ALMARA: Ameaça na Ilha de Xibalba escrita por Xarkz


Capítulo 20
CAPÍTULO 19 | Voughan


Notas iniciais do capítulo

CAPÍTULO ESPECIAL: Revelado o passado de Voughan, seu relacionamento com pais e irmãos. Uma figura desconhecida, que fez parte de seu passado e a história por trás de seus braceletes e tornozeleiras.



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Em uma manhã incrivelmente quente, como apenas em Tuonela se pode presenciar, um rebuliço pode ser ouvido na praça principal, que foi tomada por crianças e adolescentes shamargs.

Eles se exaltam e gritam palavras de ódio, enquanto um grupo menor, ao centro do tumulto, brigam uns com os outros aos socos e chutes.

Um garoto mais robusto espanca dois outros menores ao mesmo tempo e então pisa em cima de um deles, urrando como um animal.

Uma menina, mais ágil, desvia dos ataques de um gorducho, revidando com vários socos em sua cabeça, até que ele cai no chão, desacordado.

Não há uma palavra específica que é gritada em coro. Cada indivíduo se exalta de uma forma própria, se assemelhando à um bando de animais enlouquecidos.

— SANGUEEEE! SANGUEEEE!

— MATA ELE! MATAAAAA!

— PODE VIR QUALQUER UM! PODE VIR!

Próximo à borda um garoto mais alto e magro, mas com ombros largos, parece estar apanhando para um garoto mais baixo. Seus socos atingem o menor mas ele mal parece sentir os golpes, e este revida com violência.

Após meia dúzia de socos, o garoto maior cai no chão, com a couraça de seu rosto trincada e sangrando um pouco, enquanto seu algoz ri.

— Você é uma decepção, Voughan. — vangloria-se o vitorioso.

Com ele ainda caído, uma garota chuta sua cabeça enquanto diz palavras de humilhação.

— Perdendo pra um garoto bem mais novo? Como pode ser tão fraco?

— Nem devia estar aqui, seu verme. — diz outro, chamando-o de “verme”, que é como os shamargs se referem à outras raças, inferiorizando-as.

Ele se arrasta para fora da multidão e então consegue levantar-se, ainda tonto.

Com uma tristeza aparente em seu rosto ele decide ir embora, enquanto os demais continuam com sua diversão doentia.

Do alto de uma grande árvore, um garoto robusto salta em meio ao tumulto e entra na briga derrotando diversos oponentes rapidamente, até que outro shamarg, mais alto que a grande maioria, coloca-se em sua frente.

— Dabba, tava esperando por você. — diz o mais alto. — Achei que tinha fugido.

— Eu tava ocupado arrebentando o seu pai. — responde Dabba.

Todos ao redor voltam suas atenções para a dupla.

— DABBA E BEIMOG VÃO LUTAR! — berra um garoto.

— Essa eu quero ver. — continua outro.

Até mesmo os que estavam lutando cessam suas batalhas para assistir o embate.

Com toda a atenção sobre eles, os dois shamargs adolescentes partem um na direção do outro e iniciam uma violenta troca de socos.

 

Chegando em casa, ferido, Voughan abre a porta da entrada devagar e se depara com seu pai. Um enorme shamarg musculoso e com cara de poucos amigos.

— O que ta fazendo aqui, Voughan? Não devia estar na praça se divertindo? — questiona, em um tom seco.

— Eu… vim procurar pelo Dabba. — Mente o garoto. — Ele não estava lá e todos gostam de ver ele lutando.

— Seu irmão não ia perder isso por nada. Ele deve estar chegando.

Sem desconfiar de nada, o grandalhão sai porta afora, pisando firme no chão.

Voughan caminha pela sala em direção à seu quarto, mas é surpreendido por uma bela e esguia elfa, sentada em uma poltrona. Ela acaricia sua própria barriga e nota-se que está no final de uma gestação. Seus cabelos negros e escorridos cobrem um pouco seu rosto, quase escondendo os olhos azuis brilhantes, que fitam o garoto shamarg.

— Você perdeu novamente, não é? — questiona a elfa.

O garoto abaixa a cabeça e nenhuma resposta é ouvida.

— Quem foi desta vez? Um garoto com metade da sua idade?

— Ele tem nove… Eu acho.

— E você tem catorze. Como pode deixar uma criança derrotar você? Volte lá e acabe com ele.

— Mas mãe, eu não consigo. Eu tentei, mas não consigo. Ele é muito forte.

— Ele não é forte. Você é que é fraco. — responde a elfa, irritada. — Como é possível que você aceite isso? Se teve forças para se levantar e ir embora devia ter usado essa força pra continuar lutando com ele.

Neste momento ela parece sentir uma forte dor em sua barriga, apertando com força o braço da poltrona, que é um amontoado disforme de madeira extremamente desconfortável.

Sua mão trêmula pousa sobre a barriga, acariciando-a, tentando acalmar seu futuro filho.

— Calma… Você vai ter muito tempo para lutar, mas ainda não é a hora. Espere mais um pouquinho. — suando pelas fortes dores.

— Ele tá chutando? — pergunta o pequeno Voughan.

— Sim! Ele ainda nem nasceu e já quer lutar. Ao contrário de você.

Ferido fisicamente e agora psicologicamente o garoto aperta os punhos e dá meia volta, indo em direção a porta de saída, quando ouve sua mãe lhe chamar de volta.

— Hei, volta aqui.

O garoto retorna e se aproxima, já imaginando receber mais uma bronca.

A mão da elfa toca a testa do garoto em um dos locais onde sua couraça trincou.

— Você realmente é fraco, meu filho.

— Eu não sou fraco! — diz, dando um tapa na mão de sua mãe, afastando-a de sua testa.

— Se não é fraco então porque perdeu? Porque está aqui e não no campo de batalha?

— Ele era mais forte, só isso. Eu não sou fraco. — insiste.

— Meu filho, não tem problema em ser diferente dos outros. Nem todos nascem poderosos guerreiros. Veja seu irmão, por exemplo.

— Ogrod sim é um fraco e um fracassado. Ele nem gosta de lutar. Só quer ficar molhando aquelas plantas.

— Ele aceitou o que ele é e decidiu se focar em outra coisa. Em algo em que ele é bom. Você deveria fazer o mesmo.

— Sem essa. Não sou como ele.

— Realmente, você não é. Ele puxou a minha inteligência. Eu diria que Ogrod é melhor do que você. Se vocês lutassem, acho ele venceria.

Cada vez mais irritado, o garoto nada fala, apenas rosna baixinho, como um animal acuado.

— Sabe o que mais me incomoda em você? — continua a elfa. — O fato de você fugir da luta. Ser fraco não é algo que você escolheu, você nasceu assim. Mas fugir da luta, isso é escolha sua. Um shamarg de respeito morre no campo de batalha mas não recua. Faça isso e eu paro de te chamar de fraco. Prefiro vê-lo morto do que agindo como covarde.

Sem saber exatamente o que fazer, Voughan faz menção de sair correndo em direção à porta, mas antes que o fizesse Dabba passa por ela, chegando da rua com alguns ferimentos pelo corpo e sorrindo.

— E então, quem é o mais forte? — pergunta para Voughan e sua mãe.

— Pelo visto venceu à todos, meu filho. — responde a elfa.

— Acabei com todos na praça depois que derrubei o Beimog. Teve até alguns covardes que fugiram. Todos uns trastes inúteis.

Sob o olhar de reprovação de sua mãe, Voughan sai porta à fora, correndo até a praça onde a batalha havia ocorrido, porém, não há mais ninguém no local.

Ele sobe em uma árvore, senta-se e parece aguardar por algo.

— Como eu vou lutar se todos são mais fortes que eu? Se eu não fugir eu morro e eu não quero morrer. O que eu faço?

Por quase uma hora o garoto permanece sentado na mesma posição, divagando, até que um som crescente, semelhante à um estouro de uma manada, chama sua atenção.

— Finalmente, vai começar. — se entusiasma, enquanto aguarda o início de algum evento já esperado.

O som aumenta mais e então é possível ver uma fumaça se formando ao longe. Logo algumas silhuetas podem ser vistas, correndo em disparada, até que chegam na praça.

Centenas de shamargs adultos passam correndo e gritando em direção à entrada da cidade. Voughan se apressa e segue os adultos de longe, sempre escondendo-se atrás de algo para não ser visto.

Próximo ao imenso rochedo da entrada da cidade, vindos de uma fenda que forma um imenso corredor que vem da ponte entre o continente e a ilha, surgem centenas de guerreiros orcs bárbaros portando espadas enormes, machados, alabardas e martelos de guerra.

Eles gritam de forma animalesca tal qual o grupo dos shamargs, que segue em sua direção.

Os dois grupos se encontram e param à alguns metros de distância entre eles.

Alguns berram xingamentos, outros apenas gritam em êxtase, mostram os dentes enquanto rosnam, os bárbaros erguem suas armas, enquanto os shamargs fazem questão de mostrar que lutam apenas com os punhos.

Sem qualquer diálogo um embate se inicia e os grupos colidem em uma explosão insana de violência.

Mesmo a couraça resistente dos shamargs cede aos poderosos golpes dos orcs, abrindo talhos por seus corpos, de onde jorra muito sangue.

Ainda sim, a força do povo guerreiro da ilha é superior, conseguindo igualar a batalha apenas com seus corpos desarmados.

Um único soco certeiro, por vezes, muda o resultado de uma luta.

Maxilares são triturados, costelas se partem e ossos se quebram ante os esmagadores golpes dos shamargs.

Com os olhos vidrados, Voughan assiste tudo com uma mistura de ansiedade, espanto e deslumbre.

Seus olhos procuram em meio à multidão até que encontra seu pai, Thorgol.

O poderoso guerreiro derrota diversos dos bárbaros, abrindo caminho por entre eles. Ao seu lado está um segundo shamarg, que repete o feito do pai de Voughan, parecendo ser ainda mais poderoso do que ele.

Do outro lado, um único orc, este imenso comparado com os demais, derruba dezenas de shamargs com seu machado gigante.

Sua barba e cabelos são brancos, compridos e são tão volumosos quanto são embaraçados, sua incrível musculatura é fora do comum. Suas presas inferiores pontiagudas se projetam para fora, como as de todos os demais, mas uma delas está quebrada na metade e na outra há uma pequena argola presa, em forma de piercing.

Com um único golpe ele derrota dois ou três inimigos de uma só vez e avança em direção aos dois shamargs mais poderosos.

O pai de Voughan é o primeiro a investir contra o enorme bárbaro.

O primeiro golpe do machado atinge seu ombro, vencendo a couraça e enterrando-se em seu corpo, causando-lhe um ferimento extremamente grave, mas não o suficiente para detê-lo.

Com um soco no abdômen, o bárbaro curva seu corpo de dor enquanto o inimigo tenta empurrá-lo com o ombro, tentando lhe derrubar no chão.

Os pés do orc pisam forte no solo, impedindo a queda e então ele desfere um segundo golpe, atingindo em cheio as costas de Thorgol com o machado. O sangue jorra pela cavidade do ferimento e também por sua boca, fazendo com que ele perca as forças e caia de joelhos.

Um único chute do bárbaro, atingindo-lhe a mandíbula, é o suficiente para terminar o serviço. Sob o olhar assustado de Voughan, Thorgol cai de costas no chão, já sem vida.

O segundo shamarg, este ainda mais forte do que o pai de Voughan, parte para cima do bárbaro, e um embate de gigantes tem início.

 

Algum tempo se passa e o local finalmente se torna calmo, após a morte de metade do exército de cada lado.

Os que sobraram estão caídos, alguns inconscientes, respirando com dificuldade, todos exaustos e extremamente feridos.

Alguns poucos conseguem se sentar e conversam entre si, com voz fraca e impossibilitados de se levantarem, devido aos danos.

No meio do cenário o enorme bárbaro, também ferido mas visivelmente menos que os demais, está sentado sobre uma pedra, fitando o campo de batalha.

Ele nota uma movimentação à alguns metros e percebe o jovem Voughan, agachado, tocando o rosto de seu pai em meio à um pilha de corpos.

— Você o conhecia? — diz a voz grave e um pouco rouca do bárbaro.

— Era o meu pai. — responde Voughan.

— Pode ficar orgulhoso, ele foi um oponente e tanto. Qual era o nome dele?

— Thorgol.

— Thorgol… Às vezes sinto um pesar por não saber os nomes dos guerreiros poderosos que eu mato. Graças à eles é que tudo se torna tão divertido.

O garoto se levanta e aproxima-se do bárbaro.

— E o seu nome, filho de Thorgol?

— Me chamo Voughan!

— Como filho dele você vai ser bem forte.

O bárbaro o observa por alguns instantes em silêncio, enquanto Voughan baixa a cabeça com uma expressão de decepção.

— Vou lhe contar um segredo, garoto. — diz o bárbaro. — Quando eu tinha a sua idade eu era franzino e não conseguia acompanhar os outros. Todos lutavam contra guerreiros poderosos e contra monstros e eu mal podia contra um goblin. Foi então que eu encontrei um cavaleiro que mostrou um caminho diferente. Me ensinou que pessoas que nascem fracas podem se esforçar e se tornar mais fortes com muito treino e dedicação.

— Treinar é para os fracos e eu não sou fraco. — retruca o garoto.

— Mas eu era! — responde o poderoso bárbaro, ficando pensativo. — E talvez ainda seja.

— Se você é fraco então porque meu pai perdeu pra você?

— Talvez eu tenha tido sorte. Deixa eu te mostrar algo. — diz enquanto puxa suas polainas de pêlos de animal, revelando uma tornozeleira de um metal escuro por baixo delas. — Está vendo? Isso foi presente do cavaleiro e é o que me traz boa sorte.

Em seus pulsos há braçadeiras, também cobertas de pêlos de animais que, ao serem afastadas, revelam braceletes semelhantes às tornozeleiras.

— São mágicos? — questiona Voughan, encucado.

— Eu acho que sim, pois me tornaram o que sou hoje.

— E o que elas fazem?

— Eu já disse. Trazem boa sorte.

— Só isso? Achei que aumentassem sua força ou algo assim.

— Claro que não. Aí seria trapaça. Além do mais meu machado já tem runas mágicas de aumento de força.

— Hum. Mas no machado pode?

— É claro que pode.

— E porque nos braceletes e tornozeleiras não?

O grandalhão fica estático por alguns instantes.

— Você faz perguntas demais para um shamarg.

— Eu sei. Isso é porque… — baixando a cabeça e adquirindo uma expressão de tristeza.

— Fale!

— Eu sou muito fraco e também sou muito burro. Como não posso ficar mais forte então reparei no que o meu irmão Ogrod faz pra ser mais inteligente. Tudo o que eu notei é que ele faz perguntas o tempo todo. Achei que se eu também fizesse isso pudesse ficar um pouco mais inteligente.

Levantando-se da pedra, o enorme bárbaro repousa o machado sobre seu ombro direito, enquanto encara o jovem.

— Acho que só pelo fato de você ter chegado à essa conclusão sozinho já mostra que você não é burro. Agora acho que você deveria se afastar enquanto nós adultos terminamos nosso trabalho.

— Vocês ainda vão lutar?

— Vamos sim. Mas agora não será entre nós.

— E então contra quem?

O bárbaro permanece mudo, o que dura cerca de dois minutos de absoluto silêncio.

Ao seu redor, os bárbaros e shamargs sobreviventes se erguem, preparando-se novamente para lutar.

Mais alguns instantes e um tremor pode ser sentido, rompendo o silêncio.

— Ele está chegando. — prossegue o bárbaro.

Da montanha próximo à entrada, as rochas parecem se mover. Pedras caem pelo tremor e uma gigantesca fenda surge na parede rochosa.

De dentro dela, um par de olhos surge da escuridão.

Sem saber do que se trata, Voughan dá um passo para trás, enquanto uma grotesca e gigantesca mão surge, apoiando-se na lateral da fenda.

 

— Valus! — completa o orc, encarando a enorme criatura que parece ter mais de cinquenta metros.

A pele do monstro é escura e repleta de cicatrizes, seus músculos são definidos mesmo sob a pele grossa e áspera, semelhante à uma casca de árvore. Como vestimenta utiliza uma espécie de tanga feita de várias peles de animais gigantes, amarradas de forma rústica, mas ainda sim mostrando uma certa mente racional da criatura.

— Ele é ainda maior do que eu esperava. — diz o bárbaro, espantado mas ao mesmo tempo feliz. — Já enfrentei gigantes antes, mas nunca um gigante Real.

No peito, o monstro carrega uma enorme cicatriz em forma de “xis”, possui uma barba e cabelos cinza escuro e fita o pequeno exército, composto de shamargs e orcs à sua frente, com um enorme sorriso, deixando exposto os dentes pontiagudos e amarelos.

Após um urro ensurdecedor, que faz até mesmo o chão tremer, a criatura se dirige aos seus oponentes.

— Que cheiro maravilhoso de sangue. — ressoa a voz grave e monstruosa, enquanto inspira com força, enchendo os pulmões. — Venham logo para que eu possa partir esses ossos e couraças.

Os shamargs e orcs se unem e correm na direção de Valus, como se o banho de sangue que ocorreu entre eles à pouco jamais tivesse ocorrido.

Alguns dos guerreiros mal chegam aos pés do gigante e são esmagados por golpes dos enormes punhos do monstro. Outros são golpeados e lançados à quase cem metros de distância. Os mais fortes conseguem golpear com seus punhos ou machados, causando certo desconforto à Valus, mas nada parece realmente feri-lo de verdade.

O maior dos orcs bárbaros, próximo à Voughan, faz menção de ir em direção a batalha, mas ouve a voz do garoto.

— Você também vai até lá para morrer?

Intrigado pela pergunta, o bárbaro se volta para o pequeno shamarg.

— Isso te parece uma coisa ruim, por acaso?

— Eu gosto de lutar, mas não quero morrer ainda, mesmo que seja em uma luta.

— O que está dizendo, garoto? — ajoelhando-se para ficar da altura de Voughan. — Morrer lutando é o ápice da vida de um guerreiro. Consegue imaginar uma luta tão difícil que você termine perdendo sua vida? Certamente quando isso acontecer será a melhor luta de todas.

— Mas se você continuar vivo vai poder lutar mais e mais.

O orc fica pensativo por alguns instantes.

— Não seria a mesma coisa. Eu prefiro lutar uma única vez, mas em uma batalha épica, do que lutar mil vezes em batalhas medianas. Talvez você realmente não seja um shamarg normal, Voughan. Você pensa diferente da maioria.

Ao ouvir essas palavras, o garoto abaixa a cabeça e parece ficar triste novamente.

— Mas isso não significa exatamente uma coisa ruim. — continua o bárbaro. — Talvez seja só o seu modo de pensar.

Ele olha para Valus, que continua exterminando orcs e shamargs sem piedade, sempre com uma expressão que acusa estar se divertindo com a matança.

— Me passou algo pela cabeça agora. Se você continuar vivendo e treinar, como eu lhe disse, um dia você será o mais forte. Isso faz todo o sentido.

Dessa vez as palavras chamam a atenção do garoto, mas de forma positiva.

O orc puxa suas braçadeiras, revelando os braceletes de metal. Em seguida faz o mesmo com as polainas, deixando as tornozeleiras de metal à mostra.

Com uma certa dificuldade, ele os remove, colocando-os suavemente no chão.

— Faz um bom tempo que não tiro isso. Quanta sorte será que terei sem elas?

— Vai lutar sem isso? Eles não te davam sorte? Não te deixavam mais forte?

— Eles já me deixaram forte o suficiente. Está na hora de passar à diante. Agora são seus. Treine muito e fique forte. Lute mas continue vivendo até se tornar o mais forte de todos, então volte aqui e acabe com o Valus. — Apontando para o gigante Real.

— Não vou precisar fazer isso se você derrotar ele agora.

O bárbaro apenas sorri, coloca seu machado apoiado no ombro e caminha na direção da criatura, que a essa altura já havia exterminado quase todos os guerreiros, como se soubesse que seria sua última marcha.

 

Um mês se passa.

Ogrod está caminhando pelo entorno da montanha que existe na entrada da cidade. Passa por algumas pedras até que encontra um campo aberto, escondido por entre a paisagem rochosa.

No local ele encontra um jovem shamarg erguendo uma grande pedra acima da cabeça, ele se abaixa e torna a levantar-se repetidas vezes, enquanto conta.

— Setenta e oito… Setenta e nove… Oitenta… Oitenta e um…

Chegando mais perto Ogrod percebe tratar-se de Voughan e então se aproxima.

— Treinando? Achei que shamargs não faziam isso. — diz ao irmão. — Então é aqui que você vem todos os dias. Para treinar.

— Oitenta e cinco… Oitenta e seis… E o que você tem a ver com isso? Oitenta e sete… Oitenta e oito…

— Absolutamente nada, irmãozinho. Só queria saber o que você estava fazendo. Me preocupo com você, está bem diferente desde que nosso pai morreu. E quando nossa mãe se foi, ao dar à luz ao pequeno Radagart, achei que você poderia acabar ficando mal com isso.

— Noventa e quatro… Noventa e cinco… Eu estou… muito bem… Noventa e seeeeeis… — Já perdendo as forças, mas ainda sim continuando com o exercício.

— É claro. Shamargs não se preocupam com essas coisas não é? Talvez eu seja o único que tenha sentido a morte deles.

— Noventa e oooito… Noventa e noooooove… Ceeeeeeeeeeeem! — jogando a pedra para o lado após o término e sentando-se em seguida, ofegante.

Um silêncio permanece por alguns instantes até que Voughan decide quebrar o gelo, após recuperar o fôlego.

— Você não é o único que sentiu algo. — ganhando a atenção de Ogrod. — Não sei se a gente sentiu da mesma forma. Eu não gostei de perder nosso pai, mas fiquei muito orgulhoso dele. Morreu lutando contra o bárbaro mais forte que já vi. Já com nossa mãe foi diferente, ela não era uma guerreira, apesar de ser tão durona quanto qualquer um daqui. Não tava preparado pra perder ela.

Ogrod sorri.

— De certa forma fico um pouco reconfortado em saber que não sou o único nesta ilha a ter sentimentos.

— Se contar isso pra alguém, eu te mato.

— Não se preocupe, ninguém irá saber que você tem sentimentos. — responde Ogrod, sorrindo.

— Não é disso que estou falando. Falo do meu treinamento. Só fracos treinam e se alguém souber disso vai ser uma droga. — diz enquanto se levanta, caminhando em direção à um ponto um pouco mais alto na montanha.

Ogrod o segue, alguns passos atrás.

Após alguns minutos caminhando, Voughan chega até uma pequena planície na metade da montanha. Algumas poucas plantas crescem em meio às pedras e há uma cruz de madeira fincada no chão.

— Um túmulo? — estranha Ogrod. — Porque está sozinho aqui? Não é costume shamarg fazer túmulos. Foi você que o enterrou?

— É de um conhecido.

— Porque não enterrou junto aos túmulos de nossos pais?

— Ele não era daqui. Não era um shamarg.

— Nossa mãe também não era.

— Ele matou nosso pai.

Ogrod fica pasmo ao ouvir, mas se contém.

— Este é o bárbaro de quem você falou? Porque fez um túmulo especial para ele?

— Porque sou fraco. — ele responde.

Um instante de silêncio se mantém enquanto Ogrod aguarda continuação da explicação, mas Voughan não diz mais nada.

— Nós realmente não somos iguais, Voughan. Não sei que tipo de amizade teve com esse bárbaro, mas eu jamais conseguiria perdoá-lo por matar nosso pai. Achei que tinha algo menos shamarg batendo no seu peito, mas pelo visto estou realmente sozinho nesta maldita ilha.

— Então porque não vai embora?

— Talvez eu vá assim que Radagart puder se virar sozinho. Fique aí com seu amigo bárbaro. — esbraveja Ogrod, enquanto desce montanha abaixo.

Voughan aperta os punhos e então olha para a palma de suas mãos.

— Você acha que um dia serei forte? — pergunta olhando para a lápide de madeira, como se esperasse uma resposta do fantasma do bárbaro. — Eu quero lutar contra gigantes, contra caras fortes, mas sou fraco. Esse treinamento vai fazer algum efeito?

Nenhuma resposta é ouvida.

— No fim das contas nem fiquei sabendo qual era o seu nome.

Olhando para baixo, Voughan observa, próximo a base da lápide, os braceletes e tornozeleiras de metal que pertenciam ao bárbaro.

— Você disse que era fraco, mas chegou tão longe. Você então tirou os braceletes e morreu em seguida… Ou sabia que ia morrer, por isso tirou os braceletes?

Voughan se abaixa tocando os artefatos, que estão no chão, com as pontas dos dedos.

— Se são mágicos não funcionam com shamargs, mas acho que eles te traziam boa sorte. Vamos ver até onde eles podem me levar.


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Notas finais do capítulo

Opiniões e críticas construtivas são bem vindas.