ALMARA: Ameaça na Ilha de Xibalba escrita por Xarkz


Capítulo 18
CAPÍTULO 17 | Celestiais


Notas iniciais do capítulo

Surge Belvedere, um bardo nobre que parece conhecer muito bem Eril. Qual será sua relação com ela?
Os céus parecem furiosos, mas uma boa alma decide ajudar o povo que perdeu seu lar com o ataque de Ákyros... Ou sua intenção seria outra?



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/710950/chapter/18

Cidade de Pea Nui, seis horas após o encontro com Ákyros na cidade vizinha, onde agora há apenas uma gigantesca cratera.

O povo da cidade de Phaedra, agora destruída, se aglomera, sem ter para onde ir, esperando serem acolhidos na nova cidade.

Os soldados, vestindo armaduras de bronze, auxiliam as pessoas com comida e abrigo, com a ajuda de Algar, que se solidariza com o sofrimento daquela gente, visto que também acabara de perder sua cidade natal.

— Isso é tão triste. — lamenta Eril.

— Nem me fale. Algar ficou bem sentido com tudo isso. Ele também perdeu tudo. — complementa Kore.

— Por hora vamos deixar ele ajudando essas pessoas. Isso vai fazer bem à ele. Enquanto isso, vamos procurar o prefeito da cidade, também quero fazer algo. Posso pedir ao meu irmão enviar soldados, comida e dinheiro.

— É verdade, às vezes esqueço que você é uma princesa.

— Voughan, você pode tomar conta da carruagem? — solicitando ao grandalhão.

— Não tem nada de interessante pra fazer aqui. — responde o shamarg, praticamente ignorando o pedido de Eril. — Gente triste não gosta de lutar.

— Bem, não sei como é esta cidade, podem haver ladrões. Se alguém tentar roubar nossa carruagem, você pode bater nele.

— Que seja. Vou dormir. — diz enquanto entra no veículo.

A maga e o monge se afastam, indo em direção ao centro da cidade.

— Acha que podem tentar roubar nossa carruagem? — pergunta Kore.

— Pessoas em desespero, que acabaram de perder tudo, podem fazer coisas desesperadas, sem falar que existem pessoas ruins que se aproveitam desse tipo de confusão para roubar até mesmo das pessoas que acabaram de passar por um desastre desses.

— Mas esta cidade parece tão calma. Não acho que existam bandidos desse tipo aqui.

— Também não acho, mas foi uma forma de impedir o Voughan de arranjar confusão, afinal, vamos ver o prefeito da cidade, não quero ele falando ou fazendo alguma besteira.

— Você está certa. — diz o monge, olhando fixamente para a maga. — Você é bem inteligente… e bonita.

O elogio chama a atenção de Eril, que volta seu olhar para Kore, deixando-o corado imediatamente.

— Nós raramente temos um tempo à sós. — inicia, envergonhado. — Já faz um bom tempo que eu queria dizer uma coisa mas não tive oportunidade. Estive pensando que você… que nós…

Um silêncio se segue após as palavras de Kore, enquanto ele reúne coragem para continuar. Porém, antes que pudesse prosseguir, uma música chama a atenção de ambos, principalmente de Eril.

— Esta música…

A garota aperta o passo, procurando de onde vinha a melodia.

Os ouvidos elficos conseguem identificar facilmente o som vindo de uma lira, mas para um humano ainda era difícil distinguir.

Por entre multidões, casas e becos eles correm até chegar em uma praça com um grande chafariz, construído ao redor de uma estátua monumental do rei de Pea Nui.

Aos pés do chafariz, um belo elfo de traços juvenis e delicados, dedilha suavemente uma lira prateada, de onde extrai uma melodia realmente cativante.

A garota se aproxima para ouvir, junto à uma enorme quantidade de pessoas que param suas vidas para ouvir o harmonioso som.

Um pouco a contragosto, Kore também aproxima-se, ficando ao lado da maga, ainda esperando o momento certo para falar.

— Esta era a música que minha mãe cantava para mim quando eu ainda era um bebê. — diz Eril, encantada e nostálgica. — Dizem que eu não deveria lembrar de nada dessa época, mas acho que essa música ficou muito gravada em minha mente. Me faz lembrar da minha mãe. — sorridente.

Ao terminar a música o povo aplaude, mas Eril faz algo mais. Ela corre em direção ao bardo, parando em sua frente.

Ao vê-la, ele abre um grande sorriso.

— Eril, meu amor! — diz o músico. — A quanto tempo!

— Tive saudades. — responde a garota, beijando-o nos lábios.

Boquiaberto, Kore fica sem entender o que acabou de presenciar.

Abrindo espaço por entre as pessoas, Eril se aproxima do monge, trazendo consigo o bardo e sua lira.

— Kore, quero que conheça Belvedere. — Apresentando o artista musical. — Meu noivo.

Pelo choque, ele hesita por alguns instantes, mas em seguida o saúda, apertando sua mão.

— Você tem um aperto de mão forte, garoto. — diz o elfo com um certo ar de arrogância, mas ainda sim simpático. — Certamente não é um artista.

— Sou um lutador. Um monge. Minhas mãos são como armas.

— Assustador e simplista. Enquanto você destrói, com suas mãos, eu crio, com as minhas.

— Cria o que? Você só toca essa harpa.

— Isto é uma lira. Harpas são muito maiores. — explica, enquanto afasta os longos cabelos prateados da frente do rosto. — E o que eu crio é: arte.

— Que seja. Eril nunca me falou que tinha um noivo.

— Ela não gosta muito de falar sobre sua vida pessoal para pessoas que não são próximas à ela.

— Somos bem próximos. — diz Kore, começando a ficar irritado. — Estamos à meses viajando juntos.

— Não precisa ficar nervoso. Somos noivos à quase três anos e ainda existem coisas que ela não me conta.

Abraçada no braço direito de Belvedere, Eril parece visivelmente apaixonada pelo elfo artista, o que deixa Kore desconfortável.

— Eu… Preciso ir. — diz o monge, afastando-se. — Vou ver se o Algar precisa da minha ajuda.

— Se precisarem, podem me chamar. — grita Eril para Kore, que já estava distante.

— Pode deixar. — responde, acenando com a mão, com um sorriso sem jeito. — Divirtam-se!

A maga e o bardo passeiam pela cidade, colocando os assuntos em dia, enquanto Kore senta-se em um banco de praça, após comprar uma fruta para comer.

Ele olha para o céu por alguns instantes e então dá alguns socos de leve na própria cabeça.

— Idiota! — diz para si. — Mas não tinha como eu saber. — dando uma mordida na fruta.

Novamente ele olha para o céu e percebe alguns pássaros voando em bando em uma certa direção. Um pouco mais distante, outro pássaro voa solitário, como se procurasse algo.

— Tem algo errado com aquele. — diz o monge, fazendo sombra sobre os olhos com a mão, devido ao Sol forte, para tentar enxergar melhor. — Aquilo é mesmo um pássaro?

A criatura alada parece ser maior que os demais pássaros e está voando mais baixo. Ela faz uma breve pausa no ar então dá um rasante, passando poucos metros acima da cabeça de Kore.

— Mas o que é isso? — impressionado.

Uma figura pousa atrás do banco da praça. Trata-se de um homem loiro de cabelos cacheados e porte atlético, vestindo algo semelhante à uma toga e, em suas costas, para o espanto de Kore, possui um par de asas brancas com pouco mais de seis metros de envergadura, que ele recolhe, deixando-as curvadas para baixo e ocupando menos espaço, facilitando para se locomover em terra.

Ao se virar, pode ser visto que ele porta uma lança.

— Finalmente o encontrei, Kore. — diz a figura alada.

— Mas o quê??? — espantado com o ser pouco convencional à sua frente. — Quem é você? Como sabe meu nome?

— Me chamo Araziel. Sua mestra me falou sobre você.

— A raposa velha? — achando cada vez mais estranho. — De onde ela conhece um anjo? Você é um anjo, certo?

— Sou do povo Angawatu mas, sim, anjo é como vocês nos chamam. Conheci sua mestra Lisica no vilarejo ao pé da montanha.

— Espera… — olhando para cima, tentando lembrar de algo. — Tenho a impressão de que já vi seu rosto em algum lugar.

— Bom, há uma estátua minha naquela cidade. Você certamente passou por lá.

— Aaaah! Claro! A estátua da fonte. Então era você?

— Eles acham que sou o anjo protetor deles. É uma história antiga.

— É bem raro ver um anjo por aqui. Porque não está lá naquela sua cidade nas nuvens?

— Fui expulso de Caelum, não posso retornar.

— O que você fez de tão terrível para ser expulso da cidade?

— Em Caelum somos devotos do deus da luz e existem regras bem rígidas. Não se pode fazer qualquer ato considerado impuro, como roubar, ferir, difamar, entre outras coisas.

Ouvindo atentamente, Kore apenas balança a cabeça, tentando assimilar tudo.

— E qual foi a regra que você quebrou?

O anjo olha para o lado, um pouco sem jeito e então o monge arregala os olhos, achando ter matado a charada.

— Ah! Não acredito! A Lisica te assediou e você cedeu?

— Ela é uma mulher incrível. — responde, tentando manter a compostura.

— Mas ela não tem jeito mesmo. Seduziu um anjo e o fez ser expulso de sua cidade natal. Que mulher inconsequente.

— Não fale assim da Lisica, por favor.

— E ainda defende ela?

— Se não fui capaz de conter meus instintos, a culpa é apenas minha e não dela. Não fui digno de permanecer em Caelum.

— Ok, então! Mas, enfim, o que você quer de mim? — questiona o monge, curioso.

— Preciso de ajuda e Lisica recomendou procurar por você e seus companheiros. Mas primeiro ela me disse para testá-lo. Ela quer ter certeza de que não será algo acima de sua capacidade.

— Pois bem, qual será o teste? Irá lutar comigo?

— Sim. Se você aceitar, claro.

— Sem problemas. Vamos para um lugar mais tranquilo.

Eles caminham pela cidade, em direção ao portão de entrada. O anjo percebe alguns cortes no corpo de Kore, com algumas feridas recentes.

— Esses ferimentos parecem fundos.

— Foi um capitão do império mundial. Tentei entrar em Phaedra enquanto ela era atacada por Ákyros e ele me deteve. Pelo menos no início.

— Conseguiu derrotá-lo?

O monge fica em silêncio.

— Vai conseguir lutar assim? — continua o anjo.

— Não precisa se preocupar com isso. Eu aguento.

Já fora da cidade, os dois já se colocam em posição de luta. O anjo gira sua lança acima da cabeça e então a aponta para seu adversário.

Eles estudam seus movimentos por alguns instantes e então avançam um em direção ao outro, rapidamente.

A estocada com a lança passa à poucos centímetros do peito de Kore, que desvia para o lado enquanto ataca com um chute lateral que atinge em cheio o oponente. Aproveitando o momento, o monge tenta um soco mas, apesar de parecer estar desprotegido, a asa do anjo se coloca na frente do ataque, defendendo-o.

O monge salta para trás, enquanto o anjo gira novamente sua lança, cravando-a com força no chão. Da ponta da arma, cravada no chão, é disparado um violento feixe de energia que avança pelo solo deixando uma fenda por onde passa.

— Essa técnica de novo? — diz Kore, lembrando de ter visto a mesma técnica sendo usada por Abgard e por Broderick.

Diferente das vezes anteriores, ele não desvia do ataque, indo na direção da energia.

Em sua mão direita ele concentra seu mahou, deixando seu punho em brasa e em seguida em chamas. Ele atinge a energia cortante com seu punho de fogo, causando uma pequena explosão e desfazendo o ataque do anjo.

Como resultado, sua mão fica com um pequeno corte.

— Você tinha velocidade suficiente para desviar. — estranha o anjo. — Somente um tolo teria essa reação. Além de gastar energia desnecessária ainda feriu sua mão.

— O que eu estou querendo dizer é que não preciso poupar energia e nem me importar em sair ferido. — responde, confiante. —  posso derrotar você facilmente.

— A soberba é um dos motivos pelo qual você poderia ser expulso da minha cidade natal. E também é o motivo pelo qual você vai perder essa luta.

— Felizmente não moro em Caelum. E também não vou perder essa luta.

Kore avança contra o inimigo novamente. O anjo arremessa sua lança contra ele, que desvia facilmente, continuando a correr de encontro ao adversário.

Sem sair do lugar ele aguarda até que o monge esteja próximo e então, uma de suas asas faz um movimento rápido e lança um feixe de energia pelo ar que atinge Kore em cheio, causando-lhe um corte no corpo e derrubando-o.

Imediatamente o anjo avança sobre ele, colocando uma de suas asas contra seu pescoço, ameaçando-o.

— Minhas asas são tão afiadas quanto a minha lança. Você achou que eu não poderia atacar de longe sem minha arma, mas minhas asas são minhas verdadeiras armas.

Afastando a asa do pescoço de Kore ele o ajuda a levantar-se, oferecendo-lhe a mão.

— Cometendo um erro amador como esse, vejo que não posso pedir sua ajuda.

— Tudo bem. — contenta-se o monge, incomodado com sua derrota. — Você precisa me ensinar como lançar essas rajadas de energia. Não sei nenhum ataque à distância.

— Você não pode aprender isso porque não é um ataque baseado em Mahou, é um ataque baseado em Ki.

— Como é? O que exatamente é este “Ki”?

— Para usar Mahou você precisa de concentração e disciplina, acha mesmo que os bárbaros, que usam esta mesma técnica minha, possuem disciplina?

— Agora que você falou, eles são bem idiotas, não teriam como usar Mahou.

— O Ki é uma energia puramente destrutiva que emana do corpo e sua utilização é instintiva. Se o Mahou nasce da razão, em contrapartida, o Ki nasce da emoção. Quanto mais focado e racional você fica, mais forte fica seu ataque com Mahou. Já para o Ki, é necessário entregar-se às emoções. Os bárbaros se focam na raiva, nós anjos nos focamos no amor.

— Espera aí. Eu entendi a parte dos bárbaros, eles lutam usando a raiva como combustível e acabam desenvolvendo o Ki instintivamente. Mas como alguém pode usar o amor para usar o Ki? Quando você usou aquele ataque em mim estava pensando na Lisica é?

— Não é nada disso. Amor e… isso que você está pensando, não têm nada a ver um com o outro. Amor tem a ver com valorizar a vida e isso nós anjos temos em mente o tempo todo.

— Então você está valorizando a vida enquanto lança um ataque que pode tirar a vida de alguém?

— Para salvar vidas inocentes às vezes precisamos sacrificar vidas corrompidas. Obviamente não foi o caso na nossa luta e é por isso que meu ataque foi mais fraco do que seria em uma luta onde eu estivesse protegendo alguém. De qualquer forma, é por este motivo que quem usa Mahou não pode usar Ki e quem usa Ki não pode usar Mahou. Um é o oposto do outro. Quanto maior sua razão, menor sua emoção e vice versa. Se você melhora um lado você diminui o outro.

— Mas em um momento em que eu estivesse irritado, não seria melhor usar o Ki?

— Deixa eu ver como posso te explicar isso… Imagine uma linha. No centro dela está o ponto zero, para a direita está a razão e para a esquerda está a emoção. Você até conseguiria ir da razão à emoção, mas teria de percorrer essa linha de uma ponta à outra. O problema é que quanto mais você treina, mais focado e racional você fica, então a linha da direita vai ficando maior e maior. Se você precisar ir até a outra extremidade teria de percorrer um caminho que fica cada vez maior. Além do mais, para poder usar Mahou, sua razão tem que sobrepor a emoção, da mesma forma, para usar Ki, a emoção precisa sobrepujar a razão. Se sua razão for treinada, será realmente difícil sua emoção prevalecer e, mesmo que prevaleça, seu Ki não será forte. Será que estou conseguindo me fazer entender?

— Acho que sim. Mas você parece muito racional e ainda sim usa Ki.

— Não é o ideal, mas é a forma como anjos guerreiros lutam. O que temos à nosso favor é que nosso amor é tão grande que ele supera em muito nossa razão.

— Já entendi. Chega de “amor” por enquanto. — satiriza o monge. — Agora preciso que me fale para quê precisava da minha ajuda.

O anjo recolhe sua lança e então os dois guerreiros sentam-se em algumas pedras.

— Você sabe como nascem os deuses menores, Kore? — inicia o anjo.

O monge puxa pela memória e então lembra-se. — Ah, sim! Já ouvi falar. Uma criatura poderosa… Vários adoradores… O que tem isso?

— Não se sabe ao certo o quão poderosa a criatura precisa ser, nem quantos adoradores são necessários, mas um homem está tentando alcançar a divindade neste exato momento. Ele parece uma boa pessoa, concede feitos considerados milagres e faz curas, porém, tudo é parte de seu plano. Eu o conheço bem, não há bondade em seu coração.

— E ele é poderoso?

— Muito! Em suma ele não é um guerreiro, é um mago de cura, mas isso não o torna menos perigoso.

— Um mago de cura? E o que ele poderia fazer contra mim? Me curar até a morte?

— Cura é basicamente a evolução do elemento luz. Apesar de poucos, existem ataques deste elemento.

— Não sei se quero participar dessa. Me parece um problema pequeno.

— Você não tem mais o benefício da escolha. Não vou te envolver nessa. Se não consegue nem me vencer, não terá a menor chance contra ele.

— Um duelo não é o mesmo que uma luta real. Nossa luta não teria terminado apenas por você apontar uma lâmina para o meu pescoço. Na verdade isso nem teria acontecido.

— Te julguei mal. Lutou com o corpo ferido, então achei que você não era do tipo que usava de desculpas para justificar uma derrota, mas é o que você está fazendo agora.

— Não é uma desculpa. Você venceu aquela luta. Mas venceu uma luta em um duelo amigável.

— Isso realmente não interessa mais, o caso é que não irei te envolver nessa história. Prometi à Lisica.

— Você é quem sabe. Isso não é problema meu, mesmo. Mas só por curiosidade, onde você encontra esse cara?

— Essa é a parte fácil, ele está vindo para esta cidade. Ele vai tentar conseguir mais adoradores, ajudando as pessoas refugiadas de Phaedra que perderam seu lar por causa do ataque de Ákyros.

— Você é realmente ingênuo. — afirma o monge, espantado com a facilidade com que o anjo deixou escapar a informação. — E se eu disse que não me interessava apenas para você me dizer onde está esse cara e eu ir atrás dele?

— Mas… Porque você faria isso?

— Para poder lutar com ele, oras.

O alado olha para Kore, assustado.

— Vocês humanos são criaturas mentirosas. Mentem com uma facilidade impressionante. Como podem fazer isso sem sentirem uma gota de culpa?

— Deve ser algum tipo de dom ou aprendemos a mentir por necessidade. Sobrevivência.

— Os angawatu preferem morrer à serem tão sujos.

— Falou o anjo que escorregou nas curvas da Lisica.

— Foi um momento de fraqueza.

— Que seja. Vamos lá procurar esse tal cara.

— Você não tem ideia. Ele não é apenas um anjo, ele é o que nós chamamos de Deva. Para vocês, criaturas terrestres, são conhecidos como Arcanjos.

— E…? — desdenha o monge.

— Arcanjos são os anjos mais poderosos e são as criaturas mais próximas do deus da luz.

— Se é assim, então porque esse arcanjo está aqui em baixo e não na sua cidade no céu?

— A cada era, um arcanjo é escolhido pelo deus da luz para se tornar seu avatar. Este receberá uma fração do grandioso poder de nosso deus e reinará Caelum até sua morte ou até o deus da luz assim o desejar. Essa escolha não é baseada no poder do arcanjo e sim em suas virtudes. O mais puro será o escolhido.

Nostálgico por falar de seu antigo lar, Araziel olha para o céu, como se procurasse sua cidade natal por entre as nuvens.

— Este arcanjo se chama Uriel e se achava o mais puro de todos, mesmo assim não foi o escolhido para ser o avatar. A decepção o mudou de alguma forma e ele se corrompeu. Ou talvez esse fosse o seu verdadeiro caráter, exteriorizado pela inveja que sentiu. Com a inveja veio a ira e com a ira veio o ódio. Aos poucos seu coração se perdia nas trevas até que não mais suportou e tentou depor o atual avatar através de calúnias e difamação, manipulou muitos de nós e, no final, quando percebeu que nada mais funcionou, tentou assassinar o avatar. Com seus poderes divinos, o avatar o derrotou facilmente e o baniu para sempre de Caelum. Agora ele quer se tornar uma divindade com seus próprios meios e derrotar o avatar. Ele quer dominar, à força, toda Caelum.

— Antes de bater nesse cara, quero conversar com ele. Espero que entenda, não posso sair batendo em alguém só porque você me disse que ele é mau. Ele pode estar realmente querendo ajudar.

— Em primeiro lugar: eu estou falando a verdade. Em segundo lugar: você não irá lutar com ele.

— Tente me impedir então.

— Já lhe derrotei uma vez e posso fazer de novo.

— Você não pode.

— Eu posso e vou. — diz o anjo, cruzando os braços.

Inesperadamente, em um movimento rápido, Araziel ataca com uma de suas asas afiadas. Kore, sem sequer sair do lugar, detêm o ataque segurando a ponta da asa, que se dirigia para seu peito, segurando-a pela parte com lâmina, recebendo um leve corte em sua mão.

— Não! Você não pode me deter.

 

Em outra parte da cidade, Eril e Belvedere acabam de sair de uma grande mansão, descendo uma enorme escadaria que dá para a rua.

— Foi muito gentil da sua parte doar tanto dinheiro para aquelas pessoas, meu amor. — diz Eril, sorridente. — O prefeito ficou impressionado.

— Não tanto como quando ouviu a sua proposta. Seu reino pode realmente fornecer tantos soldados?

— Será apenas um empréstimo. Além do mais, o reino de Galvass é, provavelmente, o maior reino de Almara.

— Sei bem disso e é magnífico. Só existe uma coisa mais magnífica que a grandeza do seu reino. — afastando uma mecha da franja do rosto de Eril com a ponta de seus dedos. — Sua beleza.

A maga fica corada.

Eis que em sua frente, uma figura imponente surge.

Cabelos azuis escorridos mas levemente enrolados nas pontas, chegando até a altura dos ombros, olhos num tom roxo muito claro e com uma espécie de capa feita de penas que se erguia formando ombreiras enormes projetadas para cima, ficando à uma altura acima de sua cabeça, e então descendo até o chão, cobrindo todo seu corpo. Nem mesmo seus pés podem ser vistos.

O homem de quase dois metros mas de feições suaves e delicadas se aproxima, junto à uma grande quantidade de soldados, todos utilizando togas brancas e armaduras prateadas por cima.

— Você deve ser Belvedere. — com uma voz suave e afinada em um ar gracioso. — Estive à sua procura.

— Quem gostaria? — responde o elfo, curioso em saber com quem está tratando.

— Perdoe meus modos. Deveria ter me apresentado primeiro. — fazendo um leve sinal de negação com a cabeça. — Me chamo Uriel. Sou o fundador e imperador da cidade de Heilige. É um prazer conhecê-lo!

— O prazer é todo meu! Esta é minha noiva Eril. — diz, olhando para a maga elfa.

— Eril! Eril do reino de Galvas? Parece ser meu dia de sorte.  Vim esperando encontrar um nobre e acabei encontrando dois.

— Parece que um nobre reconhece outro.

— O reino mais poderoso de Almara. Quase tão poderoso quanto o talento do senhor Belvedere com sua lira.

— Vejo que é um apreciador da boa música. — responde o noivo de Eril. — Imagino que também seja um músico. Vejo pela afinação da sua voz.

Um pouco incomodada, Eril vira o rosto e aproxima do ouvido de Belvedere, cochichando bem baixinho.

— Essa rasgação de seda está começando a me enjoar. — em  um tom que só os ouvidos elficos poderiam detectar.

— Parece que um músico reconhece outro, não é mesmo? Não quero lhes tomar muito tempo, então irei direto ao assunto. — Continua Uriel. — Vim até esta cidade no intuito de ajudar as pessoas que perderam seus lares em Phaedra. Acolherei quantas famílias puder e levarei para Heilige comigo. Lá poderão reconstruir suas vidas em paz. Mas ao vir para cá, descobri que aqui é o lar de um nobre filantropo e artista sem igual. Ficaria honrado em tê-lo comigo na comemoração que faremos para as famílias acolhidas. Garanto que sua música seria um acalento para estas almas sofridas. Obviamente a senhorita Eril também está convidada, sua presença me traria imensa alegria.

— Eu adoraria. — diz o bardo, para o espanto de Eril.

— Achei que iríamos ficar um pouco mais de tempo juntos.

— Eril, entenda que é uma situação única em que poderei utilizar o que mais amo para ajudar essas pessoas. Além do mais, será muito bom criar esse vínculo com outro nobre. Espero que venha comigo.

— Eu não tenho intenção de ir à outro lugar. Estou em uma missão importantíssima que envolve o mundo inteiro, ainda sim fiz uma pausa apenas para ficar um tempo com você.

— Se tem tempo para fazer essa pausa aqui, porque não ir até Heilige comigo? Estaremos juntos de qualquer forma.

— Você estará envolvido com negócios e com sua música. — diz Eril, claramente incomodada. — Não irei com você, obrigada!

 

A noite chega e nossos heróis são convidados a passarem a noite na enorme mansão de Belvedere.

Após um banquete requintado, onde Voughan devora quase tudo o que estava servido, cada um é levado até seu devido quarto de hóspedes, enquanto em um quarto de casal, Eril e seu noivo discutem.

— Porque você não entende? — diz Belvedere, de forma calma. — Uma situação destas não aparece todos os dias.

— Eu também não apareço todos os dias. — responde Eril, um pouco alterada. — Você deveria me dar prioridade. Quantos meses fazem que estamos longe um do outro e você parece não dar a mínima.

— Porque simplesmente não vem comigo? Não vou estar envolvido nos negócios e com a música o tempo todo. Teremos tempo para nós, como você quer.

— Realmente, como “eu” quero. Porque parece que não é o que “você” quer.

— Você sabe bem que não foi o que eu quis dizer.

— Você deveria ficar com o que você ama, que é a música. Talvez eu devesse ir embora.

Belvedere encara a elfa por alguns instantes, deixa transparecer um leve sorriso sedutor, aproxima-se de sua noiva, fitando-a a poucos centímetros de seu rosto.

— O que eu amo está bem à minha frente. — enquanto acaricia o rosto de Eril, que começa a se acalmar.

Quando a maga faz menção de dizer algo, Belvedere lhe dá um abraço e a beija enquanto, lentamente, a deita sobre a cama.

— Você não presta, sabia? — diz a elfa, novamente corada.

— Eu sei.

 

O dia amanhece e Kore está na praça, onde viu o anjo pela primeira vez.

— Aquele cara já deveria estar aqui. — diz para si, enquanto olha uma torre com um relógio. — Faltam vinte segundos pro horário marcado.

Passados os vinte segundos, exatamente, o anjo chega pelo céu, pousando ao lado de Kore.

— Achei que não iria chegar mais.

— Do que está falando? Cheguei no horário marcado.

— Poderia ter chegado um pouquinho antes.

— Porque eu marcaria neste horário se fosse chegar antes?

— Esquece. — achando se tratar de alguma maluquice dos anjos. — Enfim, vamos ao que interessa.

— Certo! Uriel já recrutou as famílias que irão com ele e irá embora da cidade daqui a pouco, levando todos com ele. Se deixarmos ele chegar em Heilige jamais conseguiremos derrotá-lo, pois há muitos soldados.

— Como eu te disse, antes de sair atacando, quero conversar com esse tal Uriel. Ainda não estou convencido de que é um cara que precise ser detido.

— Nem deveríamos estar fazendo isso. Você pode ser mais forte do que pareceu na nossa luta, mas não é o suficiente para vencer. Se não morrermos aqui, a Lisica certamente vai me matar por ter envolvido seu preciso pupilo nessa.

— Esquece a raposa velha e vamos até a saída esperar por esse cara.

 

Uma grande caravana se forma no centro da cidade, reunindo diversas famílias que perderam seus lares em Phaedra, todos sendo levados para Heilige, na promessa de que terão um novo lar onde poderão recomeçar suas vidas.

A excursão tem início, passando pelo enorme portão da cidade e avançando por uma longa estrada de chão batido.

O cenário é arenoso com diversas montanhas e rochas ao redor. Enormes carruagens carregam várias famílias e mantimentos, enquanto os soldados, à cavalo, os escoltam. Na frente, uma carruagem mais requintada e mais alta, local onde Uriel se encontra.

Escondidos em um pedaço do caminho, Kore e Araziel espreitam a chegada da caravana.

— Esse cara deve ser muito seguro de si para tomar a frente das carruagens. — afirma o monge. — Geralmente os líderes ficam no meio.

— Ele é poderoso o suficiente para isso. — informa o anjo. — Além do mais, isso mostra às pessoas que ele as está protegendo. Faz isso para ganhar a confiança deles.

— Sabe de uma coisa? Esse cara me parece cada vez menos suspeito. Ele parece realmente estar querendo ajudar essa gente. E se o plano dele for mesmo invadir sua cidadezinha no céu, ele pelo menos está fazendo algo bom em troca.

— Um ato de bondade, seja dissimulado ou não, jamais pode ser usado como aval para um ato cruel.

— Que seja, eles estão chegando.

A carruagem principal faz uma curva, ladeando uma rocha gigante no caminho e, logo a frente, está Kore, no meio da estrada.

— O que esse idiota está fazendo? — sussurra o anjo, ainda escondido.

A carruagem principal cessa seu avanço e os soldados dão um sinal para que as demais façam o mesmo.

Quatro soldados à cavalo e portando  lanças se aproximam do monge.

— O que quer, forasteiro? — pergunta um dos soldados.

— Preciso falar com Uriel. É importante.

— Saia do caminho, por favor. Ou teremos de usar a força.

— Melhor não tentarem a sorte, amigos.

— Acho que teremos de lhe dar um corretivo, jovem linguarudo.

Neste momento, uma cortina que cobria a parte mais alta da carruagem principal começa a correr, revelando o interior da mesma, onde podem ser vistos Uriel e Belvedere.

— Deixem que o garoto se aproxime. — ordena o arcanjo.

Os soldados se afastam, abrindo espaço e Kore chega mais perto da carruagem.

Ao se aproximar ele percebe a presença do noivo de Eril, junto à Uriel.

— Belvedere? O que está fazendo aí? Eril está com você?

— Ela não quis vir. Está em minha casa e deve estar dormindo ainda. E o que você faz aqui?

— Preciso falar com esse cara. — apontando para Uriel. — Preciso saber se o que me contaram é verdade.

— Tenha mais respeito. Ele é o soberano de Heilige.

— Tudo bem! — acena Uriel, impedindo que a discussão continue. — Não me importo com a forma que se dirige a mim. Temos um pouco de pressa, então, por favor, pergunte o que deseja saber de mim.

— Sei que fundou sua cidade e que é venerado como uma pessoa sagrada. Criou uma religião onde você é o salvador e você veio para esta cidade para recrutar mais adoradores, estou certo?

— Vim para salvar essas pobres almas, mas se esse é o seu ponto de vista, então: “sim”.

— Para que precisa de tantos adoradores? Por acaso seu plano é o de se tornar um deus menor para invadir Caelum?

O semblante de Uriel fica um pouco mais sério.

— Pelo jeito conheceu Araziel. Apesar de estar aqui por motivos parecidos, ele não parece concordar com meu modo de pensar.

— Ele me disse que anjos não podem mentir. Então responda minha pergunta.

— Tudo o que quero é recuperar o título que pertence a mim e me foi roubado. Araziel certamente deve ter distorcido os fatos.

Ainda escondido, o anjo enxerga Belvedere e então resolve se mostrar também, juntando-se a Kore.

— Você sabe que é a verdade, Uriel. — esbraveja o anjo. — E este homem ao seu lado é um nobre, estou certo? Irá usá-lo como sacrifício para alcançar seu objetivo.

— O QUÊ??? — se surpreende o monge. — Sacrifício?

— Sim! A energia que transforma um mortal em um deus menor vem das adorações, mas essa mesma energia pode ser conseguida em forma de sacrifícios. Um nobre sacrificado gera uma grande quantidade de energia e é isso que ele quer.

Belvedere olha, confuso, para Uriel.

— Isso é verdade? — pergunta o elfo.

Uriel não responde, apenas sinaliza com o olhar para seus soldados, que seguram Belvedere na cadeira, amarrando seus pés, mãos e o amordaçando.

— Isso é o suficiente para acreditar em mim? — pergunta Araziel.

— É, acho que sim. Mas ainda não sei se quero bater nesse cara, nem gosto do Belvedere mesmo.

— Vai deixar ele morrer só porque não gosta dele?

— O caminho ficaria livre para mim… Mas infelizmente não posso fazer isso. Mesmo sendo um idiota que eu odeio, não posso deixar que o sacrifiquem. Talvez ele nem queira sacrificar esse cara, ele é tão chato que nem vai gerar energia alguma. Me devolva ele logo ou terei que pegar à força, Uriel.

Os soldados à cavalo partem para cima, com suas lanças.

Kore desvia de uma estocada e ao mesmo tempo segura a lança, derrubando o soldado com um puxão. Antes que ele toque o chão, é recebido com um chute forte no estômago, sendo lançado para trás, desacordado.

Alçando voo, o anjo ataca pelo ar, acertando no rosto um soldado com a parte de trás de sua lança, derrubando-o do cavalo.

Os demais soldados continuam avançando à cavalo e vão sendo derrotados um à um, até que Uriel perde a paciência.

— Já chega! — diz em tom altivo, enquanto levanta-se de sua cadeira.

O manto de penas que cobre todo o corpo do arcanjo se move, revelando serem suas asas. Ele as abre totalmente, em um movimento gracioso e imponente. Elas são muito maiores que as de Araziel, tendo mais de dez metros de envergadura e, com um leve balançar, seu corpo é suspenso no ar e ele desce lentamente até o solo arenoso, levantando uma nuvem de poeira.

Suas vestes, até agora encobertas pelas asas, mostram ser semelhante à uma toga branca mas muito mais requintada, bordada com símbolos prateados e uma brilhante armadura dourada, composta de um peitoral, ombreiras, braceletes, cinto e caneleiras.

Um verdadeiro cavaleiro sagrado.

— Como sou piedoso darei uma última chance de irem embora, antes de aniquilá-los. — intimida o arcanjo.

— Parece que o “chefão” mostrou sua verdadeira face. — zomba Kore. — Isso facilita as coisas pra mim.

Em posição de luta ele cerra os punhos e corre na direção de Uriel. Ao se aproximar, a asa direita do arcanjo o ataca, como se tivesse vontade própria, tentando espetá-lo com a ponta, extremamente afiada.

Com um salto lateral, ele desvia da estocada e continua a avançar. A outra asa se movimenta pelo lado, formando um escudo. Kore golpeia a asa com força e ouve um som como se tivesse atingido algo metálico.

— As asas dos anjos são muito resistentes. — diz Araziel, voando por cima de Uriel. — Se quiser causar dano terá que acertar o corpo.

E mergulha como se fosse uma flecha, apontando sua arma para o corpo do oponente, porém, ao chegar perto, seu golpe com a lança parece atingir uma parede invisível.

— Droga! — vocifera, decepcionado.

Aproveitando a distração, Kore salta por cima da asa que formava o escudo e avança com ambos os punhos cerrados. Chamas cobrem suas mãos e ele dispara uma chuva de socos, todos atingindo a barreira invisível, próxima à Uriel.

Os golpes de fogo continuam freneticamente, mas parecem não surtir efeito.

Novamente uma das asas avança para atacar Kore e este desiste de golpear a barreira, saltando para longe.

Uriel parece se zangar, então a ponta de uma de suas asas começa a emitir um brilho branco. Ele a movimenta com rapidez e dela é lançado uma espécie de feixe de energia pelo ar atingindo a asa de Araziel, que voava à uma certa distância, causando um grande corte e fazendo com que ele despenque.

Caído no chão, ele segura a asa ferida, sentindo muita dor.

O arcanjo prepara um segundo ataque contra o anjo, que não percebe a situação.

Ao ver o perigo iminente, o monge corre na direção de Araziel enquanto Uriel lança seu ataque cortante novamente.

Com um empurrão, ele retira o anjo do caminho, impedindo que este receba o golpe.

O sangue jorra pelo ar e, ao olhar para trás, em choque, Kore avista seu próprio braço, amputado, caindo no chão.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Opiniões e críticas construtivas são bem vindas.