A Escolhida do Destino escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 4
Sobre dimensões e Destino.




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A nova morada de Altair ficava em um local afastado, passando por uma extensa servidão de casas e uma trilha em meio a floresta. Mesmo que Alyson e Ken tenham seguido caminho com facilidade – a primeira, testando seu equilíbrio em ocasionais árvores mais próximas da trilha, o segundo, atento para a possibilidade de suas companheiras se perderem – Sasha parecia cansada, e já tinha os tornozelos marcados pelas tantas crisiúmas que haviam enroscado-se em suas pernas. Ela choramingava baixinho, tomando o dobro de cuidado para não ganhar um lanho extra.

— Não tinha um lugar melhor para esse cara morar, não? Ele está se escondendo do mundo, virou eremita por acaso?

— Quase isso. — Kensuke fez uma careta, abaixando a cabeça para evitar um galho. Alguém definitivamente tinha que ir até lá limpar aquela trilha. — Depois que atingi a maioridade, ele não viu mais razão para manter contato com moradores da cidade e simplesmente se isolou.

— Ele não me parecia alguém antissocial. — Alyson opinou, saltando de um galho para o outro, testando seu equilíbrio recém-adquirido. Estranhamente, ser metade gato não ajudara em nada com seu azar, muito menos com sua capacidade inata de desviar sua atenção para outra coisa completamente alheia e acabar atrapalhando-se com isso.

Sasha havia emprestado-lhe um sobretudo jeans com capuz, que mantinha guardado na mochila, o que foi bem conveniente para esconder sua calda e suas orelhas enquanto andavam todo o caminho até ali. Não importava o quanto tentasse, não conseguia retornar a sua forma original… na verdade, nem sabia como fazê-lo. Talvez Altair pudesse ajudá-la com aquilo também.

— Não é que ele não se socialize, é que ele não gosta muito dos habitantes da Terra… salvo exceções. — Kensuke disse, estendendo a mão direita para tirar um amontoado de cipós do caminho, por fim conseguindo ver a pequena casa onde seu mestre residia. Alyson deixou-se cair do galho que estava, pousando sobre os pés com uma leveza que a surpreendeu. Sasha parou ao lado deles, observando atentamente o local e batendo as palmas de suas mãos.

— Bom… ao menos parece aconchegante.

Era um chalé de aparência acolhedora, e pelo tamanho não deveria ter mais do que quatro cômodos. O enorme descampado ao redor dele fora transformado em um jardim com várias espécies de plantas, onde as hortênsias predominavam. Havia uma rede na varanda, uma mesa pequena cercada por umas três cadeiras de praia e um pinheiro gigantesco que nascera atrás da residência.

— Lugar simpático. — Alyson concordou, colocando as mãos para trás do corpo e recomeçando a andar. — Vamos bater!

Kensuke apressou-se a segurá-la pelo cotovelo, puxando-a bem a tempo de evitar que pisasse em uma tênue linha que parecia demarcar o território. — Tenha cuidado. Não acha que alguém moraria num lugar tão afastado sem proteção, acha?

— Na verdade, muitos moram… — a jovem estendeu o dedo indicador.

— É verdade. — ele estreitou as sobrancelhas, como se tentasse encontrar argumentos para rebater. — Mas nem todos são como esse homem, então não deveria ser tão imprudente… — perdeu a fala na metade, ao reparar que de alguma forma Alyson havia escapado de sua pegada e já atravessava a marcação. Veios de energia tremeluziram ao seu redor, espalhando-se, dando para ver o contorno de uma redoma em tom azulado, que cobria todo o terreno. A jovem, contudo, continuou como se nada tivesse acontecido, piscando os olhos momentaneamente para as linhas que haviam se formado.

— Oh… o que é isso?

— Uma barreira. Normalmente ela fritaria os invasores que tentam atravessá-la sem a permissão do conjurador. — A voz vinha da entrada do chalé, de onde um senhor de meia idade acabava de atravessar. Alguém extremamente familiar, na verdade. — Se não é a pequena Alyson… você não cresceu nada desde a última vez que a vi. Embora eu esteja mais interessado em como fez pra entrar no meu território sem levar um choque. — ele estendeu seu olhar para os outros dois, parados do lado de fora do círculo. — E está acompanhada de meu antigo aprendiz ainda por cima. Acho que vai ser uma história muito interessante. Mas antes de tudo… podem entrar, vocês dois. Sejam bem-vindos!

 

Os três sentaram-se em um sofá de três lugares bege, com confortáveis almofadas fazendo-lhe par. Uma mesinha de centro com tampo de vidro e pernas de ferro negras separavam-nos do anfitrião, que acabava de voltar a presença deles com um bule cheio de chá, para complementar as xícaras vazias que já estavam sobre o móvel.

O cômodo era uma pequena sala de estar, com poucos adornos: alguns quadros pendurados nas paredes, nenhum com paisagens que se poderia encontrar na Terra, ao que parecia. Um tapete com desenhos de sóis e luas prateados em fundo azul adornava o chão, ficando em baixo dos já ditos sofás e da mesa, e também da cadeira de balanço estofada que ficava em frente a eles. Do teto pendia um lustre simples, feito de cristais azuis, que filtravam muito da luz e davam ao lugar um ar meio místico. Havia uma janela de madeira que dava para o lado de fora e uma porta para outro cômodo adjacente. Na parede oposta a porta de entrada, havia também uma pequena lareira.

Altair jogou-se sobre a cadeira de balanço e capturou um cigarro do bolso das roupas largas que usava, acendendo-o com um isqueiro tirado do mesmo lugar. Depois de dar um trago, pôs-se a servir o chá, preparando-o de acordo com a vontade de seus hóspedes para que bebessem. — Normalmente eu ficaria muito curioso sobre o motivo que fez com que me procurassem, mas visto as circunstâncias… — ele encarou Alyson, que mexeu as orelhas felinas ligeiramente. — Acho que já sei do que vieram tratar.

— Queremos algumas informações… sobre a garota da sua profecia. — Kensuke se absteve de tocar em sua xícara num primeiro momento. Estava com uma expressão bem séria naquele momento, concentrado em seu antigo guardião.

O homem recolocou o cigarro entre os lábios. Seu rosto era bem marcado sobre a pele morena, os olhos castanhos tinham algo de insurgente neles. Como alguém que não tem muito apresso por regras. Ainda assim, aparentava ser gentil e passava confiança. — Kit Black. A Filha de Kairos. A Salvação de Diamond. A Escolhida do Destino. Estou certo? — assoprou a fumaça em seguida, abrindo um sorriso mínimo. — Então finalmente você despertou, não é mesmo, garotinha?

— Despertei…? — a jovem em questão estreitou os olhos, como se estivesse tentando resolver um quebra-cabeça muito complicado. Desde algumas horas atrás, nada na sua vida parecia fazer muito sentido.

— Espera… você sabia o tempo todo que era ela? — Ken não estava de muito bom humor.

— Naturalmente. Era o meu trabalho encontrá-la. — o senhor fechou seus olhos, calmamente.

O rapaz desceu as palmas das mãos na mesa de vidro com força, fazendo-a estremecer. Sasha saltou para frente na esperança de salvar as pobres xícaras de caírem, enquanto Alyson segurava-o por um dos braços. — Como diabos você está assim tão calmo? Ela morreu hoje! Se tivesse me contado antes isso nunca teria acontecido! Não deveria tomar conta dela para que nada de ruim lhe acontecesse?

— Kensuke, Kensuke, sempre impaciente! — Altair tirou seus olhos dele para colocá-los sobre Alyson, mas ainda mantinha uma mão apontada ao seu pupilo. — Não seja como esse menino, senhorita. Só as entidades superiores sabem o que é ter um aprendiz tão cabeça quente. — deu um empurrão na testa dele com o dedo indicador, voltando a olhá-lo. — E você, esfrie a cabeça e escute. Até parece que nunca lhe ensinei nada… aliás, por que acha que eu apresentei vocês dois, pra começo de conversa?

A jovem colocou uma mecha do seu cabelo preto atrás da orelha. Era verdade… ela se lembrava vagamente do ocorrido, quando o homem desconhecido havia entabulado conversa com sua mãe. Deixou momentaneamente a discussão de lado para se aprofundar um pouco mais naquela memória em particular…

 

Os dois estavam parados em frente ao portão da sua casa, enquanto Leah trocava palavras de boas vindas com eles. Haviam acabado de se mudar, pelo que parecia. Sua mãe estava minimamente incomodada com algo, que Alyson falhara em descobrir com sua observação. Quando reparou que a filha estava próxima, fez um sinal para que a menina se aproximasse.

Alyson fixara seu olhar curioso nos estranhos. O homem mais velho tinha algo familiar em sua energia. O rapaz atrás dele, observando tudo com olhos apáticos e sem vida, não tinha nada de diferente que pudesse notar. Algo como compreensão passou pelo rosto do adulto, quando ela aproximou-se, colocando-se ao lado de Leah. Ele parou momentaneamente o assunto que discutiam – ela não fazia a mínima ideia sobre o que era – para fazer-lhe uma mesura estranha com a cabeça.

Se Leah já estava nervosa antes, agora tremia levemente. — Que tal se debatermos algumas coisas a sós? Talvez eu possa ajudá-los a acostumarem-se com tudo por aqui. — um pouco menos tensa, a mulher desceu seus olhos sobre o adolescente. Parecia penalizada por ele. — Alyson… estes são Altair e Kensuke. Acabaram de se mudar para algumas casas à frente.

— É um prazer conhecê-los. — a garota abriu um sorriso gentil, juntando as mãos atrás do corpo. Normalmente teria agarrado as mãos do outro jovem e feito um monte de perguntas, mas tinha de admitir que estava envelhecendo, e aquela atitude era deveras imatura.

— Garotinha, eu tenho alguns assuntos para tratar com sua mãe no momento. Por que não mostra um pouco da cidade ao Ken? Ele ficaria feliz em acompanhá-la.

A careta que o tal Ken fizera demonstrava tudo, menos felicidade. Seus olhos verdes se estreitaram em um desafio velado, que logo desapareceu, transformando-se em desconforto. — Tudo bem… — ela podia jurar que ele estava um pouquinho vermelho.

Leah assentiu com a cabeça, dizendo-lhes para que não fossem muito longe e não voltassem muito tarde. Depois que guiou o homem para dentro de casa, Alyson girou nos calcanhares, ficando de frente para Kensuke mais uma vez. — Hum… se você não quiser ir não tem problema…

— Tanto faz… eu vou ter que aprender sobre esse lugar mais cedo ou mais tarde. — a fala dele era muito pausada. O sotaque era estranho, ele obviamente estava aprendendo a língua a pouco tempo.

— De onde você vem?

— Japão… — ele respondeu, rapidamente, virando as costas para começar a caminhar. Alyson apressou-se para alcançá-lo e andar ao seu lado, com certo receio de que ele se perdesse. Na verdade, ela própria tinha um péssimo senso de localização, então tinha que tomar cuidado dobrado.

— Tenho uma amiga que viaja para lá todo ano. Parece ser um lugar legal.

— Tem os pontos bons e os ruins, como qualquer lugar. — ele murmurou, colocando as mãos dentro dos bolsos da calça jeans. — Não vai me perguntar por que me mudei para cá?

— Bom, acho que é o tipo de coisa que você me diria só quando ficasse confortável comigo. — ela coçou a bochecha com o indicador direito. — Mas deve ter sido por um bom motivo, né?

Ele não respondeu.

Na verdade, estava acostumado a responder aquela pergunta sempre, desde que havia entrado no Brasil. A maior parte das pessoas que cruzavam com ele eram loucas para sair do país, então ficavam chocadas ao vê-lo mudar-se de bom grado, deixando para trás uma vida num país de primeiro mundo, com uma cultura tão exótica.

O que elas não sabiam era que não tinha sido de tão bom grado assim. E o que Alyson não sabia era que, justamente pelo fato de não incomodá-lo com perguntas irritantes, ele acabara interessando-se genuinamente por ela.

 

— Chamar aquilo de apresentação é meio forte… — Alyson alegou baixinho, sem soltar o braço de Ken. — Hum… que tal a gente relaxar e vocês me contarem essa história toda do começo, hein?

Kensuke estremeceu, respirando profundamente e endireitando-se no sofá. — Desculpem-me.

— Bom… por onde eu deveria começar? — Altair coçou o queixo, pensativo.

— Talvez devesse mencionar a teoria do multiverso. — sugeriu Ken, ainda olhando-o com uma expressão irritadiça. — Na verdade, tem muita coisa que eu também não sei nessa história toda.

— É porque nunca foi necessário que você soubesse tudo. — o homem deitou o cigarro num cinzeiro de vidro sobre a mesa e acomodou-se melhor na cadeira, cruzando as pernas. — Eu mesmo só sei o que acharam prudente que eu soubesse.

— Quem achou prudente? — Alyson se intrometeu antes que os dois se engalfinhassem em outra discussão verbal. —Vocês falam um monte de coisas aleatórias e frases soltas e não explicam nada. Alguém quer me matar, e eu quero saber o porquê.

O senhor bufou, começando a rir logo em seguida. — Pobre garota. Você realmente não sabe de nada. Mas começarei da forma mais simples, se é o que prefere. A pessoa que me enviou foi seu pai.

— Meu… pai? — a menção àquela pessoa fez com que Alyson apertasse o braço de Ken com mais força do que pretendia. Ele esforçou-se para libertar-se e passou um braço protetor por seus ombros, coisas que ela não foi capaz de perceber.

— Sim… eu devia um favor a ele… não que aquele homem goste de cobrar, deve apenas ter juntado o útil ao agradável.

— Onde ele está? — a jovem cortou, esperançosa. Já era a segunda pessoa mencionando seu pai em tão pouco tempo, talvez conseguisse finalmente descobrir algo sobre ele… depois de tudo que passara, estava quase começando a crer que tudo de estranho que a circundava era culpa dele.

Altair deu de ombros. — Em alguma dimensão aleatória por ai. Ninguém sabe ao certo. Esqueça-o por enquanto, criança, ele não quer ser encontrado.

Os ombros de Alyson arriaram. Pensou em pressionar o homem para que lhe contasse mais, mas acreditava que ele estava dizendo a verdade. Não havia muito a ser dito do seu progenitor, e por mais frustrante que isso fosse, era melhor manter o foco no problema atual.

— Você disse dimensões. — Sasha se meteu na conversa, erguendo um dedo, como quem pede a palavra a um professor. — O que quer dizer com isso? Sempre pensei que existisse só uma…

— Hum… agora chegamos em um assunto interessante. — ele piscou para os mais jovens, recapturando o cigarro. — Sabem, não existe apenas um universo… aliás, já existiu, em algum momento muito remoto da chamada Criação. Dizem que do Nada surgiu um ser de luz e puro instinto criador, que ao brincar pelo Vazio, deu origem ao Universo Primordial. Há muita discordância sobre o que houve depois, os sábios de cada dimensão dizem coisas distintas. Mas uma teoria amplamente aceita é que o Cosmos passou a se fragmentar com o surgimento de divindades diferentes, que moldaram seus próprios universos. Como os galhos de uma árvore, alguns universos são absolutamente próximos aos outros, e por isso dividem entre si algumas peculiaridades, assim como suas evoluções.

“Existem, com efeito, várias Terras. Algumas são repletas de magia, outras completamente científicas. Existem mundos devastados e mundos em formação. Surgiram tantas dimensões que tornou-se necessário um gerenciamento delas, uma forma em que os seres não invadissem as dimensões um dos outros e causassem desordem. E então, O Guardião das Chaves surgiu das fendas entre os mundos.”

— Espere, ele simplesmente surgiu? — Sasha cortou, os olhos arregalados, a atenção concentrada totalmente nas palavras de Altair.

— Surgiu… como o Criador, e como os deuses que vieram depois dele. Ele não foi criado, embora tenha vindo da necessidade de criar dos outros. Mas teoria criacionista é complexa e um pé no saco. O que importa é que esse ser, O Guardião das Chaves, reside em um universo próprio, onde vigia as portas de cada dimensão existente. Normalmente, para se passar de um plano a outro sem causar interferência, é preciso atravessar o Templo dele. Mas, obviamente, sempre existem exceções à regra.

“Algumas criaturas desenvolveram a capacidade de saltar de uma dimensão para a outra. Muitos eram praticantes de magia, e atravessavam de forma tão natural que não causavam distorções na realidade. As histórias de suas viagens chegaram aos ouvidos de multidões. Havia uma grande quantidade de pessoas que queriam aventurar-se pelo multiverso também, mas não eram capazes de viajar como aqueles que já nasciam com o dom. E então, com a ajuda da magia dos viajantes dimensionais, foram criados os chamados portais, atalhos que ligam uma dimensão a outra.”

“Alguns foram mais além e moldaram armas supremas, capazes de cortar os planos. Mas estas eram muito perigosas, seu poder era facilmente usado para a destruição, e a maior parte delas foi recolhida e é mantida sob a guarda de entidades de profunda sabedoria.”

“Mas viagens dimensionais continuam sendo utilizadas por poucos. Há muitos riscos em permanecer em um plano que não seja o seu próprio, e quanto mais distante ele estiver de sua dimensão natal, mais interferência você causa na realidade de lá. Quando alguém corta um mundo de forma equivocada, a tendência é que o tempo pare e a pessoa, considerada uma ameaça, seja expulsa da dimensão logo em seguida.”

“Eu venho de uma dessas dimensões paralelas. Sou um Viajante de Mundos. Seu pai, Alyson, também é alguém que nasceu com o dom. Ele provém de um mundo conhecido como Diamond, uma terra repleta de magia, mas que corre perigo de cair em desgraça. Uma mulher tirânica começou a levantar um exército anos atrás, com o intuito de dominar o Reino e subjugá-lo. E, de acordo com a profecia, a única pessoa que conseguirá pará-la é…”

— Kit Black. — finalizou Alyson, sem entender muito bem o porquê daquilo parecer-lhe tão óbvio.

Altair assentiu com a cabeça, tragando o cigarro. — Sim… a herdeira de Kairos. Mais especificamente, você.

Kairos.

Seu pai era uma criatura tão difícil de compreender que parecia-lhe quase lendária. Teve certeza que não conseguiria encontrá-lo, afinal. Ainda assim, poderia tentar descobrir mais… em Diamond. Será que sua mãe havia conhecido-o lá ou na Terra? E havia também aquela profecia em que ela teria que deter essa tal mulher… Certo, estava pensando demais em coisas aleatórias, e seu cérebro logo explodiria.

— Isso é o que eu sei. Seu pai me enviou mais como um guia do que como um guardião, afinal o destino é algo que só você teria capacidade de mudar. Com efeito, minha tentativa de protegê-la mantendo-a perto de Ken não surtiu efeito algum.

— Você sabia que eu morreria?

— Todos que estão envolvidos diretamente com a profecia sabem. — ele suspirou. — O fato de você ter morrido fez com que muita coisa se movimentasse, mas as engrenagens girariam mesmo que tivesse sobrevivido. As coisas só ocorreriam de uma forma diferente… talvez o resultado final seja o mesmo.

— E qual é esse resultado? — foi a vez de Alyson se levantar, exaltada. — Isso de destino está fundindo meus neurônios. Se minha missão é parar essa tal tirana, porque eu tive que passar por isso?

— O que importa é o caminho… as escolhas. Aqueles que você encontra durante a jornada… o quanto a sua determinação cresce ou se esvai, é disso que estamos falando. Não sou eu que devo lhe dar as respostas que busca, e definitivamente não sou eu que vou arriscar dizer o que o Destino espera de você.

— Vocês falam como se tudo estivesse determinado!

— E está… quase tudo. Todos equivocam-se no que diz respeito as deusas do destino. Acham que a trama da vida é escrita ao acaso e por capricho, mas sabe o que ninguém percebe? — ele fez uma pausa, estreitando os olhos e abrindo um sorriso irônico. — Elas nos conhecem com a palma de suas mãos. São divindades, afinal… elas podem prever qual serão nossas decisões. E é por isso que o Destino é algo tão difícil de lutar contra.

Alyson calou-se, deixando-se cair sentada no sofá novamente, as mãos pressionando os joelhos. Sua calda estava eriçada, assim como suas orelhas. Sentiu a mão de Ken sobre a sua e moveu-a para que conseguisse entrelaçar seus dedos nos dele, visando acalmar-se. — E então… eu preciso ir para esse lugar? Para Diamond?

— Isso é você quem decide. Minha função é lhe dar as instruções necessárias se desejar seguir adiante. Mas você tem a opção de continuar aqui e não se envolver…

— Dificilmente você vai conseguir manter-se afastada de tudo isso, agora que Driguem a encontrou… — Ken deu sua opinião, sem soltar a mão dela. — Ele não será o único… se a pessoa que o contratou for a mesma que está ameaçando Diamond, ela vai tentar matá-la de novo.

— Você sabe como acalmar uma mulher. — Sasha zombou, o que ele fez questão de ignorar.

— Eu tenho noção do que me espera, independente de que decisão eu tome. — A jovem alegou, mexendo de leve suas orelhas. Não parecia zangada, apenas pensativa. — A Morte me avisou… não vai ser nada fácil. Eu voltei com propósitos, e não posso me esquecer deles. — Ergueu o olhar para Altair novamente. — Diga-me como faço para atravessar para Diamond.

O sorriso dele alargou-se ainda mais, como se aquela fosse a deixa que estava esperando. — Até que enfim… estava me perguntando quando você ia me questionar isso!

 

Altair deixou-os sozinhos para retornar algum tempo depois, portando uma esfera dourada entre os dedos da mão direita. Depois de dedilhá-la em pontos aparentemente aleatórios, uma linha holográfica deixou o objeto, logo expandindo-se em uma tela. Deixando a esfera posicionada sobre a mesa, o senhor apontou para os cinco pontos luminosos que apareciam no que parecia ser um mapa múndi.

— É suposto que há apenas cinco portais nesta realidade, um para cada continente, que se conectam diretamente à Diamond, sendo que nem todos são simples de atravessar. Alguns só se abrem em situações específicas. — ele apontou um ponto do mapa, na América do Sul. — O mais próximo fica em Machu Pichu, Peru. Mas ele só se abre no primeiro dia de lua nova, e isso vai demorar um pouco para suceder… imagino que esteja com pressa, não?

Alyson meneou a cabeça afirmativamente, enquanto devorava um cookie, tirando-o de um pote que o anfitrião havia oferecido antes de sair para procurar o mapa. Kensuke não demonstrava estar muito calmo com aquilo de viajar para um local potencialmente perigoso sem planejamento, mas ele fora incapaz de demover a amiga da ideia. Sasha estava empolgada como sempre, e apenas escutava em silêncio, traçando planos próprios na cabeça, possivelmente mirabolantes.

— Todos os outros portais ficam do outro lado do oceano. Um se encontra na Esfinge, no Egito. O segundo na Muralha da China. O terceiro está em Stonehenge, Inglaterra, e se não me engano o último foi criado em algum lugar da Ilha de Páscoa. Todos tem enigmas que precisam ser decifrados para se poder atravessar, mas eu sugiro que optem pelo de Stonehenge. — enquanto falava, Altair ia apontando os lugares, por fim repousando as mãos sobre os joelhos.

— Ficam todos em pontos-chave, onde as civilizações antigas prosperaram… — Ken aproximou o rosto do holograma, coçando o queixo. — Isso tem algo a ver com a interferência que você dizia ter acontecido?

— Interferência? — As duas moças questionaram ao mesmo tempo, e o homem apressou-se em explicar.

— Aparentemente alguns indivíduos de Diamond escolheram ajudar os humanos da Terra a evoluírem. Os portais foram criados para tornar a transição entre um mundo e outro mais prática, embora os envolvidos fossem todos Viajantes Dimensionais. Foi uma interferência benigna, algo muito básico… a criação da escrita, por exemplo, veio deles.

— Por que eles se incomodariam em fazer tal coisa? — Sasha voltou a perguntar. — O que eles ganhariam com isso?

— Não consigo imaginar. Pelo que entendo da cultura de Diamond, informação repassada a mim por Kairos, aquele mundo é como o irmão mais novo do nosso. É dito que sua criação data da época do dilúvio, considerando que ele realmente aconteceu. Eles evoluíram muito mais rápido que nós, ainda que tenham optado pelo caminho da magia em detrimento do da ciência. Na verdade, mesmo a tecnologia lá é supostamente avançada o bastante para existirem computadores.

— Espero que existam chuveiros também.

— Acho que isso é o menos relevante aqui. — Alyson fechou os olhos, fazendo uma careta. Por mais que Ken ignora-se, ela estava realmente preocupada com a viagem. Ou melhor, com a mãe que deixaria para trás… explicar as coisas não seria muito fácil, mas a jovem imaginava que Leah sabia mais do que demonstrara durante todos aqueles anos. Agora que estava mais calma e tivera tempo para pensar em tudo, descobrira-se chateada com as pessoas que ocultavam as coisas dela. — Voltando ao assunto… por que o portão de Stonehenge em especial, o que tem de diferente nele?

— Nele? Especificamente, muita coisa, todos tem suas peculiaridades. — Altair passou a mão pelos cabelos grisalhos, suspirando profundamente. — O que quero dizer é que será mais conveniente a você, porque há outro ponto na Europa onde precisará parar antes de atravessar para Diamond. — a mão desceu para segurar o próprio queixo, e ele pareceu momentaneamente estar em dúvida. — Paris… acho que é isso… ou seria Veneza?

— Opa, para tudo, muita informação! — Alyson sacudiu um pouco os braços, tentando chamar sua atenção para ela. — O que tem esses lugares?

— Um feiticeiro, pelo que sei. — ele deu de ombros. — Alguém deve ter sido enviado para escoltá-la até ele. Eu não sei dizer sua posição atual no mundo, essas informações estão em meu poder há anos. Muita coisa pode ter mudado, e bom… sua morte deve ter acionado consequências do lado de lá também.

Ela abaixou as orelhas felinas, fazendo um som rascante com a garganta, muito semelhante a um rosnado de frustração. — Mas isso não ajuda em muita coisa…

— Tem como você ser mais obtuso? Que guia mais medíocre. — retrucou Kensuke, cujo cotovelo estava apoiado em seu joelho, e a mão segurava o peso de sua cabeça.

— Não posso fazer nada se o meu superior tem parafusos faltando na cabeça, oras! — o homem espalmou as mãos, categórico.

Em que diabos você foi me meter afinal, seu cretino complicado…

Altair xingou Kairos em pensamento. Na verdade, ele xingava o homem mentalmente todas as vezes que tinha chance, porque definitivamente aquele favor estava custando caro demais. Mas ter sua vida salva por alguém deixava-o em dívida eterna com a pessoa, e ele podia pensar em muitas entidades por ai que lhe infernizariam muito mais se estivessem no lugar do pai de Alyson. Podia ser bem pior.

Ele tinha que aprender a se conformar…

— Mantenham a calma. Seja quem for que precisem encontrar, sem sombra de dúvidas chegará até vocês. Por enquanto, creio que a parte mais complicada será arranjar passagens de avião para outro continente tão em cima da hora.

Alyson gemeu ainda mais, só de imaginar. Passagens de aviões não eram baratas, e hotéis internacionais deveriam ser menos ainda. Qualquer que fosse a soma exorbitante que seria necessária para fazer tudo o que precisava, ela tinha certeza que não a tinha.

— Hum… acho que poderíamos pedir para Chloe. Ela não disse algo sobre isso na última chamada em grupo que fizemos? Se precisássemos ir para Europa, ela ajudaria? — Sasha fez uma careta.

— E colocar ela também nessa confusão? — a outra interrompeu. — Acho que tem pessoas demais com as quais eu me importo envolvidas nisso. E ela deve estar ocupada sendo… hum… genial.

Esqueçam o fato dela ter pulado dois anos no ensino fundamental. Chloe Blackwell havia tornado-se um belo prodígio, terminando a faculdade de física no ano anterior. Pelo que Alyson sabia, ela podia ter muito bem iniciado um novo curso em história.

— É justamente por ela ser um gênio que não vai se envolver mais do que o necessário. — Sasha mostrou-lhe a língua, decidida. — E já tem um bom tempo que não nos vemos, vai ser divertido!

— Você não está sendo um pouco leviana com isso? — Ken cortou. — A propósito, você não vai com a gente. Concordamos que iríamos trazê-la junto apenas porque estava empolgada demais com a transformação de Alyson.

— Sobre isso… ainda não sei como voltar ao normal.

A transfiguração de Alyson havia estagnado. Não houvera mais surpresas que poderiam tornar-se desagradáveis, mas também suas características recém-adquiridas não regrediram. Não que ser meio gata a incomoda-se particularmente, em algum nível era útil e até mesmo fofo. Acontece que, bom… ela estava sentindo falta de ser apenas humana.

— Hum… — o mestre ergueu-se, vergando o corpo para segurar ela pelo queixo uma das mãos. Virou seu rosto de um lado para o outro, de modo lento. Com a mão livre, abriu mais um olho, depois o outro. Apalpou as orelhas, e fez com que ela abrisse a boca, inspecionando seus dentes. — Belas presas. — Concluiu, soltando-a completamente.

— Er… obrigada?

— Sua transformação é tanto biológica quanto mágica. É um estreitamento entre sua parte humana e o cerne animal que vive em algumas pessoas. Na Terra não há registros de humanos que tenham passado por isso, mas acredito que seja mais comum em Diamond.

“Pessoas com esse cerne selvagem costumam atrair umas às outras. Elas existem em todos os planos, pelo que sei… pelo menos onde existem humanos e animais. O que define se haverá uma união de ambas as partes é uma dezena de fatores, entre eles a potência da magia que circunda o corpo, a aceitação da parte animal pelo indivíduo, e uma experiência que sirva de gatilho para a transformação…”

— Quer dizer que eu não vou ficar assim para sempre?

— Sim. Não é uma mutação, é uma mudança mágica. Quando conseguir equilibrar suas emoções novamente, imagino que poderá voltar ao normal. Infelizmente não posso ajudar com isso, é algo que você precisa fazer por conta própria.

O toque de seu celular impediu-a – assim como os outros – de questionar se ele conseguiria de fato ajudá-la com alguma coisa. O instrumental eletrônico, Megalovania, mais especificamente a música tema de um chefe de jogo, fez com que a jovem tateasse aleatoriamente seu corpo, tentando se lembrar onde deixara o telefone. Sasha cutucou-a para entregar-lhe o aparelho – deixado anteriormente com ela – e Alyson franziu o cenho ao reparar quem estava ligando.

— Não morre tão cedo. — suspirou, vendo o nome de Chloe e atendendo logo em seguida. — Olá! Tá tudo bem com você…

Se já achava estranho o fato da amiga ligar do nada, o corte que recebeu no meio da pergunta lhe deu a certeza de que algo anormal estava acontecendo. Ainda que o tom de voz da outra fosse controlado, como era seu costume, havia uma certa urgência quando prontamente disse o motivo da ligação: — Hum, Alyson… eu sei que é inusual, mas acabei de ser abordada por um homem muito estranho, e ele diz estar a sua procura. Ele diz que vem de… — deu uma pausa, claramente questionando alguém ao seu lado, antes de voltar a falar. —… de Diamond.

O choque fez com que Alyson deixasse o aparelho escorregar, e embolou-se na tentativa de capturá-lo antes que se despedaça-se contra o chão.

Estava começando a ter certeza que “coincidências” definitivamente não existiam…


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Notas finais do capítulo

*Megalovania -> Música tema da batalha contra Sans, em Undertale.

Olá, pessoal!
Espero que estejam curtindo. O começo é realmente um pouco lento, mas agora as coisas devem dar uma agilizada.
Agradeço aos que tiveram paciência de chegar até aqui, se tiverem dúvidas ou sugestões podem me contatar, eu gostaria muito de saber no que posso melhorar.
Kisses, kisses para todos e até a próxima. ♥



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