O Corvo escrita por Paladina


Capítulo 2
Dia 2 — Corvo em trabalho


Notas iniciais do capítulo

Fiz uma homenagem nesse capítulo, mas ainda pretendo fazer muitas outras. Agradeço a você que está acompanhando e me fazendo levar essa história para frente. Sinto-me muito motivada!

Aconselho a leitura de cada capítulo com alguma música que lhe proporcione um espírito de aventura. By the way, bom capítulo ♥



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Solline tinha apenas um ano a menos que Corvo, mas o dobro da sabedoria e quase um milênio de distância de vigor. Mais alta que a maioria dos garotos de sua idade, chamativa por ser ágil como uma flecha e corajosa como uma fera, mas principalmente por seus cabelos serem da cor de ouro líquido, era conhecida pelos moradores como leoa dourada. Todos em Vila do Poleiro respeitavam-na, até mesmo o patriarca que era rival assumido do pai da garota.

Corvo, em especial, possuía um amor platônico por Solline desde o dia em que se conheceram, em um episódio onde o mesmo tentava aprender a utilizar uma espada. Tinha apenas sete anos, e seu pai falecera a menos de dois meses, então sentiu-se na obrigação de defender sua família. Contudo, era tão desengonçado quanto seria possível ser, e todos os seus movimentos falhos. A garota surgiu dentre as moitas que a ocultavam e ficou a observá-lo de braços cruzados.

Quando ele finalmente a percebeu, ficou rubro como um tomate. A leoa dourada era duas cabeças mais alta, magricela como uma vara, e tinha sardas espalhadas pela bochecha e nariz.

— Está fazendo isso errado. — Ela pautou ao se aproximar, estendendo a mão, pedindo casualmente a espada. Corvo hesitou.

— Mulheres não deveriam utilizar espadas, machucariam suas peles. — Argumentou, tentando mais evitar ser humilhado na arte da luta do que ser propriamente um cavalheiro.

— Me poupe, Corvo. — Ela era uma das únicas pessoas que ainda o chamavam pelo nome, e não por porco. — Sua pele é macia como cetim, não venha me dizer que vou ferir a minha.

Derrotado emocionalmente, o garoto entregou a arma para ela. Por um momento, que para Corvo foi uma pequena eternidade, foi capaz de sentir as mãos da garota tocando as dele, e percebeu que suas palmas eram calejadas, significado de muito treino.

— Você segura assim, e a move assim, entendeu? — Indagou em retórica, demonstrando passo a passo os movimentos com a espada. O pai de Solline era famoso por ter sido um dos melhores espadachins da vila. — Se fizer como fazia, o inimigo vai te desarmar e chutar sua bunda macia e gorda até você grunhir como um porco.

Seu orgulho masculino destroçou-se naquele momento, e Corvo desde aquele dia deixou de possuí-lo. Mesmo se sentindo humilhado, pediu com educação a espada de volta.

— Você deveria tentar um martelo. Você tem uma estrutura boa para armaduras pesadas, e um martelo necessita de força. Deixe as espadas para os esguios. — Sugeriu, devolvendo a arma.

E daquele dia até o momento em que a leoa dourada desapareceu, Corvo foi apaixonado pela mesma. Ninguém da vila nunca soubera de seu paradeiro, e Corvo as vezes tinha bons sonhos com ela, onde visitavam uma taverna... Não, espere, algo estava errado. Corvo nunca sonhara com nada disso antes. Foi então que percebeu que estava desmaiado.

Corvo abriu os olhos tentando entender o que era projetado pela sua visão e o que não era turvo. Colocou uma mão na cabeça, sentindo o sangue escorrer, e a dor lhe veio em um estalo pungente. Olhou para sua esquerda, onde um anão estava estirado e fedendo a álcool. Voltou o olhar para a taverna e viu um homem troncudo de suíças bem cuidadas e castanhas, vestindo roupas boas e coloridas. O homem olhou para o garoto com curiosidade antes de entrar na taverna novamente, batendo os pés no chão como uma mãe faz ao castigar o filho. Voltou momentos depois expulsando outros dois homens da mesma forma que fizera com o anão, com longos empurrões e chutes. A trupe formou um pequeno montinho de corpos no meio da rua. Briga de bar, percebeu Corvo.

— Urgh... Hidromel é bom até o momento que fica amargo como sal. — Comentou o que estava no topo, de orelhas pontudas. — Na minha terra chamamos isso de...

— Hidrosal? — Riu o que estava no meio, barbudo e com uma cicatriz no olho. — Você sempre inventa vários nomes, todos horríveis.

— Clalem a... Bloca. — Pediu o anão, o mais bêbado de todos. — Alguém anotlou a placla?

— Temos que voltar lá dentro e... Argh... Acabar com todos eles. — Arrotou. — Pilantras!

Corvo escutava tudo de queixo caído, em parte admirado por um grupo de pessoas tão diferentes serem tão unidas e em parte por parecerem pessoas que facilmente arranjariam confusão. E enquanto pensava, lembrou-se das próprias dores. Tocou o machucado na cabeça e preocupou-se, precisava dar um jeito naquilo antes que acabasse piorando ou infeccionasse. Tirou a mochila dos ombros e procurou algum remédio. Sua mãe era a sacerdotisa de Vila do Poleiro, e deixou-lhe algumas provisões para se precisasse. Tirou um pequeno frasco cilíndrico e despejou seu conteúdo amarelado e viscoso na mão, passando no local do ferimento. Por fim, pegou também uma camiseta velha, torceu-a e amarrou na testa, de modo a fazer parar de sangrar. Só então voltou-se para o trio que ainda conversavam entre si.

— Com licença. — Pediu Corvo, aproximando-se. Os três olharam. — Por quê vocês foram expulsos da taverna?

— Shiiiiiiiiu, porcos não falam. — Começou a dizer o anão, apontando para Corvo. — Especialmente os rosadinhos.

— Dargil, você não vê que isso daí não é um porco?! — Disse o de orelhas pontudas, tentando sair da pilha de corpos em que se encontrava. — É claramente um gnomo.

— Vocês são dois animais, isso daí é um garoto gordo e careca. — Explicou o da cicatriz, sorrindo para Corvo. — Desculpe garoto, esses dois quando bêbados raciocinam apenas o suficiente para pedir outra bebida. — Pigarreou. — Fomos expulsos porque quebramos uma mesa...

— Dluas. — Comentou Dargil.

— E um queixo, não se esqueça do queixo. De uma mulher.

— Se continuarem falando vão afastar o rapaz. Levantem-se.

Os três se reorganizaram e colocaram-se de pé, se ajeitando. Corvo conseguiu finalmente distinguir suas características. O que se intitulava Dargil tinha a altura de Corvo, mas sua compostura era de um adulto, tal como a barba acobreada e bem cuidada que possuía, de pontas trançadas e presas em anéis metálicos. Usava uma cota de malha. O de orelhas pontudas era alto e esguio, prendia os cabelos loiros em um rabo de cavalo. Em seu cinto sobre a armadura de couro deveriam estar presas adagas, mas sobrava apenas um espaço vazio indicando que foram usadas. Por último, o homem da cicatriz e barba rente ao queixo era robusto e carregava consigo uma clava.

— Sou Tadeo, este é Garian e Dargil. — Apresentou-os. — E você seria?

— Corvo.

— Clorvo? Tlá mais plara porco. Ou pleixe-bloi. — E vomitou. — Rosinha, sem pelos, gordinho. Ho ho ho ho ho ho. — Vomitou novamente.

— O que quer conosco, jovem? — Perguntou Garian, entregando um lenço para Dargil utilizar na barba.

— É a primeira vez que venho em uma cidade... — Comentou o garoto, um pouco tímido. — E estou faminto. Também foi a primeira vez que vi alguém ser expulso de uma taverna.

— Acontece com uma frequência maior do que deveria. — Admitiu o que carregava a clava. — Mas você deveria tentar, será bom para você criar músculos.

Corvo sorriu sem jeito.

— Acho que por enquanto eu vou tentar comer... Estou sem dinheiro.

— Não seja por isto. — E colocou a mão dentro do bolso. Os olhos de Corvo brilharam, esperançosos de que fosse ter o alimento bancado, mas tudo o que recebeu foi um caneco. — Se você balançar isso no meio da rua, vão colocar moedas. Dentro de poucas horas você conseguirá o suficiente para leite e pêra.

— Ah. Obrigado. — Agradeceu o garoto, decepcionado. O homem riu.

— Não fique com essa cara, tome. — E depositou duas moedinhas brilhantes dentro do caneco. — E boa sorte.

Corvo agradeceu com um aceno tímido e entrou na taverna.

A Taverna do Oleiro era assim chamada devido a todos os copos, pratos e talheres serem de barro, além do próprio taverneiro ter suíças castanhas semelhantes a cor dos objetos. O casebre era montado em madeira e pedra, de modo a ficar aconchegante para todos, independente de suas origens. Corvo entrou com a mão na cabeça, sentindo as têmporas latejarem, e sentou-se na primeira mesa que viu. Avistou um grupo de pessoas jogando cartas, outros cantando um coro, e alguns bardos tocando em um canto próximo ao balcão. O próprio dono aproximou-se, prestes a atendê-lo.

— Em que posso ajudá-lo? — Perguntou, com um carisma notável. Esfregava uma das canecas com um pano.

— Bom dia... — O raciocínio de Corvo estava lento devido ao machucado. — O que eu consigo aqui por duas moedas?

O taverneiro pegou ambas as moedas e mordeu, pensativo. As guardou no bolso.

— Uma única refeição, mas uma completa.

— Uma não basta. — Comentou em voz baixa, pensando em Edmundo.

— Tem o estômago tão grande assim, garoto? — O taverneiro riu, e suas suíças balançavam nas laterais do rosto como se tivessem vida própria.

— N-não é bem assim. — Durante quanto tempo sua própria aparência o assombraria? Só queria ajudar um amigo. — É que... Eu conheço uma pessoa que está passando fome e quero ajudá-lo.

A risada do taverneiro cessou, e seu próprio semblante transformou-se em algo escuso.

— Hmn... — Torceu o nariz. — Bondade é bem rara por essas bandas, não vou me comover e lhe dar algo de graça.

— Eu não ia pedir iss...

— Mas! — O interrompeu. — Vou lhe dar uma refeição completa, como me pagou para tal... E se você quiser trabalhar na cozinha pelo resto do dia, deixo você ter uma refeição de graça e passar a noite em um quarto onde os travesseiros não tenham piolhos. No entanto vão ter ácaros.

Corvo alegrou-se. Era uma boa proposta.

— Eu aceito! — Sorriu com todos os seus retos e bem cuidados dentes. — Por favor, eu gostaria de uma refeição, senhor taverneiro.

— Como quiser. — O taverneiro piscou.

Minutos depois Corvo reencontrou-se com Edmundo nos portões da cidade, dando-lhe a refeição que pagara. Sentaram-se próximos ao jumento que pastava tranquilo e amarrado a uma árvore. Corvo ainda estava faminto, contudo esqueceu-se disso ao ver D'Lar alimentando-se com tanto fervor, engolindo os pedaços de pão sem mal mastigar e tomando toda a sopa como se fosse água. O próprio leite - o taverneiro não permitiu que Corvo bebesse vinho - havia desaparecido em uma bebericada. Ele tinha um grande apetite, reparou.

— Por que você é mendigo? — Resolveu perguntar.

— Eu não sou. — Respondeu entre mastigadas. — E quem sabe um dia você venha a entender meu trabalho.

— Poderia me explicar.

— Você é pequeno demais para entender. — Engoliu. — Em altura e idade. Mas lembre-se de que peões, quando chegam no fim do tabuleiro, podem virar reis. Ou cavalos.

Corvo não compreendeu a referência colocada na frase de Edmundo. Nunca havia antes jogado xadrez, e só viria a lembrar-se disso anos no futuro, em um momento muito próximo de sua morte.

— De toda forma — Continuou a dizer D'Lar — Estamos quites.

— É, estamos. — Sorriu Corvo. Tinha feito um amigo, pensou. — Mas eu tenho que voltar para a taverna, prometi um dia de trabalho... Caso contrário morrerei de fome.

— Não vai morrer tão cedo, tem muitas gorduras para te sustentar ainda. — Gesticulou enquanto engolia o último pão. Estava plenamente satisfeito.

— Eu não como há umas quinze horas. — Ressaltou, colocando a mão na barriga avantajada. — Meu último alimento foi uma fruta.

O silêncio estava prestes a surgir entre ambos, quando o mendigo deu dois tapinhas amigáveis no ombro do gordo, empático. Sabia como ninguém o que era passar fome e não ter como enganá-la. Depois de poucos segundos, disse:

— Agora vá. — Aconselhou Edmundo, em um tom de ordem. — Nos encontraremos depois.

— Onde? — Quis saber o garoto, para poder ir até o local.

— Por aí. — Levantou-se do chão. — O mundo é menor do que imagina.

Corvo concordou, se erguendo com menos velocidade do que gostaria. Edmundo pôs-se a caminhar para longe, e não olhou para trás em momento algum, ao contrário de Corvo. Talvez o garoto ainda fosse muito apegado ao passado, ou estivesse tão acostumado com memórias que seria difícil lidar com um momento que poderia facilmente ser esquecido.

Acariciou o jumento mais uma vez e retornou para um dia de trabalho.


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Notas finais do capítulo

O que achou? Envie seu feedback!
Críticas? Eu realmente quero melhorar.

Até o próximo!



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