Angels or demons escrita por Aline


Capítulo 7
Abandonada




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Depois de viver tantos anos sem qualquer necessidade de tomar decisões próprias ou de fingir determinado estado de espírito, acho que posso dizer que não sabia como o fazer.

Sim, é verdade. É possível sentir arrependimento das coisas mais prazerosas, daqueles momentos de felicidade e êxtase total em que vimos o paraíso. Nunca pensara que algo bom, numa hora, pudesse ser tao mau, na seguinte.

Mas podia.

Era.

Estava enrolada na posição fetal, ainda naquela cama de lenções negros onde, de certeza, Eliel e tantas outras já haviam atingido picos tão ou mais agudos do que o meu. Talvez, por isso, pela consciência nojenta de que era apenas mais uma a sofrer aquela pequena morte nos braços do demônio, me sentisse tão suja e usada. Usada duplamente. Tudo aquilo, tudo o que fizera desde que Anthonny me abandonara naquele sítio onde o diabo tinha o seu ninho era contra minhas convicções, contra minhas crenças e contra meus gostos. Podia fazer uma qualquer analogia a uma tal partícula mas, no momento, tudo me parecia demasiado vago, demasiado leve, demasiado oco.

Não sei precisar a quantidade de tempo exata em que me deixei afogar na água que se afastava de meus olhos e nos pensamentos que inundavam minha mente perturbada. Quando, finalmente, consegui levantar a cabeça da almofaça cujo odor ainda possuía um travo a canela, uma dor na testa me atingiu. O choro tem deste tipo de consequências. É a pressão que as emoções fazem dentro de nossa cabeça, antes de permitirmos que saiam.

Era suposto Eliel aparecer com comida. Não o fez e eu dava graças a Deus por isso, ainda que tivesse algumas dúvidas se Ele ainda me considerava Sua filha.

Sentei na cama, com os pés para fora e me martirizei mais uma vez antes de levantar. Como ainda o conseguia, não sabia, mas ainda bem que assim o era. Num passo demasiado lento para a minha pessoa, me esgueirei para o meu quarto. Retive a respiração ao passar pelo armário, cujas roupas, nas suas cores e cheiros, me traziam lembranças que preferia não possuir. O local seguinte foi a casa de banho, onde tirei aquele tecido fino que havia presenciado mais do que devia. Coloquei-me debaixo da cascata de água quente e esfreguei tanto quanto a minha pele permitiu, no seu tom rosa avermelhado criado pelo calor e pela fricção.

Tentação. Sim, sem dúvida, um fruto do diabo.

Quando regressei ao meu quarto, escolhi a roupa mais conservadora e simples dos meus escassos pertences. Não lhe queria dar, a ele, qualquer razão para que o que se passara horas antes se repetisse.

Só depois disto tudo é que chegaram as náuseas e as tonturas. Só quando me baixei para alcançar um sapato no chão é que aquela sensação de cair no vazio apareceu. Sem pensar muito, saí para o corredor, em direção à cozinha, no andar de baixo. Agarrada às paredes, virei a esquina que separava os aposentos de Nickolas – e os meus, obviamente – do resto da casa. Normalmente, dava especial atenção a todos os pormenores das gravuras espalhadas pela mansão, muitas delas contando detalhes da era antiga, no entanto, naquele momento, a minha única preocupação era chegar à cozinha sem cair.

— Você tem de fazer alguma coisa. Não pode deixar que isto aconteça.

— Já falei com os outros Guardiões. Todos receberam a mensagem mas nenhum quer agir contra os Cavaleiros.

Mesmo no estado deplorável em que me encontrava, a palavra “cavaleiros” ressoou na minha cabeça como um sino e estanquei mesmo junto à porta da biblioteca.

— Imponha-se! Pode fazê-lo.

— Posso mas se estão todos contra mim, me impor não vale de nada. Todos acham que, se nos revoltarmos contra os Cavaleiros, quando se soltarem virão atrás de nós e, obviamente, sozinhos, não somos nada para eles.

Se soltarem? Os Cavaleiros se iam soltar? Todos ou só os do Inferno? Mau, muito mau.

— Era de esperar que os Guardiões do Inferno tivessem mais bolas.

Houve uma pausa, um pequeno silêncio que, de certeza, era preenchido por uma troca de olhares maliciosa, do outro lado da porta.

— O que pode acontecer se eles se soltarem?

— O problema não é eles se soltarem. Com os nossos Cavaleiros livres, seria perfeito! Governaríamos o mundo e os anjos não teriam outro remédio a não ser se render. O problema é que, se os nossos se soltam, os outros também e daí só resultaria a guerra. Outra. Ainda pior do que as que já aconteceram. Imagina um grupo de cães enraivecidos livres depois de um cativeiro demorado.

Guerra? Então… os Cavaleiros estavam prestes a se soltar? Era isso que Nickolas não me queria contar?

Não esperei que minhas questões fossem respondidas pelas vozes fracas que vinham da biblioteca, em vez disso, sem bater ou sequer me anunciar, entrei na sala, com a determinação de quem estava em pleno uso das suas capacidades e não no meu estado.

— Os Cavaleiros vão-se soltar? – questionei, olhando fixamente para Nickolas, sentado do outro lado da mesa, numa pose demasiado relaxada para a situação.

— Não tem nada com isso – respondeu, friamente, como se, pouco tempo antes, não tivéssemos compartilhado um momento tão íntimo como o que ocorrera.

— É claro que tenho! Toda a gente tem!

— Toda a gente? – ele riu com desprezo. – Porque vocês, humanos insignificantes, podem fazer muito acerca disso, não é?

— Podemos tentar! – procurei Eliel para apoio mas ela abandonara a sala sem eu reparar.

— Vocês são fracos. Não podem fazer nada.

— Mas podemos nos aliar! Nós, vocês, os anjos…

Nickolas se levantou e começou a andar a volta da mesa, enquanto passava a mão no queixo.

— Não confio na lealdade dos anjos, não confio na capacidade dos humanos. Não. É impossível.

— Então, ao menos me deixa ajudar você!

— Não ouviste quando disse que não confiava na capacidade dos humanos? – inquiriu, parando à minha frente.

— É preciso fazer alguma coisa…

— E eu vou pensar nisso.

— Me deixa ajudar.

— Não, tenho de fazer isto sozinho.

— Não vai enfrentar os Cavaleiros sozinho,pois não?

A sua expressão se suavizou, por um mero momento, antes de suas sobrancelhas se franzirem e da sua boca tomar uma posição de desagrado que eu não conseguia compreender.

— Vá para seu quarto – ordenou, todo o seu corpo numa posição demasiado recta e rígida. Era mais do que um pedido ou um aviso, era uma ordem cujo desrespeito levaria a uma catástrofe.

— Mas…

— VÁ PARA SEU QUARTO! - gritou socando sua mesa, quebrando-a no ato.

Sua força era tanta que fui obrigada a recuar, mesmo sem que ele próprio, fisicamente, me tivesse tocado. Seus olhos estavam mais verdes do que nunca, mais abertos do que nunca, mais raivosos do que nunca.

Engolindo em seco, levantei o queixo e me dirigi a porta, tentando não mostrar qualquer sinal de que sua atitude me tivesse afetado. Quando regressei ao meu quarto, pensei em chorar mas minha mente estava demasiado ocupada trabalhando o que ouvira, pesando probabilidades, relembrando factos, histórias, conversas, tentando reunir todo o tipo de informação acerca dos Cavaleiros, o que haviam feito, como haviam sido derrotados, tudo. Segunda as lendas, farto de assistir as lutas entre os Cavaleiros do Inferno e os Cavaleiros Celestiais, Deus criou duas prisões, num qualquer local isolado do mundo, fechadas com raios de luz ou trevas, supostamente, impenetráveis por qualquer ser. Como é que podiam os Cavaleiros escapar de um sítio assim? Não me parecia possível, nem sequer provável. Era uma situação demasiado fantástica e imaginativa. Impossível.

A porta do meu quarto abriu com força, batendo na parede e me arrancando profundamente do meu estado de raciocínio. Com os cabelos revoltos, olhos demasiado abertos numa expressão quase de loucura, Nickolas parecia mais mortífero do que nunca. Zangado e sem qualquer corrente de sanidade ou cortesia social que prendesse sua essência.

Atirou uma mala para cima da cama, com força, sem me olhar nos olhos.

— Vai colocar suas coisas aí e, em quinze minutos, estará junto às escadas.

No momento seguinte, o momento que pertencia a uma resposta minha, ele já não estava à vista. Deixara a porta aberta, tal como a minha boca e a minha mente, que procurava no ar uma resposta para aquela atitude. Sem qualquer opção a não ser fazer o que mandara, abri a mala e reparei que estava vazia. Meus poucos pertences não ocuparam nem metade do seu espaço. Em dez minutos, estava onde ordenara. Não precisei esperar muito para ouvir seus passos rápidos descendo as escadas. Sem uma palavra, pegou em minha mala e saiu de casa, me obrigando a correr para o alcançar.

— Para onde vamos?

Não houve resposta, apenas um passo demasiado veloz para eu acompanhar sem correr. Não o voltei a questionar, ou fazia isso ou corria e, naquele momento, correr me parecia a melhor hipótese. Nas sombras provindas dos becos, vi demônios se encolherem em seus cantos com humildade e anjos com expressões de desgosto mas demasiada covardia para agir.

A pouco e pouco, as ruas, as casas se tornaram conhecidas, familiares. Umas cortinas espalhafatosas que apenas uma habitação tinha, uma árvore com uma forma extravagante que não existia em mais lado algum.

— Vamos para casa do Domínio Anthonny? – questionei, franzindo as sobrancelhas.

Se Nickolas me ouviu, não deu qualquer sinal disso, apenas continuou sua marcha apressada, contudo, não foi necessária uma resposta quando largou a mala em frente à casa de Anthonny. Depois de estar em casa do demônio, aquele lugar de aparência demasiado simples e moderna, parecia vazio e nada acolhedor.

— O que é que estamos fazendo aqui? – inquiri.

Nickolas entrou no edifício e parou em frente ao porteiro, meu pai, o que achei estranho, pensei que abrisse as portas de toda a gente, sem pedir, como fazia comigo.

— Gabriella? – meu pai contornou sua mesa e veio me abraçar mas o demônio impediu, se colocando na minha frente.

— Onde está o anjo? – perguntou, sua voz se fazendo soar pela primeira vez desde que estivera em meu quarto.

Meu pai o olhou, o estudando, antes de voltar à sua mesa para pegar no telefone.

— O que é que vai fazer? – sussurrei a Nickolas mas, novamente, nada de resposta. Uma vontade de lhe bater, empurrar, fazer qualquer coisa que o obrigasse a responder, se apoderou de mim e estava prestes a fazê-lo quando o ouvi o som do elevador parar no piso térreo.

— O que você quer, demônio?

Era Anthonny, mas parecia apagado, cansado. Atrás dele, vinha minha mãe. Antes de começar a correr para ela, uma mão agarrou meu braço, me impedindo.

— Quero devolver isto – Nickolas ergueu a mão que me segurava e eu congelei.

— O quê?! - era suposto eu ficar contente, certo? Era suposto querer voltar para casa, não era? Mas não era…

— Não pode simplesmente devolver um presente sem mais nem menos, demônio – declarou Anthonny.

— Posso e vou fazê-lo – sem a menor suavidade, agarrou minha mão, tirou o anel e me atirou para Anthonny, que me impediu de cair.

— Porquê? Não te satisfez? Usou ela e agora que já não pode se alimentar manda-la de volta?

— Uma história um pouco mais complicada mas não devo explicações a você. - virou-se e foi embora.

Tentei me endireitar e correr atrás dele. Tentei formar uma palavra mas minha garganta estava demasiado seca para falar. Fora tudo tão rápido, tão repentino, que eu não tivera tempo para fazer o que quer que fosse. Quando minha mente conseguiu produzir o primeiro raciocínio coerente, o alerta disparou: Nickolas saíra por aquela porta e me abandonara.


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