primeira tarefa. Então apenas permaneceu sentada e deu uma nova olhada ao redor. Não havia muito para se ver. Camas, baús e um único armário. Ah, e um símbolo esquisito pendurado no alto de uma das paredes. Tratava-se da imagem de um homem seminu, de braços erguidos e todo ferido. Não era algo agradável de ficar olhando.

Aquele lugar parecia uma caverna. As paredes eram compostas por blocos irregulares de pedra e no topo delas havia aberturazinhas que se assemelhavam muito vagamente à janelas. Não era suficiente para iluminar o cômodo, portanto a maior parte da luz provinha de velas espalhadas pelos cantos. Deirdre imaginou, involuntariamente, como as epidemias deviam ser frequentes. Durante a noite o local, sem dúvida, ficaria lotado, mas agora ela estava sozinha ali. Sozinha…

— Senhor Mago? - chamou em voz baixa, com medo de ser ouvida. Talvez seria mais fácil se soubesse o nome dele.

Ela aguardou por um longo momento, longo o suficiente para que começasse a se conformar com o fato de que estava louca, e que sua loucura a havia levado até aquele beco sem saída… Foi quando sentiu uma onda pungente de dor de cabeça. E voltou a ouvir a voz.

Sim?

Deirdre respirou fundo.

— Você sabe onde estou?

Claro. No caminho certo.

— Não. Eu estou no subsolo do castelo de um reino que não é Camelot, sendo forçada a trabalhar na limpeza.

Exato. Mas você está no reino de Camelot. Continua sendo o mesmo lugar, por mais que mude de nome e monarquia. E este, meu amor, é o caminho certo.

— Não, não é! - choramingou a garota. - Eu fui tola em confiar em uma voz sem nome, que posso perfeitamente ter inventado!

Querida, é impossível que você tenha me inventado. Sua mente não reproduziria algo que você jamais ouviu antes; uma voz de homem.

Fosse real, inventada ou demoníaca, aquela voz sabia argumentar bem. Deirdre concordou a contragosto.

— Diga-me exatamente quem você é, e terá mais da minha confiança.

Não posso.

— Por que não?!

Porque é mais do que devo revelar, simplesmente. Pode continuar me chamando de Mago, eu atenderei.

Deirdre não iria discutir com as vozes em sua mente. Isso é o que pessoas insanas fazem. Então ela cerrou os punhos até doer.

— Então – começou ela, tentando conter o tom de voz. - Ao menos diga-me qual é o propósito disso tudo.

Ah, Deirdre… Você está aqui para realizar algo grandioso. Mágico. Histórico. Algo que somente você é capaz de fazer. Sua missão neste mundo. Porém, também não posso revelar esses detalhes. Em parte porque é difícil contar longas histórias via telepatia. Você descobrirá aos poucos, e assim compreenderá melhor.

Deirdre, obviamente, gostou daquelas palavras. Embora tenha achado-as um tanto vazias.

— Certo. E enquanto isso… vou ficar trabalhando aqui?

Sim. É como disse aquele rapaz, a vantagem é que agora você tem um abrigo. Preferiria estar dormindo na rua? Tenha paciência. Haverá muitos obstáculos na trilha de seu destino, e espero que você não reaja dessa forma patética a todos eles. Estou esgotando minha energia. Adeus.

A garota sentiu um forte calafrio e percebeu a conexão se esvaindo. Ela teve a nítida impressão de que aquilo foi uma desculpa; o Mago quis escapar antes que ela tivesse tempo de sequer processar a ofensa. Bem, talvez ela estivesse precisando. Sentia-se um pouco mais determinada agora. E a última coisa que queria era voltar para casa.

Então ela ouviu passos no estreito corredor do lado de fora e imediatamente entrou em pânico. Havia passado um bom tempo sozinha no quarto, falando com vozes incorpóreas. Será que alguém ouvira? Com o coração disparado, Deirdre se levantou e atravessou a porta, indo direto ao encontro de quem quer que estivesse ali.

Deparou-se com uma criada, mas não era Evelyn desta vez, e sim uma mulher mais velha e rabugenta, que estreitou os olhos para ela. Teve seu braço agarrado com pouca delicadeza antes que pudesse reagir.

— Não toleramos lerdeza aqui. - resmungou a mulher enquanto arrastava Deirdre (que andava sendo arrastada sem necessidade com muita frequência) até o almoxarifado. - Pegue uma vassoura. Sua primeira tarefa será varrer e empilhar as folhas caídas do pátio. Se reclamar, leva uma bofetada. A propósito, meu nome é Rosemary.

Deirdre assentiu cabisbaixa enquanto Rosemary a soltava. Será que aquela matrona havia considerado que seu aperto deixaria o braço da menina dolorido, e era difícil varrer com dor? Provavelmente não. Talvez Deirdre estivesse sendo frouxa mesmo. E cuidar de folhas secas não parecia uma tarefa tão árdua. Ela escolheu a vassoura que parecia menos usada e seguiu na direção da saída.

Estava atravessando novamente a lavanderia quando ouviu uma voz familiar exclamando:

— Rosie! Posso ir com a duquesa? Já lavei e pendurei toda a minha leva de roupas.

— Por que, Evelyn? - indagou Rosemary. “Rosie” definitivamente não era um apelido que combinava com ela.

— Porque é óbvio que ela não vai conseguir encontrar o caminho e passará o dia inteiro perdida. - replicou Evelyn, direcionando à Deirdre um discreto sorriso.

Rosemary cruzou os braços enquanto ponderava por um segundo.

— Certo. Mas não vá fazer o trabalho todo por ela.

Evelyn se apressou em pegar uma vassoura e um arado para si e logo depois estava acompanhando Deirdre pela longa escadaria.

A novata não pôde conter a curiosidade:

— Você chamou aquela mulher de Rosie? E ela não te ameaçou nem nada?

— Lembra quando eu contei que a melhor amiga da minha mãe me adotou? É ela, a Rosie. - esclareceu Evelyn, sorridente enquanto avançava sem esforço pelos degraus. - Ela não é tão brava quanto aparenta, mas é boa em gritar e pôr as coisas em ordem, por isso tornou-se uma espécie de líder.

— E qual é o verdadeiro motivo pelo qual você resolveu vir comigo?

— Aquilo que eu disse é verdade: tenho medo de que você se perca. Mas também estou curiosa para saber tudo sobre a sua vida. E a tarefa que você recebeu é bem mais difícil do que parece. Rosie está querendo te testar.

Deirdre ainda estava tentando imaginar o que poderia haver de tão desafiante em juntar folhas caídas, quando alcançaram o topo da escada e Evelyn abriu a porta que dava acesso ao resto do majestoso castelo. O sol estava a pino. Já parecia estranho ver tanta luz.


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