ALMARA: Ameaça na Ilha de Xibalba escrita por Xarkz


Capítulo 11
CAPÍTULO 10 | Kore (Capítulo Especial)


Notas iniciais do capítulo

CAPÍTULO ESPECIAL: Revelado o passado de Kore, seus traumas, amigos de infância e como seu treinamento começou.



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Cidade de Das Rad, treze anos atrás.

A cidade foi construída em meio à um local pedregoso. Entre as casas e em vários locais da cidade existem enormes pedras, algumas maiores do que as próprias casas, outras do tamanho de pessoas.

Neste município, povoado apenas por humanos, seus habitantes precisam se locomover até as cidades vizinhas para trabalhar, pela falta de empregos e até mesmo de terreno fértil para o plantio. Ainda sim o povo consegue se sustentar sem muitos problemas. Contudo, por ser uma cidade isolada, ficando atrás de grandes montanhas, se torna um alvo fácil para bandidos de todos os tipos.

Neste dia em especial, um terrível incidente está ocorrendo. Bandidos kemonos, que são criaturas humanóides com feições de animais, estão atacando a cidade, matando de formas brutais seus habitantes.

Um garoto, por volta de três anos, brincava fora de casa, quando é pego às pressas por uma senhora já de uma certa idade, olhos e cabelos negros, apesar de alguns aparentes fios brancos, que o leva correndo para dentro de casa.

— Vovó, porque ta todo mundo correndo?

— Não é nada, Kore, meu garotinho, mas eu preciso que me prometa uma coisa. Não importa o que você veja ou ouça, não grite nem fale nada até eu dizer que pode, tudo bem?

— Ta bom. — concorda, mesmo sem entender o motivo.

Ela se esconde atrás de uma cama alta, no quarto, abraçada com seu neto, tentando tapar os ouvidos da criança pois os sons vindos de fora da casa eram perturbadores. Gritos de desespero e berros dos invasores, que pareciam tomados pela fúria, tomam conta da cidade.

De repente, se ouve um estrondo. A porta da casa havia sido derrubada e um homem com feições de um urso adentra o quarto, avistando a senhora com seu neto.

O pequeno garoto faz menção de gritar, mas tapa a própria boca com as mãos.

— Leve tudo que quiser, mas não nos machuque. — implora a mulher.

— Esta maldita casa não tem nada de valor. — rosna o enorme homem-urso, enquanto avista a criança. — Mas pelo menos terei uma refeição. Me entregue o garoto.

No que a senhora larga a criança e coloca-se em sua frente, protegendo-o.

— Por favor, me mate, mas não toque na criança. — já aos prantos.

— Sua carne velha não me interessa, mas esta criança deve ser saborosa.

O homem-urso investe contra a criança, a senhora tenta protegê-lo mas é atingida por um golpe de sua garra, abrindo-lhe um enorme corte no abdômen e cai no chão.

A criança está encurralada, sem ter para onde correr, mas sua avó, mesmo ferida, se agarra à perna do invasor.

Ele rosna, irritado, então agarra a mulher pelos cabelos, com uma das mãos, erguendo-a no ar, lhe dando uma feroz mordida no pescoço, mastigando, espalhando muito sangue e em seguida cuspindo um pedaço de carne que arrancara. A mulher morre em frente aos olhos aterrorizados de seu neto.

Seu corpo é lançado para o lado feito lixo e ele volta novamente sua atenção para a criança.

Ao chegar bem perto, enquanto a criança se encolhe de medo, chorando, algo pontiagudo atravessa do homem-urso pelas costas, saindo em seu abdômen e ele urra de dor.

O objeto é removido e revelando um homem de certa idade, cabelo grisalho comprido, preso por um coque quase no topo da cabeça e olhos negros, vestido de samurai e com uma espada coberta pelo sangue do invasor.

Apesar de ferido, o assassino investe na direção do samurai, tentando lhe atingir com as garras, mas estas são cortadas por dois golpes certeiros de espada, do samurai. Ele se prepara e, com  um terceiro golpe, abre um corte na diagonal, no tórax do animal, que cambaleia por dois passos e então cai, já sem vida.

O samurai, cabisbaixo, se aproxima do corpo da mulher, assassinada pelo invasor e se ajoelha.

— Perdão! Perdão por não chegar à tempo.

O pequeno Kore, que ainda estava praticamente em transe, pelo medo, parece acordar e corre na direção do samurai.

— VOVÔ! VOVÔ! — abraçando-o

— Lamento que você tenha que ver isso, meu neto.

Um dia de trevas para a cidade de Das Rad.

Assim como a vida daquela senhora, muitas outras foram ceifadas pelos invasores kemono, que roubaram diversos pertences e foram embora.




Os anos passam e o pequeno Kore já tem sete anos.

Um sino toca, indicando o final da aula.

Junto com Kore, uma garota de mesma idade, o acompanha. É bem magra, pele muito branca, com algumas sardas no rosto, cabelos negros bem lisos e olhos castanhos claro, quase pendendo para um tom vermelho.

Os dois conversam e riem juntos enquanto caminham para um local isolado.

A garota retira de sua mochila um par de luvas de cor preta e sem os dedos, vestindo-as, enquanto Kore utiliza duas bandagens, enfaixando ambas as mãos.

Eles se afastam um do outro e colocam-se em posição de luta, até que começam à trocar golpes.

Após alguns minutos de luta, ambos estão cansados e com alguns poucos ferimentos, mas nada sério.

Os dois riem e cada um segue para a sua própria casa, despedindo-se.

Ao chegar em casa, Kore tenta disfarçar o olho roxo, causado por um golpe de sua amiga, colocando a franja na frente. Ele entra em casa sem fazer barulho, mas é interceptado por um homem vestindo um kimono longo. Ele possui cabelos castanho claro, olhos verdes, e cavanhaque.

— O… Olá, papai! — cumprimenta o garoto, com um sorriso nervoso.

O homem afasta a franja de seu filho e percebe o olho roxo.

— Esteve lutando com a Aldrah novamente, não é? — com um tom de raiva

— É que…

— Eu já lhe disse que não deve bater em mulheres, não disse?

— Mas papai, ela também é lutadora, só lutamos de leve.

— NÃO ME INTERESSA! — grita, já puxando uma espada de bambu. — Da última vez eu lhe avisei que seria a última. Ainda sim você me desobedeceu.

— Não é justo, a mamãe também luta.

— Vou te ensinar o que é justo.

Com muita raiva, o homem começa a espancar seu filho com a espada de bambu, batendo com violência. O garoto se encolhe, tentando se defender com os braços e pernas e os golpes continuam por muito tempo.

Enquanto Kore apanha, se pode ouvir uma voz ao fundo.

— Vai acabar matando seu filho, Chuck.

A voz é do avô de Kore, agora com seus cabelos ainda mais grisalhos, mas agora soltos, chegando um pouco abaixo da altura dos ombros. Também utiliza um kimono de samurai.

— Ele precisa aprender uma lição, Kingi. Este garoto me desobedeceu.

— De qualquer forma, está sendo duro demais.

O homem ignora os conselhos e continua à bater, até que Kingi detêm a espada de bambu, segurando-a com a mão.

— Já chega.

O garoto treme no chão, assustado e machucado pelos golpes por todo o corpo.

Seu pai, ainda irritado, se afasta, enquanto Kingi tenta confortar seu neto.

— Você está bem, Kore?

— Porque ele faz essas coisas? — responde, quase chorando. — A mamãe é samurai e tem tantas mulheres que lutam.

— Na nossa cultura existe essa ideia antiga de que apenas homens podem ser samurais e seu pai vive pelo antigo código samurai… Apesar de ele mesmo não ser um. Sua mãe assumiu um alto risco, quando decidiu brandir uma katana. Na época, isso foi realmente um choque.

— Mas os tempos mudaram, hoje existem mulheres samurais também. Como ele não pode aceitar isso se a mamãe é uma.

— Seu pai é uma pessoa difícil. Não tente usar a razão com ele, não vai adiantar.

— Mas o que eu faço? Eu adoro lutar com a Aldrah. Eu não estava batendo nela, estávamos lutando, como amigos.

— Terá de fazer uma escolha. Mentir, que é o caminho da desonra, ou aguentar as consequências, como um verdadeiro guerreiro.

 

Alguns dias se passam, Aldrah e Kore passeiam pela cidade.

— Quando a sua mãe volta da missão, Kore?

— Já disse que não é missão. Ela agora trabalha com o papai. Ela foi fazer negócios com as cidades vizinhas, é que ela sabe falar melhor com pessoas, então ela vende e meu pai gerencia. Ontem meu avô foi ajudar ela.

— Então você ta sozinho com seu pai? Que medo.

— É, por isso que não podemos lutar. Ele já me bateu duas vezes, se não fosse meu avô, acho que ele me matava.

— Que chato. Quero lutar. Não tem mais ninguém nessa cidade que lute.

— Eu também. Meus pais queriam que eu virasse samurai, mas eu não quis.

— Eu sei, já vi eles te ensinando. Você até que é bom com a espada.

— Valeu!

— Mas na luta, eu acabo com você fácil, fácil.

— Há, há! Desde quando? Eu sempre ganho.

— Da última vez só paramos porque você desistiu.

— Desisti nada, foi você que desistiu.

— Quer tirar a prova?

O corpo de Kore estremesse por um instante e ele sua frio.

— E então? Ta com medo?

— É claro que não.

— Então vem! — diz Aldrah, puxando Kore pela mão, o levando para o local isolado, onde sempre lutam.

Novamente o garoto coloca as ataduras nas mãos e Aldrah coloca as luvas negras sem os dedos.

Eles fazem uma reverência e então começam à lutar.

Kore parece fazer um esforço enorme para proteger o rosto, o que acaba fazendo com que leve diversos golpes no corpo.

Em um instante de descuido, ele tenta golpear Aldrah, mas no último instante, seu punho parece frear e ele mal toca seu rosto. Kore sente-se estranho por congelar e sua frio novamente.

Aldrah estranha, mas revida, golpeando-o no corpo com um soco.

A garota salta e tenta acertar um chute. Kore está nervoso mas balança a cabeça, voltando à si, desvia do chute, girando para o lado e então golpeia Aldrah com um chute do lado cabeça, fazendo com que a menina caia no chão, sangrando um pouco.

Ela fica atordoada com a mão sobre o ferimento e Kore corre para socorrer.

— Ta tudo bem?

— Ta sim, só cortou um pouco. Foi um bom chute… De sorte, é claro.

Kore tira uma das ataduras das mãos e coloca na cabeça da menina, estancando o sangramento.

— Daqui à pouco eu já estou bem, não foi nada de mais.

— Eu sei, você é bem cabeça dura mesmo. Só não quero que me suje com seu sangue.

— Ora seu…

Aldrah da um soco no ombro do amigo e em seguida começam à rir.

No caminho para casa Kore observa seu reflexo na água de um bebedouro para cavalos. Não sofreu nenhum arranhão no rosto que pudesse denunciá-lo.

Chegando em casa, o garoto atravessa a sala para chegar ao seu quarto, onde guarda suas coisas e então deita na cama para descansar.

Algum tempo depois ouve o som da porta, seu pai acabara de chegar.

— Kore! — chama Chuck, em um tom seco.

O garoto se levanta e segue para a sala, onde seu pai o aguarda.

— Me diga, você esteve lutando com aquela garotinha novamente?

O corpo de Kore congela, ele sua frio e sua expressão praticamente o entrega.

— Por… porque pergunta isso?

Como ele poderia saber? Pensava o garoto, não havia marcas visíveis em seu corpo.

Seu pai o puxa pelo braço e suspende a manga de sua camisa, revelando alguns pequenos hematomas.

— LUTOU!? — Pergunta novamente, já gritando.

Kore fica mudo.

Chuck retira de seu bolso a atadura ensanguentada, que Kore utilizara no ferimento de Aldrah.

— Eu estava na casa dos pais de Aldrah quando ela chegou com isso. FOI VOCÊ!?

O garoto treme e mal consegue falar, mas lembra-se das palavras de seu avô.

Kore então faz sua escolha. Ele aperta os punhos, fica com uma expressão séria, apesar dos olhos lacrimejando, e responde.

— Sim! Nós lutamos e fui eu quem machucou a Aldrah.

Os olhos de seu pai se enchem de ódio, uma veia salta em sua cabeça e sua expressão se torna assustadora, quase monstruosa. Chuck puxa sua espada de bambu e acerta um primeiro golpe na cabeça do garoto, que sangra no mesmo local onde Aldrah sangrara anteriormente. Mas foi apenas o começo.

Tomado por uma raiva mortal, Chuck começa a espancar seu próprio filho com muita força.

— SEU MALDITO! — berra, enquanto continua batendo. — MALDITOOOO!

Cada golpe deixa uma marca forte no corpo do pequeno garoto, que chora, pedindo por socorro, mas ninguém iria socorrê-lo desta vez.

— JAMAIS SE LEVANTA A MÃO PARA UMA MULHER. VOCÊ NÃO APRENDEU NADA COM A MORTE DA SUA AVÓ?

Neste momento, como um raio, as palavras de seu pai o atingem com mais força do que os golpes da espada de bambu.

Ele relembra de uma cena em que atinge um soco no abdômen de Aldrah, durante a luta. Em seguida, lembra da cena do homem-urso rasgando o abdômen de sua avó. As duas cenas, então, lentamente vão se sobrepondo em sua mente e ele chora ainda mais, mas desta vez em silêncio. Ele se encolhe, olhando para o nada, enquanto as lágrimas escorrem sem parar, ao mesmo tempo em que é golpeado de novo e de novo.

Após tantos golpes, a espada de bambu acaba quebrando, o que faz com que Chuck, ofegante, pare de bater e caia sentado, olhando para o chão.

Após sua respiração voltar ao normal, ele olha para frente e vê seu filho no chão, com diversos hematomas pelo corpo e um pouco de sangue sob sua cabeça.

O espanto em seu rosto é visível, bem como seu arrependimento.

— O que eu fiz? — sussurra para si.

Apesar da surra, Kore se recupera em algumas semanas, após ser medicado por alguns herbalistas locais.

Durante alguns dias, Chuck não dirige sequer uma palavra para Kore e a recíproca é verdadeira. Tornando o clima dentro de casa funesto.

Certo dia, Kore volta da aula ao lado de Aldrah, ela ri e saltita ao redor do garoto que mal esboça um sorriso no canto da boca, até que ela se irrita.

— Ah, qual é? Quanto tempo você ainda vai ficar de cara fechada?

 

Silêncio.

 

— Eu estou falando com você. Vai me ignorar também? Não sou seu pai.

— Desculpe.

A garota da um tapa no rosto de Kore.

— Acorda, esse não é você. Eu sei que foi terrível o que você passou, mas não pode ficar assim pra sempre.

Kore olha para o chão, sem muita expressão, até que vê algumas gotas caírem, próximas aos pés de Aldrah.

Ao voltar sua atenção para ela, percebe que a garota está chorando.

— A culpa foi minha não é? — pergunta Aldrah, em meio às lágrimas. — Eu te fiz lutar aquele dia. Se não fosse por mim, nada disso tinha acontecido.

A garota abraça Kore com força.

— Me desculpa! — exclama a mocinha.

Kore abraça a garota de volta por alguns instantes e então a empurra, delicadamente para trás.

— Eu também tenho que pedir desculpas. — diz Kore.

— Pelo meu machucado na cabeça? Aquilo não foi nada.

— Não! Porque, de tanto eu te bater, você ficou com essa cara feia. — diz o garoto, apontando para o rosto de Aldrah, enquanto sorri.

A expressão da garota logo muda para raiva e ela responde com um soco no ombro de Kore.

Ela limpa as lágrimas e volta à sorrir.

— Assim ta melhor. — diz a menina. — Prefiro você assim.

— De qualquer forma, é uma pena que a gente não vai mais poder lutar. Ainda mais agora que vou pro monastério.

— Ah, é verdade. Você faz oito anos amanhã.

— Sim. Na verdade, uma amiga da minha mãe vai vir me buscar. Vou treinar com ela por mais um ano, aí sim irei para o monastério.

— Que bom que desistiram de te transformar em samurai. Ser monge é muito mais legal. — diz Aldrah, enquanto soca o ar.

Uma voz, ao longe, chama por Kore. É sua mãe, chamando-o da porta de sua casa. Ela Tem cabelo negro, liso e comprido, com uma mecha de franja em cada lado do rosto, olhos pretos levemente puxados e está vestindo roupas normais de aldeã, porém, com uma katana presa à cintura.

— Venha logo. — diz, com um sorriso no rosto. — Precisamos arrumar suas coisas para amanhã.

— To indo! — responde animado, enquanto volta-se para Aldrah. — Vai vir se despedir amanhã?

— É claro. Não vá embora antes de eu chegar.

— Combinado. — responde, enquanto se despedem, tocando o punho um do outro com um soco de leve.

O garoto segue para sua casa e, ao entrar, depara-se com seu pai. Ele encara Kore por alguns instantes e então se ajoelha, ficando na altura de seu filho.

— Antes de você ir, tenho algo à lhe dizer.

O menino se surpreende pois, desde a surra, seu pai não lhe dirigia a palavra.

— Algumas vezes eu sou rígido para lhe ensinar algo, porque é assim que tem que ser. — continua o pai. — Mas, outras vezes, eu acabo passando dos limites e cometo erros. Você também vai cometer erros como eu e, muitas vezes, seus erros vão atingir as pessoas que você ama e você terá de lidar com isso. Quando você erra e seu erro prejudica alguém que você ama, isso não significa que você deixou de amar aquela pessoa. O que você tem que fazer é repará-lo. E se não for possível reparar, faça o possível para errar menos e acertar mais, principalmente com essa pessoa que você magoou. E… bem… acho que é isso.

Chuck se levanta, caminha até o centro da sala e senta-se em sua poltrona.

Ele definitivamente não era bom nisso, mas Kore entendeu que foi a forma de seu pai pedir desculpas. Desculpas estas que foram aceitas de coração.

Com a visão periférica, o garoto percebe algo vindo em sua direção e, quando se vira, percebe o punho de sua mãe, indo em sua direção.

Ele desloca a cabeça um pouco para o lado e detêm o soco com o ante-braço. Obviamente foi um ataque de brincadeira, visto que Kore jamais seria capaz de perceber um golpe de sua mãe e defender à tempo.

Ela sorri.

— Então amanhã é o grande dia. Meu garotinho irá se tornar um guerreiro.

— É uma pena, Tali. — se intromete Chuck. — Ele teria sido um ótimo samurai.

— Ele deve ser o que o coração dele mandar.

Tali, então, coloca a mão espalmada para frente, pedindo para que Kore dê um soco. O garoto anima-se, coloca-se em posição, porém, parece congelar.

Ele esforça-se para lançar o golpe, mas seu corpo não obedece e ele começa à suar frio, enquanto seus olhos começam à se encher de lágrimas.

Sua mãe percebe e imediatamente se ajoelha, colocando as mãos sobre os ombros de seu filho.

— O que foi, Kore? Aconteceu alguma coisa.

O garoto ainda não entende exatamente o que aconteceu, mas prefere desviar o assunto.

— Ah, desculpa! Acho que fiquei emocionado. É um sonho que se realiza.

Do fundo da sala, o avô Kingi observa e parece ter percebido o problema mas prefere não interferir.

Após uma noite calma de descanso, o Sol desponta no horizonte, sinalizando o amanhecer.

Chuck, sua esposa Tali, o avô Kingi e o garoto Kore, aguardam em frente à casa, quando uma figura surge diante deles.

Uma mulher de cabelos prateados, olhos amarelos com pupila em forma de fenda e utilizando pouca roupa. Seus enormes pés e mãos evidenciam sua natureza não humana, bem como suas orelhas, semelhantes à dos elfos, mas um tando caídas.

Ao ver a família reunida, imediatamente larga sua sacola no chão e corre em direção à Chuck, abraçando-o e o erguendo no ar.

— Ah, a quanto tempo não nos vemos. — diz a figura.

Uma lâmina se aproxima do pescoço da recém chegada. Trata-se da espada de Tali, que não parece muito contente com um abraço tão caloroso.

— Já pode soltá-lo, Lisica. — diz Tali, entre os dentes.

— Ok, ok! Há, há, há, há! — solta Chuck no chão, ao mesmo tempo que ergue as mãos para cima, em rendição.

— Este é meu filho Kore. Por favor cuide dele… E nada de assanhamento.

— Não se preocupe, ele ainda é muito novinho. Quem sabe daqui à alguns…

Antes mesmo da conclusão da frase, Tali lança um olhar assassino, que consegue apavorar Lisica.

— Há, há, há, há! Brincadeirinha! — disfarça, suando frio.

A mulher se abaixa, ficando acocorada próximo à Kore.

— E então rapazinho, pronto para se tornar um grande guerreiro?

O garoto parece estranhar um pouco, pelo fato daquela mulher não ser humana, e da um passo para trás.

Ao dar o passo, acaba encostando as costas em algo, ele olha para cima e percebe que é seu avô, Kingi. Ele se abaixa e fala em seu ouvido.

— Não se preocupe, ela não é uma kemono. A raça dela é tulkan. — sussurrando baixo, para que os demais não possam ouvir.

Mesmo falando baixo, a orelha de Lisica balança, captando a conversa.

Uma pequena figura se aproxima, correndo, com uma caixa na mão. É Aldrah.

— Hei! Não ia embora antes de eu chegar, não é?

— Claro que não. — responde o garoto.

— Tenho um presente de despedida. — diz Aldrah, entregando a caixa.

O garoto remove a tampa, revelando um par de braceletes metálicos e um par de luvas de cor preta e sem os dedos.

— Esses braceletes são muito resistentes, pode segurar golpes de espadas e lanças. Vai precisar. As luvas, eu mesmo fiz pra você.

— Que legal! Obrigado, Aldrah. — diz o garoto, com um sorriso no rosto. — Mas acho que são muito grandes pra mim.

— É claro. Não é pra você usar agora, é pra quando for adulto e estiver bem forte.

— Ta bom. Só vou usar quando sentir que estou forte.

Eles se abraçam, enquanto seus pais observam, contentes.

Kingi aproveita a distração para falar com Lisica. Ele se aproxima, sussurrando algo em seu ouvido.

Lisica apenas sinaliza que entendeu, com a cabeça.




Após um dia e meio de viagem, Lisica e Kore chegam ao seu destino.

O garoto estranha, em primeiro momento, por se tratar de uma cabana no meio do nada, nas montanhas, mas logo se instala, confortavelmente.

No amanhecer do segundo dia, Lisica leva o garoto para fora para um primeiro treino.

— Antes de qualquer coisa, precisamos resolver um certo problema que seu avô me disse. — inicia a mestra, colocando a mão espalmada para frente, na direção de Kore. — Quero que dê o seu melhor soco.

O garoto se prepara e, mais uma vez, congela. Não consegue golpear a mão de sua mestra.

— Como eu temia. Você parece ter ficado traumatizado e não consegue lutar contra mulheres. A surra de seu pai, sozinha, não teria feito isso. Segundo Kingi, ele acha que a morte da sua avó tenha alguma coisa à ver com isso.

— Não me fale disso, por favor. — responde o pequenino. — Me lembro muito pouco, acho que era muito novo, mas sei que foi tudo culpa daqueles kemonos. Eles deviam todos morrer.

— Tem coisas que ficam gravadas no subconsciente. Mesmo que você não lembre, sua mente sabe e seu corpo reage à isso. Mas temo que se você não superar isso, não vou poder te treinar.

— Como eu faço pra me curar?

— Já descobrimos o motivo do seu problema, então agora você só precisa de força de vontade.

Inesperadamente, Lisica chuta o garoto, com força, no corpo, lançando-o longe.

Ele cai no chão, se encolhendo de dor e cospe sangue.

— Levante-se. — ordena a mestra.

O garoto se debate no chão, mal conseguindo respirar ou falar.

Após conseguir recuperar o fôlego, ele olha desesperado e com raiva, para Lisica.

— Porque… fez isso?

— Pra colocar um pouco de juízo na sua cabeça. Vou continuar te batendo se você não me atacar.

O garoto finalmente consegue se levantar e parte para cima de sua mestra, novamente congelando no último instante e, mais uma vez, recebendo um golpe, desta vez um soco no rosto.

Lisica não pega leve, golpeando o garoto com força.

— Isso… não está ajudando. — reclama Kore. — Só está me machucando.

— Se não pode lidar com a dor, então está no caminho errado. Acha que os treinamentos no monastério serão brincadeira? Seu corpo será colocado à prova, tendo de aguentar as mais diversas situações. Dor, frio, calor, cansaço. Será uma verdadeira tortura. Se acha que não aguenta, pode voltar correndo para seus pais.

Kore pensa um pouco, mas está determinado. Ele torna à atacar, sempre sem resultado, e é golpeado como punição.

Após um dia inteiro, sem nenhum resultado satisfatório, ele descansa.

Dia após dia, a surra se repete. Kore congela e não consegue atacar.

O garoto está exausto e, enquanto toma fôlego, olha para os enormes pés de sua mestra. Aos poucos sua expressão vai se tornando de raiva e ela percebe.

— Porque está olhando para os meus pés? Está com raiva deles porque estou te batendo com eles? Ou é porque eles te lembram dos kemonos?

Visivelmente os pés de Lisica lembram um pouco os pés de alguns animais, como coelhos ou gatos.

— Aproveite e use essa raiva contra mim. Imagine que sou um kemono.

— Eu já tentei isso. Não adianta. Acho que mesmo que fosse uma mulher kemono de verdade não daria resultado.

— Nesse caso. Acho que vou ter que te matar.

Ela não faria isso, pensa Kore, ou faria?

Lisica estica o braço para lado enquanto se concentra. Aos poucos, seu membro vai mudando de colocação e textura, até que se torna semelhante à um galho de árvore. Ela aponta o braço transformado na direção do garoto e ele então se estica rapidamente, tornando-se algo semelhante à uma raiz, que avança na direção de Kore com a sua ponta, que parece pontiaguda.

Por sorte, Kore acaba desviando do ataque certeiro, que lhe causa um corte na lateral do corpo. A raiz atinge o chão, atrás do garoto, abrindo uma cratera.

Se o tivesse atingido, a morte seria certa e ele entra em desespero.

— VOCÊ QUER MESMO ME MATAR?

— Foi o que eu disse, não? — responde, com naturalidade.

Sem ter o que fazer, ele avança para cima de sua mestra, em desespero.

Eu preciso acertar ela. — pensa o garoto. — Ou essa louca vai mesmo me matar.

Mais uma vez, congela.

Os ataques da mulher dos olhos felinos se repetem, Kore desvia quase que por sorte, passando perto da morte certa, porém, ao tentar golpear sua mestra, seu corpo se nega de novo e de novo.

Lisica fica decepcionada.

— Parece que nem isso foi o suficiente. Mas imaginei que não daria certo. Para isso, trouxe uma surpresa pra você. — Ela se volta para a casa e grita. — PODE VIR AGORA!. — chamando alguém.

De dentro da casa, a pequena Aldrah surge, sorridente.

— Oiiii! — saúda a garota, abanando para o amigo.

Ela faz menção de ir na direção de Kore, mas é barrada por Lisica.

— Kore, se você não é capaz de me atacar, mesmo sua vida estando em perigo, vamos ver se isso muda quando eu colocar em risco a vida de sua amiga.

— O que? — estranha Aldrah. — Do que está falando?

— Eu quis dizer que, se seu amiguinho não conseguir me atingir, vou ter de matar você, menininha.

— Ta de brincadeira? — indaga Kore, em pânico. — Não pode fazer isso.

— Hei! Ela não ta falando sério, né?

Um movimento com as mãos e uma raiz sai do chão, prendendo o pé de Aldrah.

— Me ataque logo, garoto.

Em desespero, o garoto se lança contra sua mestra e, ao chegar perto, ele fecha os olhos e tenta golpeá-la, mas mesmo assim não consegue.

Lisica o empurra para longe.

— Ah! — suspira a mulher de olhos de gato. — Eu tentei ajudar.

Novamente o braço transformado se estica em forma de raíz e avança contra a menina, lhe atingindo em cheio e a arrastando para longe, enquanto o sangue jorra.

O olhos, incrédulos, de Kore, lacrimejam, e ele se lança novamente contra sua mestra.

— SEU MONSTROOOO! — berra, com muito ódio, enquanto prepara seu ataque.

Mais uma vez, mesmo explodindo de ódio, seu corpo congela quando seu punho se aproxima de Lisica, porém, desta vez, ignorando seu instinto, o garoto tenta continuar. É como se fosse impedido por uma força invisível, que ele tenta sobrepor apenas com força bruta. Uma veia fica visível em sua testa, pelo esforço empregado na tentativa.

Seu corpo treme e, após um esforço excepcional, ele finalmente responde ao comando e, com um urro animalesco, o garoto finalmente consegue golpear o rosto de Lisica que, incrivelmente, é arremessada longe com o ataque, caindo deitada.

O garoto, ofegante, olha para o próprio punho.

— Eu… fiz isso?

De repente, Lisica senta-se no chão, segurando o abdômen enquanto gargalha sem parar. Um segundo depois, é Aldrah que levanta, também rindo, apesar de estar cheia de “sangue”.

— Há, há, há, há! É claro que não. — responde Lisica. — Acha que seu soquinho ia me jogar tão longe?

O garoto não entende o que aconteceu mas se sente envergonhado.

— Você… não deveria rir dos outros assim.

Lisica cessa sua risada, apesar de continuar com um largo sorriso, então da três passadas rápidas, em quatro patas, na direção de Kore, ficando bem próxima à ele.

— Não estou rindo disso. Estou rindo porque você finalmente conseguiu me atingir.

Aldrah também se aproxima.

— Isso não é sangue de verdade. — informa a menina. — A senhorita Lisica me explicou do seu problema e então eu quis ajudar.

— A ideia foi toda dela. — Aponta com o dedão para Aldrah.

As duas, então, batem as mãos espalmadas, comemorando o feito.

— Vamos Kore, tenta me acertar agora. — pede Aldrah.

O garoto respira fundo, tentando assimilar o que acabara de acontecer e então se levanta.

Prepara o golpe, mas seu punho não chega até a amiga.

— Quêêê?! Mas ele acabou de conseguir. — diz Aldrah, com cara de decepção.

Kore tenta socar Lisica e atinge sua bochecha, com toda a força que possuía, mas sem causar dano algum.

— Parece que só funciona comigo. De qualquer forma, por enquanto, é o suficiente.

 

Durante aquele dia, Aldrah fica para assistir o treinamento. Lisica termina o treino mais cedo para que as crianças pudessem se divertir um pouco, antes da amiga de Kore ir embora.




Os dias passam, o treino básico de Kore está completo.

Eles caminham pelas montanhas, para seu próximo destino.

— Mestra, eu ainda não consegui liberar o primeiro selo de mahou. Não seria melhor me treinar mais um pouco?

— Não se preocupe. Não achei mesmo que iria conseguir em tão pouco tempo. Apenas lhe mostrei o caminho. Terá o básico no monastério, com o tempo irá conseguir. Vai se sair bem.

— Espero que sim. Estou um pouco nervoso mas, ao mesmo tempo, estou muito feliz. Finalmente serei um monge.

A dupla avista uma passarela, por entre as pedras, que termina em uma escadaria para a parte mais alta da montanha, onde encontra-se o monastério.

Lisica cessa sua caminhada e toca a cabeça do garoto.

— Bem, à partir daqui você irá sozinho. Ao chegar no portão, identifique-se e diga que eu lhe enviei.

— Tudo bem. — diz o garoto, entusiasmado.

Ele faz uma reverência à sua mestra e parte em direção à passarela.

— Quando terminar sua estadia, venha até minha casa, irei lhe treinar de verdade.

O garoto responde com o polegar em riste, enquanto continua correndo, com um sorriso no rosto.

Ele atravessa a passarela e sobe uma centena de degraus, ainda sim a subida mal começou.

Algum tempo depois, já cansado, o garoto finalmente vence a escadaria, que parecia não acabar mais.

Em sua frente, ele avista um enorme portão e uma figura pequena, utilizando um capuz com capa, maltrapilhos, que bate desesperadamente no portão.

— ME DEIXEM ENTRAR! — grita a figura. — NÃO PODEM ME DEIXAR AQUI FORA! ABRAM ESSA DROGA DE PORTA!

Kore se aproxima devagar e percebe se tratar de um garoto, provavelmente com a mesma idade sua ou próximo disso.

Ao chegar perto, Kore tenta o primeiro contato e o garoto se vira, assustado.

— Hei! O que aconteceu? Te trancaram do lado de fora?

— Eles não me deixam entrar. Vim de longe apenas para treinar, mas aquele velhote disse que o monastério não é para todos. Pro inferno que não é. Eles precisam me deixar entrar.

O garoto encapuzado se senta no chão e começa à chorar, mas ainda com cara de raiva.

— Você veio sozinho? — pergunta Kore. — Alguém te indicou este lugar?

— Eu e meu pai éramos comerciantes. Viajávamos de cidade em cidade vendendo nossas coisas. Um dia minha mãe adoeceu e acabou morrendo. Um ano depois, durante nossas viagens, fomos atacados por bandidos, meu pai não quis entregar a mercadoria e então os bandidos mataram ele. Vendi o pouco estoque que sobrou e vim para este monastério. — diz, enquanto limpa as lágrimas. — Quero proteger as pessoas, ser um herói, pra que ninguém mais passe pelo que eu passei.

O pequeno Kore relembra de sua família e imagina como seria terrível se os perdesse. Lembra de sua avó, morta pelos kemonos e acaba simpatizando com o garoto maltrapilho.

Ele se aproxima da porta e da três batidas.

— Aqui é o Kore. Minha mestra Lisica me enviou. Abra por favor.

O som de uma tranca é ouvido e o portão se abre, revelando um monge já ancião mas imponente. Sua musculatura é muito bem desenvolvida, especialmente para alguém de sua idade.

— Bem vindo, Kore. Estávamos à sua espera.

— Oque? — se espanta o pequeno maltrapilho. — Estou à quatro dias batendo nessa porta e nada, mas abrem assim pra ele?

— Minha mestra enviou também meu irmão. — diz Kore, apontando para o outro garoto.

O mestre lança um olhar desconfiado, parecia uma mentira bem óbvia. Ele pesa a situação, enquanto passa a mão pelo longo cavanhaque.

Aquele garoto era determinado, pois ficara dias batendo na porta e chamando sem parar, pensa o monge. A ajuda de Kore foi apenas o empurrão que faltava para a decisão que tomara em seguida.

— Muito bem. Podem entrar.

O olhar dos garotos se enchem de alegria.

Kore atravessa o portão primeiro e, quando chega a vez do segundo garoto, a mão do monge o detém.

— Qual é seu nome, garoto?

Ele remove o capuz e responde.

— Meu nome é Farkas. Sou… Irmão do Kore.


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Notas finais do capítulo

Opiniões e críticas construtivas são bem vindas.