Deirdre, a Descendente escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 2
I - O Marco de Maturidade


Notas iniciais do capítulo

Olá! Este capítulo demorou um pouco mais para sair do que eu pretendia, mas ficou bem "substancial."

Preciso esclarecer sobre algo que será mencionado durante a narrativa: náiade, na mitologia grega, é um tipo de ninfa que habita as águas doces. Eu li uma teoria em algum lugar de que Nimuë seria meio náiade. Por isso ela conseguia passar tanto tempo submersa no lago. E como ninguém nunca viu uma ninfa velha, eu supus que elas envelhecessem devagar. Quem me conhece como autora vai achar que eu enfio mitologia grega em tudo o que escrevo, mas eu juro que não inventei isso.



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O aniversário de 15 anos era um marco importante na vida de toda jovem em Avalon. Tratava-se do momento em que, perante os olhos daquela pequena comunidade, uma moça evoluía da menina para mulher, oficialmente abraçando por completo a autonomia, maturidade e responsabilidades que aquela nova fase acarretava. Tudo isso, literalmente, de um dia para o outro.

Se aquela era uma transição significativa para qualquer garota, era ainda mais para a única filha biológica da grã-sacerdotisa, que estava fadada (embora ela devesse dizer abençoada) a herdar o mesmo título. Deirdre não tinha certeza se um dia conseguiria se igualar à mãe, que era conhecida por sua impassibilidade, destreza e sabedoria. E ela não queria ser obrigada a fazer isso. A perspectiva a assustava muito, de forma que ela tentara aproveitar o que restava de sua infância, mas parecia ter acabado rápido demais. Além de que Nimuë ansiava por se aposentar. Embora sua magia e natureza náiade a fizessem aparentar sempre cerca de 30 anos, ela já se dedicava àquela função há mais de oito décadas.

Naquela noite tão singular, a lua crescente brilhava no céu. A ilha estava toda decorada por pequenas velas que ardiam em chamas multicoloridas, em tamanha quantidade que em determinado momento Deirdre se perguntara se não havia risco de um incêndio arruinar a festa.

A celebração teve início em uma série de rituais e preces dedicadas à aniversariante no templo da Deusa. Em seguida, foi servido sobre uma comprida mesa de madeira um magnífico banquete, no qual havia opções de carne e vegetais que eram encontradas somente naquela região de natureza intocada. Após estarem todas saciadas, as mulheres reuniram-se para executar uma dança tradicional, complexa e bela.

Talvez não seja necessário especificar como mulheres, pois havia somente pessoas do gênero feminino, das mais variadas idades, na ilha de Avalon. Exceto pelo velho Arthur, mas ele não contava. Deirdre já questionara sua mãe algumas vezes em relação a como surgiam as novas gerações de meninas. E a resposta vinha sempre na forma de uma lenda: em ocasiões incomuns, a própria Deusa fecundava o ventre de algumas mulheres que considerava mais virtuosas, para que elas dessem continuidade a uma linhagem apta o suficiente para manter a paz e a prosperidade naquele pequeno paraíso. A garota dava-se por satisfeita com essa explicação, embora folheasse em segredo alguns dos livros que Nimuë trouxera do mundo dos homens e suspeitasse que a verdade fosse um pouco menos poética.

Em algum momento enquanto todos os olhos estavam fixos nas dançarinas que realizavam sua coreografia graciosa e perfeitamente sincronizada, Deirdre escapuliu. Ela estava gostando da festa, de verdade – mas precisava passar um tempo sozinha, para refletir sobre como seria sua vida a partir do dia seguinte sem ninguém para perturbá-la. Então ela foi até a praia.

Desde sempre, Deirdre possuía uma ligação especial com aquele lugar – o ruído constante das ondas a acalmava e o horizonte distante e vazio atiçava sua imaginação. Ela se deitou na areia e ficou tentando reconhecer constelações no céu estrelado. Estava quase caindo no sono quando teve um sobressalto. Podia sentir alguém se aproximando.

— Aí está você, para variar. - resmungou Nimuë. - Achou que ninguém daria pela falta da aniversariante? Nunca irei entender o que se passa em seu juízo… Deirdre, seu vestido! Eu mesma costurei! Vai estragá-lo!

A garota se levantou com um suspiro pesaroso e passou a limpar como podia a areia que pesava em sua bela túnica de veludo roxo. Seu cabelo; comprido, ondulado e escuro como o da mãe, estava adornado por delicados fios de ouro – que haviam todos se perdido pelo chão. Não, ela nem sequer se preocupara com isso quando resolveu deitar ali.

— Desculpe… - sussurrou, envergonhada e já preparando-se para levar uma longa bronca. Em vez disso, a mãe sorriu e a abraçou.

— Estou tão orgulhosa de você, minha pequena sacerdotisa! Tão crescida, tão parecida comigo… Agora finalmente poderei lhe ensinar tudo o que sei. Antes que perceba, você já estará governando Avalon, protegendo os tesouros naquele lago…

Deirdre contorceu-se, tentando se livrar um pouco do aperto da mãe e de suas palavras igualmente sufocantes.

— Eu sei, mãe. Eu sei. - Ela fez uma breve pausa, procurando reunir coragem para dizer algo que bloqueava sua garganta já há algum tempo. - Eu estava pensando… Já sou adulta, não é? Talvez eu estivesse pronta para… - Ela gesticulou na direção do mar, tentando se expressar. - … conhecer outros lugares.

Nimuë deu uma longa e sonora risada.

— Não, Deirdre. Você acaba de provar que ainda é uma criança em muitos aspectos. Você não quer conhecer as terras além-mar, acredite. Este lugar é um paraíso, perfeitamente seguro, pacífico e estável, enquanto lá só existe guerra após guerra, pessoas sucumbindo à fome e à peste, homens se matando por causa de tronos e posses… Por que alguém, em sã consciência, deixaria Avalon? Faz anos desde que me ausentei daqui pela última vez. Temos tudo o que precisamos.

Por um momento, Deirdre tremeu e sentiu as lágrimas se formando em seus olhos. Mas como já estava acostumada a fazer, baixou a cabeça e não deixou transparecer a revolta diante da mãe.

— Tem razão. Melhor esquecer isso e focar nas minhas lições.

Nimuë apoiou a mão em seu ombro carinhosamente.

— Boa menina. Agora seja civilizada e volte, a festa ainda está longe de acabar.

Deirdre soltou um grunhido que esperava ter sido baixo e acompanhou a mãe na direção da luz tremeluzente das velas e da melodia suave das harpas e liras.

***

Quando a festa finalmente chegou ao fim, os primeiros pássaros da manhã já começavam a piar. Deirdre desabou exausta em sua cama, esperando um sono rápido e enevoado. De fato, ela adormeceu em poucos instantes – mas teve um sonho vívido e enigmático.

Estava paralisada em um frio chão de pedra. Conseguia mover somente as íris e, mesmo assim, não era capaz de ver muito, pois estava um breu quase total. A única luz provinha dos traços prateados que reluziam em vários pontos no teto baixo.

Ela sentia uma vibração suave que percorria as rochas e fazia seu corpo formigar. Era uma voz – mais potente e tangível que um simples eco. Havia uma presença ali. Exercendo uma força descomunal, ela conseguiu erguer a cabeça e olhar ao redor… Mas viu apenas a familiaridade de seu quarto. Estava totalmente desperta. Embora o sonho parecesse ter durado menos de um minuto, a iluminação através da janela revelava que já era cerca de meio-dia.

Assim que a perplexidade inicial passou, Deirdre esfregou os olhos, levantou-se e disparou pelo chalé, berrando:

— Mãe! Mãe! Mãããe!

Encontrou Nimuë na cozinha, imóvel, segurando uma colher de pau dentro de uma bacia de massa. Provavelmente estava mexendo antes da filha surgir gritando como uma desesperada.

— Pelos espíritos da natureza, o que houve?

— Ah… - Deirdre baixou os olhos. - Nada. Eu só tive um sonho.

A mãe abandonou a massa e sentou-se em um banquinho.

— Conte-me tudo o que lembra.

Aquilo já era hábito. Sempre que a garota tinha um sonho marcante, ia direto relatá-lo à mãe. Começou quando ela, pela primeira vez, sonhou que uma das cabras que criavam, Lily, iria adoecer. E no dia seguinte, o pobre animal amanheceu inerte no chão do celeiro. Nimuë levou aquela pequena premonição bem a sério, e desde então, acostumara a filha a lhe contar tudo o que vislumbrava durante o sono, para o caso de haver uma revelação importante sobre o passado ou o futuro.

Porém, aquele sonho em particular era estranho demais até para uma previsão, e Deirdre respirou fundo antes de começar a narrá-lo.

— Eu estava deitada em um lugar frio e escuro. Acho que era uma caverna. Não conseguia me mover nem enxergar nada além de uns brilhos prateados… Então comecei a sentir, mais do que ouvir, uma voz. Parecia que as próprias pedras estavam falando comigo.

Nimuë arqueou levemente uma sobrancelha.

— E como era essa voz? O que ela dizia?

Deirdre fez uma pausa, cerrando as pálpebras no esforço de lembrar. Mas o sonho já se fragmentava em sua mente.

— Não sei. Realmente não lembro. Mas a voz… Ela era áspera e profunda. Estranhamente grave. Talvez fosse masculina… Quer dizer, nunca ouvi uma voz de mulher parecida com aquela.

Nimuë levantou-se imediatamente, sobressaltada, e voltou a se concentrar no que estava cozinhando, evitando contato visual com a filha.

— Não deve ter sido nada demais. Nem fez o menor sentido. Mais tarde, lembre-me de preparar-lhe um chá de betônica. É bom para pesadelos.

Deirdre assentiu nervosamente.

— Você devia se vestir. - continuou a mãe em um tom forçadamente calmo. - Calce as luvas e as botas. Sua primeira lição como sacerdotisa mirim será de jardinagem.

Sem contestar, a garota deixou rapidamente a cozinha. Assim que ela saiu, Nimuë rumou na direção oposta, indo até sua estante. Ela puxou um volume muito antigo e todo manuscrito, que quase se desfazia em suas mãos enquanto folheava as páginas roídas por traças, procurando por um encantamento específico.

***

Horas depois, Deirdre estava praticando equitação, montada em sua égua, Daphne. A brisa fresca e pura do fim de tarde preenchia seus pulmões, e as folhas das árvores frutíferas acima dela formavam sombras velozes ao seu redor enquanto ela seguia a meio galope.

De repente, ela sentiu uma pontada aguda de dor de cabeça, que fez com que largasse as rédeas por um momento e quase caísse. Daphne relinchou irritada enquanto ela descia de volta ao chão. Assim que apoiou os pés na grama, uma voz, como o trovão que sucede o relâmpago, fez-se ouvir em sua mente.

Deirdre.

Ela deu um pulo e olhou ao redor, tentando desesperadamente encontrar alguém que pudesse tê-la chamado. Alguém que existisse. Mas aquela voz, sem dúvida, era masculina, havia soado retumbante demais para vir de fora, e – embora ela quase não lembrasse mais daquilo – de alguma forma, sabia que era a mesma de seu sonho.

Deirdre, minha criança. Acalme-se.

— Você é um demônio? - sussurrou Deirdre, ofegante. - Saia da minha cabeça!

Ela ouvira histórias terríveis sobre entidades malignas que se infiltravam na alma de moças como ela, enlouquecendo-as e fazendo com que se lançassem do alto de torres.

Não! Sou um mago. Um mago bondoso. Levei muito tempo para reunir poder o suficiente para me comunicar com você, então, por favor, ouça.

Deirdre hesitou. Mas naquele instante, ela ouviu outra voz – uma que vinha de perto dela, e que ela conhecia muito bem.

— Menina, você está bem? Caiu do cavalo? Pensei tê-la ouvido gritando…

Deirdre olhou na direção de quem havia dito aquilo. Era uma mulher que aparentava ter cerca de 20 anos a mais que sua mãe, e trazia, apoiada em um dos braços, uma cesta cheia de ervas. Morgana era, na verdade, mais nova que Nimuë, mas talvez por ser menos vaidosa, não usava feitiços de rejuvenescimento, permitindo que a idade vincasse seu rosto e tornasse seu cabelo levemente grisalho.

— Estou ótima, tia Morgana. Apenas um pouco cansada.

Morgana passou alguns segundos em silêncio enquanto cravava os olhos escuros e atentos nela.

— Se é o que diz… Procure voltar para casa antes de anoitecer. Sua mãe vai ficar preocupada.

Deirdre assentiu e voltou a montar na égua, afastando-se antes que a tia pudesse dizer mais alguma coisa. Ficou esperando que a voz em sua mente voltasse a se pronunciar, mas parecia que o misterioso mago preferia ficar quieto quando havia alguém por perto.

***

Deirdre voltou a ficar completamente sozinha somente na hora de dormir, quando Nimuë já havia se deitado. E, como ela previa, a voz áspera falou novamente.

Vá até o cais. Há um único barco amarrado lá. Preciso que você embarque nele.

Deirdre fechou os olhos.

— Você não vai fazer com que eu me jogue no meio do mar, ou vai?

Você sabe que não.

Ela sabia. Algo naquela voz lhe inspirava confiança. Um demônio, provavelmente, não soaria da mesma forma.

— Mas como poderia haver um barco no cais? Ninguém deixa Avalon sem permissão. Especialmente à noite.

A voz deu uma risadinha, provocando-lhe cócegas.

Bem, este caso é claramente uma exceção.

Deirdre deu de ombros. Vestiu sua capa, acendeu uma lamparina e saiu, tentando não fazer barulho. Rapidamente alcançou o cais, e assustou-se ao perceber que de fato havia um pequeno barco a remo ancorado ali. Mas não tinha remos. A voz pareceu notar sua confusão.

É um barco mágico. Basta você entrar, e as águas a levarão direto ao seu destino.

— Meu destino…?

Sim. Você não tem vontade de conhecer outros lugares? É a sua única chance.

Deirdre não poderia negar aquilo. Ela entrou no barco e, cautelosamente, desenrolou a corda que o prendia ao cais. Assim que o fez, ele começou a flutuar para longe, suave, porém rápido. Ela olhou para trás, observando enquanto o lugar onde sempre vivera ficava cada vez mais distante. Isto lhe causou uma onda de insegurança.

— Talvez eu devesse ter deixado algum bilhete para minha mãe.

Não se preocupe. Ela é inteligente até demais. Logo perceberá o que aconteceu.

Deirdre teve vontade de perguntar se o portador daquela voz conhecia sua mãe, mas decidiu que não valia a pena. Em vez disso, deitou-se como podia no chão do barco e apoiou a cabeça em seu braço. Sentia-se estranhamente sonolenta.

Acordou com os primeiros raios de sol. Levantou, sentindo-se um pouco dolorida por ter passado a noite inteira estendida na madeira dura e irregular. Estreitou os olhos para ver através da neblina, e teve a impressão de enxergar a silhueta de construções. Inclinou-se até o limite da proa, sem conseguir crer no que via.

— Aquilo é… um vilarejo?

É o reino de Camelot. Ou pelo menos era, na minha época.


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