O Corvo escrita por Paladina


Capítulo 4
Dia 4 — Corvo de asa quebrada


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo, seguindo a meta de dois em dois dias, ou de quatro em quatro.
Aqui daremos de fato início ao primeiro arco da história - os três capítulos anteriores foram uma espécie de introdução.

Como de costume, obrigada por estarem acompanhando! Aproveitem a leitura. ♥



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Três longas semanas se passaram desde que Corvo saiu de Casaguada - pequena cidade murada onde trabalhou na Taverna do Oleiro - e tornou-se escudeiro da Grifo Negro. Antes de saírem da cidade, venderam Bude, seu jumento, e compraram um velho, porém apropriado cavalo ao escudeiro, que mostrou-se em parte triste por abandonar o companheiro de longa data e feliz por finalmente poder montar um animal maior, mais rápido, obediente e forte. Tinha o nome de Relâmpago devido à pelagem esbranquiçada que lembrava a luz de um raio, apesar de, ironicamente, Relâmpago ter demonstrado receio a tempestades, empacando algumas vezes quando chovera na estrada que tomaram.

Durante sua viagem, passaram por diferentes vilarejos de nomes esquisitos, como Torrente de Sangue, Fogo-vivo e Palha Dura, cada um com um relevante significado para a formação da região que compunha a Estrada Mansa, de onde sairiam dentro de poucos dias para seguir em direção à Folhamarga, local que Líria alegava ser importante para seu próximo objetivo. Seu aprendiz nada questionara.

Com relação a sua rotina de treinamento, Corvo se sentia extremamente regrado, desiludindo-se quanto as inéditas atividades que acreditaria realizar. Durante os primeiros dias, montar - algo que crera fazer bem - foi uma das partes mais complicadas, porque a longo prazo o fez deixar de sentir as próprias nádegas, e suas virilhas ficaram assadas. Manter-se ereto na sela também era uma complicação, visto que seu peso sobre sua espinha era extremamente incômodo, fazendo-o alegrar-se sempre que desmontavam para acampar fora da estrada, pois então poderia ficar alguns momentos curvado, de postura folgada.

Pelas manhãs, Líria mandava-o meditar, ler as escrituras sagradas, estudar o idioma antigo e a escrever um relatório de viagem, além de anotar e cuidar do inventário que possuíam. Quando colocavam-se novamente a trilhar, ensinava-o a domar o cavalo, compreender seus sinais visuais, a diferenciar plantas e biomas pela estrada, além de identificar direções a partir do sol e o vento. No entanto, era ao fim da tarde, quando por fim descansariam da exaustão diária, que Corvo vivia um verdadeiro pesadelo. Era obrigado a exercitar-se intensamente, repetir posições de guarda até ter cãibras, carregar lenha, treinar com escudo e espada, martelo e maça. Quando seus músculos não suportavam mais atividade física, ficava atarefado em fazer a janta, armar as barracas, limpar as armaduras e cuidar das montarias.

Somente pela noite é que obtinha um pouco de paz. Após aprender a orar - todo dia era ensinado um jeito diferenciado de rogar aos deuses -, Líria explicava sobre os propósitos da Ordem, a respeito das constelações e auxiliava-o a lidar com seu passado. Então deixava-o só.

— Você fez bem. — Ela sempre elogiava-o, como fazia uma mãe orgulhosa do desenvolvimento do filho. Corvo sentia falta de maternidade, ainda era jovem, e alegrava-se com cada elogio recebido. — Amanhã terá mais. — Prometia, afagando-lhe os tufos negros que começaram a crescer. Quando questionou-a se deveria continuar raspando-os, como de costume, Líria riu e sugeriu que deixasse crescer. — Se continuar nesse ritmo, logo será ordenado cavaleiro.

— Cavaleiro? — Perguntou retórico Corvo. Tinha bons ouvidos, e certeza do que ouvira. — Pensei que fosse ser paladino! — Protestou.

— E será. — Concordou a ruiva, sentando-se próxima a fogueira. À luz da fogueira, seus cabelos tinham um tom rubro. — Mas quem o ordenará paladino são os deuses.

— Ah! — Exclamou, compreensivo, voltando seu olhar para a fogueira.

— Não se preocupe com isso agora, pequeno. — Aconselhou. — Dois homens tinham grandes campos para plantio; Um deles plantou uma semente que demorava dez anos, outro uma que demorava cinco. A seu tempo, as sementes começaram a desenvolver, mas o que plantara a semente de cinco anos ficou impaciente e as arrancou antes do tempo, na tentativa de vendê-las e gerar lucro rápido, mas ninguém se interessou pelo produto. O outro esperou os dez longos anos, e enriqueceu quando estas floriram e geraram frutos.

— Quer dizer que eu devo ser paciente? — Questionou Corvo, tentando adivinhar a metáfora.

— Quer dizer que tudo tem seu próprio tempo. — Respondeu-lhe Grifo Negro, abrindo um sorriso cálido.

Corvo deitou-se na relva fresca verde acinzentada, encarando o recente céu noturno. As estrelas mesclavam-se tímidas aos tons roxos e alaranjados, enquanto a lua tomava seu lugar no céu na medida com que o sol curvava-se educadamente. Havia um conto infantil a respeito do crepúsculo, no qual o cavaleiro-Sol reverenciava a princesa-Lua, permitindo que esta dançasse sozinha com todo seu esplendor do salão-Céu, vislumbrada pelos espectadores-Estrelas.

As faíscas da fogueira subiam para o céu como vagalumes. Corvo fechou ambos os olhos, escutando um boa noite sussurrado da paladina antes de adormecer de exaustão. Naquela noite sonhou com uma mulher que lembrava Solline, mas tinha certeza que não era ela, pois a mulher do sonho vestia uma armadura dourada e lutava bravamente ao lado de outra pessoa que trajava uma armadura prateada. Enfrentavam um homem dentro de um santuário. Corvo sentia angústia enquanto sonhava, como se pudesse sentir o choque de aço com aço, gritando para que ambas as mulheres esquivassem dos golpes, mas o desnível de habilidades entre eles era monstruoso.

Acordou com algo farfalhando e o atingindo no rosto.

— Outch! — Abriu os olhos e piscou várias vezes enquanto o rabo de Relâmpago batia em sua face. Levou uma mão até o rabo e o segurou. — Amigão, já acordei, calma, calma.

Arrastou-se para se afastar do animal.

— Você poderia ser mais gentil as vezes. — Requisitou, se levantando do chão. O sol brilhava intenso no céu. Seria um dia quente.

— Corvo, você acordou. — Grifo Negro surgiu segurando uma sela. — Suou a noite inteira, mas não quis acordá-lo.

— Eu suei...? — Impressionou-se. Suava por muitos motivos, seja por nervosismo ou por praticar intensas atividades físicas, mas nunca ocorrera durante a noite. — Eu tive um sonho estranho.

— Imaginei que sim. — A paladina colocou a sela em seu corcel negro e começou a arrumar os feixes. — Sonhos são mais importantes do que pensa... Até os pesadelos.

Corvo estremeceu.

— Eu costumo sonhar muito... — Acariciou a crina de Relâmpago. — Mas normalmente são com coisas que eu vivi ou pessoas que conheço. Hoje sonhei com desconhecidos.

Líria montou no corcel. Chamava-o de Passomanso.

— Existe algo entre os paladinos que chamamos por Sonhos de Profeta. — Explicou, cuidadosamente. — Comumente são presságios, ou ordens divinas transmitidas por meio dos sonhos...

— Foi assim que você acabou indo até Vila do Poleiro?

— Em parte. — Balançou a cabeça para os lados. — Eu sonhei com um corvo de asa quebrada. Leviot o pegava do chão e entregava a mim. Quando acordei, recebi uma mensagem de um padre dizendo que havia uma missão para mim em um lugar chamado Vila do Poleiro, e então percebi que foi um sonho profético e um sinal.

— Talvez... Talvez eu tenha tido um sonho assim? — As mãos de Corvo começaram a ficar escorregadias.

— Quem sabe. — A paladina deu de ombros. — Lembre-se do que eu te disse ontem, pequeno. Tudo a seu tempo... Se realmente for uma mensagem dos deuses, eles lhe darão um sinal.

Corvo engoliu em seco e concordou, ainda hesitante.

— Apresse-se. — Ordenou a ruiva. — Temos que seguir caminho.

O aprendiz colocou-se a arrumar o que ainda havia de pé no acampamento, enterrou a fogueira, colocou a cota de malha que compraram em Fogo-vivo e afivelou a sela em seu cavalo, prontificando-se para retornarem à estrada.

— Você ainda não me disse o que encontraremos por lá. — Comentou o escudeiro, montando em Relâmpago. — Vai ser algo grandioso, mestra?

— Tudo o que é feito com o coração é grandioso. — Sorriu, esporeando o cavalo. — Temos que encontrar uma mulher.

— E como ela é? — Corvo seguiu seu trote.

— Sei tanto quanto você, pequeno.

— Eu realmente fico ansioso com esse tipo de coisa. — Comentou consigo mesmo, em tom baixo, mas recebeu um olhar julgador de esguelha, e logo completou: — Mas tudo a seu tempo, certo?

Assim continuaram a marcha trote o caminho até Folhamarga. A estrada não tivera complicações nos dias conseguintes, e após setenta e duas horas - com pausas esporádicas - adentraram a cidade pela alameda de grandes árvores de folhas rosadas e amargas, motivo pelo qual a cidade recebera seu nome. Palmilhavam com lentidão, puxando suas montarias pelas rédeas enquanto a paladina explicava para Corvo a importância da perseverança.

Em sentido oposto a caminhada de ambos, dezenas de pessoas com expressões amedrontadas, emburradas ou desconfiadas retiravam-se da cidade, carregando malas, carroças, crianças no colo, animais de todos os tipos e barris com bebidas e alimentos. Parecia uma típica cena de êxodo, que chamou a atenção de Corvo e o fez ficar distraído, perdendo a conclusão da explicação da paladina.

— Mestra, por que eles estão saindo da cidade com tanta pressa? Não parecem comerciantes. — Fez uma careta e consertou sua sentença: — Ao menos, a maioria não.

— Se você deseja tanto saber, deveria perguntar.

— Eu não sou bom com as palavras. — Contou, envergonhado. Não tinha pudor em contar seus mais profundos medos para Grifo Negro, mas dizê-los em voz alta ainda o trazia grande constrangimento. Sempre pensara que se fosse bom com palavras, poderia ter impedido o próprio exílio.

— E nunca será se não treinar. — Parou o cavalo e tomou a rédea de Relâmpago nas mãos. — Vamos, estarei te esperando quando voltar com a resposta.

Corvo soltou lentamente a rédea, voltando o olhar para o movimento de pessoas na alameda. Lembrou-se de quando tentou convencer Delberth a contratá-lo e do quanto ficou nervoso. Levou a mão a testa e tentou enxugá-la, mas percebeu que não estava suando pela primeira vez em sua vida. Impressionou-se. Talvez as coisas tenham mudado a tal modo que seu corpo resolvera não traí-lo dessa vez.

Se aproximou de um garoto uns três anos mais novo, feio como pedra irregular, que apoiava-se em uma carroça, e perguntou-lhe com a cortesia ensinada por sua mestra:

— Com licença, garoto, por quê tantos estão mudando-se?

— Eu não sou um garoto! — Irrompeu a voz delicada e áspera da menina com cara de ganso. — E por que te importa, seu gordo?

Corvo deu um passo para trás.

— Perdão. — Aprendeu a densidade daquela palavra recentemente, e apaixonara-se por seu valor poético. — Não foi minha intenção te chamar de menino. Eu só gostaria de saber... Estou de passagem.

A menina torceu o nariz, e tornou-se ainda mais feia. Corvo sorriu em tentativa de diminuir a tensão. Um homem de meia idade surgiu por trás da carroça e colocou a mão na cabeça da mesma, fazendo-a ajoelhar com a força.

— Desculpe a falta de educação da minha filha, rapaz. — Pediu o homem de longas costeletas albinas e cabeça calva. — Ela puxou a personalidade da mãe.

E o rosto também, pensou Corvo, ao notar que o homem mais velho não era tão desagradável de olhar. Apesar da falta de cabelos e do nariz quadrado, tinha olhos profundamente verdes e dentes retos, além de ombros largos como os de um ferreiro.

— Está tudo bem, senhor. — Sorriu de alívio dessa vez. As pessoas temiam aqueles que portavam-se como guerreiros, e portanto demonstravam mais respeito. Sair por aí carregando sua espada de treinamento caiu-lhe melhor que o esperado. — Poderia me dizer o motivo de estarem se mudando?

— Me larga, velho! — A menina começou a estapear o pai enquanto se levantava do chão, mas ele a ignorava.

— O nosso lorde enlouqueceu. — Começou a explicar, pegando a garota no colo e colocando-a dentro da carroça. — Desde que filha desapareceu, começou a cobrar mais impostos... Inicialmente tudo parecia bem, mas chegou ao ponto de ficar insustentável.

— Hmn. — A filha. Quem sabe seja quem Grifo Negro procura. — Ele está aberto a reuniões?

O homem gargalhou.

— Lorde Ecqual sempre está aberto a reuniões. Agora, fazê-lo ouvir o que se é dito nelas é outra história. Muitos daqui tentaram convencê-lo a diminuir os impostos antes de se mudarem. — Suspirou. — Nada feito.

Corvo realizou uma reverência gentil, que fez o homem se sentir levemente importante.

— Muito obrigado, senhor.

— De nada! — E subiu na carroça. — Agora vou-me indo.

O escudeiro assentiu com a cabeça, observando-o partir com a carroça. Quando esta estava quase saindo de seu campo de visão, a garota cara de papagaio levantou-se e fez um gesto obsceno que Corvo não entendeu. Limitou-se a acenar.

Quando voltou para Líria, ela o observava com um meio sorriso.

— E como foi, pequeno?

— Estão se mudando por causa dos impostos. — Disse, gesticulando como Grifo Negro usualmente fazia. — Mas... O motivo pelo aumento é que parece estranho. A filha do lorde...

— Desapareceu. — Interrompeu-o, acariciando os cabelos ralos do topo da cabeça. — Fez bem em coletar informações.

— Você... — Ficou confuso. — Mestra, você sabia?! Desde quando?

Ela soltou uma risada agradável de se ouvir.

— Disse que iria lhe esperar, mas não disse que ficaria parada. Perguntei para alguém a respeito. Quanto mais informações reunirmos, melhor.

Fazia sentido.

— E o que faremos agora? — Ele perguntou, voltando a pegar as rédeas de Relâmpago. — Veremos o lorde?

— Primeiro, nos banharemos. — O que alegrou o gordo Corvo, que não passava água em seu corpo há uns dias. — E somente depois de bem vestidos é que iremos. Agora, monte.

E assim Corvo o fez.


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Viram algum erro? (Se sim, diga onde, por obséquio)
Como está a trama? Falta algo? Estou falhando? Me dê seu feedback, é muito importante.

E comentar me incentiva muito a continuar. Até o próximo capítulo!



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