Lusco Fusco escrita por isa


Capítulo 3
Kosmic Blues


Notas iniciais do capítulo

Olá :)
Nota importante: Tem coisa de Cursed Child enfiada aqui no meio desse capítulo, mas não precisa ter lido pra entender, só avisando pelo spoiler.
Um beijo.



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Baby, there's something wretched about this.
Something so precious about this. 
Where to begin?

 

A primeira vez que Izzie e eu nos encontramos propositalmente foi no metrô. Eu cheguei quarenta minutos mais cedo que o combinado na estação, apenas para o caso de ter lido o horário errado ou enfrentar contratempos. Ela também chegou quinze minutos mais cedo do que o esperado e eu sorri como um idiota com o leve fantasma da possibilidade de ela também estar ansiosa para me ver. 

A ideia era que ela me acompanhasse até o trabalho. Eu sei que não é a coisa mais excitante do universo, mas eu já havia extrapolado todas as minhas folgas nas minhas tentativas de encontrá-la e além do mais eu gostaria de garantir que ela soubesse como me localizar, já que simplesmente passar todos os meu registros pessoais e endereço da minha casa parecia um pouco inviável, não só por ser uma coisa assustadora para uma primeira saída, mas também porque eu sequer sabia como/se contaria para ela sobre o pequeno detalhe de ser um bruxo morando em um bairro bruxo com uma família igualmente bruxa. 

Por enquanto estava confortável em me sentir protagonizando o clipe de alguma música insuportavelmente chiclete do Ed Sheeran.
Além disso, Isobel não se importava (ela havia sugerido a loja) e nós sairíamos para almoçar depois, o que significava horas inteiras na companhia da pessoa que eu estava ansioso para conhecer, apesar de termos feito o trajeto quase todo em silêncio porque Isobel estava empenhada em decorar o caminho.

Eu não me importava em andar quieto ao lado dela na luz preguiçosa da manhã. Eu não me importava com quase nada ao lado de Isobel e essa era uma das maiores vantagens em tê-la por perto.  Quando nós chegamos, ela foi direto para a prateleira de sua preferência (para isso ela tinha senso de direção).

— Você gosta? - Ela me perguntou, apontando para um gibi com uma cabine de polícia azul que eu sabia ser do seriado da BBC enquanto eu ia para trás do balcão.

— Lá em casa nós não somos muito fãs de TV. - era o jeito mais sutil de dizer que basicamente não tínhamos aparelhos eletrônicos. - E eu tenho uma relação de amor e ódio com viagens no tempo. - Acrescentei, sem querer.

— O que há de errado com viagens no tempo? – ela perguntou, se divertindo.

Eu pensei em Delphy, em vira-tempos, em Cedrico Diggory e, principalmente, em como eu sou estúpido e quase reverti toda a realidade que conheço tentando provar pra mim mesmo e pro meu pai que eu poderia ser impressionante.

— Nada. - eu respondi, forçando um sorriso. - Só tenho a impressão de que se eu pudesse voltar no tempo eu estragaria as coisas. 

Ela me analisou por um instante. Havia algo de adorável no modo como ela curvava o corpo um pouco para a direita para manter contato visual sem que uma estante ficasse entre nós.

— Que ideia horrível! Eu tenho certeza que destruiria o planeta, mas nem por isso deixo de me convencer do contrário. - Pareceu uma instrução indireta para eu ter um pouco mais de fé em mim. Havia tanta inocência na frase que eu quis desesperadamente contar tudo o que eu já havia feito de errado só para ela entender o escopo da coisa. Ao invés disso eu ri um pouco e tive que me conter para não sair de onde estava só para ficar mais perto dela.

— Você não destruiria. Você tem cara de super-heroína. 

Ela sorriu e desviou os olhos dos meus por um instante. Eu a havia desconcertado e estava muito orgulhoso daquele vestígio vermelho nas bochechas dela. Mas Izzie se recuperou rápido e disse bem humorada:

— Oh, inferno, eu sabia que eu não deveria ter esquecido meus óculos. - Brincou e, para a minha felicidade, tornou a me olhar. 

Havia um incentivo no jeito que ela me encarava que me fazia ficar zonzo de expectativa. É importante dizer que afora encontrá-la, eu não tinha nenhuma intenção concreta em mente. Era óbvio que eu me sentia atraído por ela, mas isso nunca tinha me feito perder o senso de realidade. Vê-la, no entanto, me induzia a uma dezena de pensamentos perigosos.

— Com o disfarce seria impossível, realmente. - Eu entrei na brincadeira.
Ela se aproximou e se curvou sob o balcão, me desestabilizando por completo.

— Você deveria saber desde já: isso pode acabar muito mal, sendo você só um humano comum. - Implicou.

— Então imagino que seja um ótimo  momento para te contar que faço parte de uma sociedade semi secreta de humanos que sabem usar magia. - Avisei e ela gargalhou. Foi ai que, na minha imaginação, eu encostei os meus lábios nos dela, engolindo o riso produzido pra mim. Na realidade, entretanto, eu abri a pequena trava para que ela pudesse se sentar em um banco perto de mim.

— Que bom que estamos esclarecidos. Os segredos acabariam conosco. - Ela disse de gozação, de maneira dramática e boba, mas eu senti um arrepio. 

Era só uma garota, eu sequer a tinha beijado e, ainda assim, a possibilidade de perdê-la já me causava a sensação absurda de vazio. Se eu tivesse encarado com sinceridade a força desse pensamento, eu nunca teria deixado esse sinal passar. Parecia um spoiler cruel de tão clichê.  Mas estou me adiantando na narrativa.
Naquele momento, eu estava mais interessado em impressioná-la. 

— Que bom que seriam os segredos e não o fato de que te trouxe para o meu trabalho no nosso primeiro encontro. 

— Não é como se eu tivesse outra referência. - ela disse me jogando a flanela que eu estava procurando. Eu havia propositalmente deixado a minha  varinha em casa para não correr o risco de sacá-la do bolso aleatoriamente, como teria feito ali. Acho que ela notou a minha surpresa, porque se explicou:

— O que eu quero dizer é que de onde eu venho as coisas geralmente não acontecem em  encontros. Não na concepção que vocês têm, pelo menos.

— E isso é mais fácil ou mais difícil? - Perguntei, verdadeiramente curioso.

— Depende da personalidade dos envolvidos. - eu adorava o jeito como ela falava, colhendo as palavras de uma máquina de tradução interna. Era como se ela estivesse compondo uma sinfonia o tempo inteiro. Eu sei que em tese todo mundo precisa pensar antes de falar e que nós selecionamos as palavras que vamos usar, mas no geral, não parece bonito assim.

— Entendo. - Eu podia apostar que mandaria mal em qualquer sistema de encontro em qualquer parte do mundo, mas não quis ser muito autodepreciativo. Ao invés disso, limpei uma vitrola antiga que ficava suspensa na parede do caixa. - Deixa eu tentar tornar isso um pouco mais típico então... Precisa valer pelo menos como experimento social. - brinquei. - O que você gostaria de ouvir?

Ela abriu um sorriso tão grande antes de correr para os vinis disponíveis que eu pensei que ficaria de bom humor pelo resto do dia.

— Puxa. Isso é complicado. - murmurou depois de dez minutos dedilhando capas empoeiradas em duvida.

— Diz a pessoa que combate o crime a noite. - eu a fiz rir e ela me voltou com Janis Joplin no braço. Eu não tinha a menor ideia do que isso revelava sobre ela, então coloquei o vinil, interessado.

Eu não sabia quase nada sobre Janis Joplin, o que considerei um sacrilégio depois de ouvi-la gritar a primeira musica inteira da maneira mais brilhante que uma pessoa poderia gritar. Além do mais a mulher tinha o poder de fazer Isobel balançar o corpo de um lado para o outro no que parecia ser a tentativa mais infeliz de dança que eu já havia visto na vida, então já era minha cantora preferida. 

— Isso parece... Elaborado. - eu disse, sem poder conter um riso que escorreu pelos cantos. Ela riu também, aproximando-se.

— Pra exercer minha profissão salvando o mundo e tudo mais é  necessário ter múltiplos talentos. Veja. - Ela girou sob os calcanhares, rodando o vestido como uma criança de cinco anos e fez um gesto indescritível com os braços - Muitos anos de técnica.

— Impressionante. - E tentei dizer isso sem lembrar do breve vislumbre de coxas visto a um segundo. Janis parecia saber do que eu estava falando em as good as you've been to this world.

— Essa é a hora que você não me deixa ser boba sozinha. - Isobel avisou e eu fiz o possível para dançar também. 

Eu não dançava. E eu acho que uma parte dela sabia disso. E acho ainda que era por saber que ela havia pedido. Tinha algo em Isobel que me forçava para a beira de um precipício de incertezas. A primeira delas era sempre relacionada ao quão ridículo eu poderia parecer perto dela sem que isso a fizesse sair correndo. Mas ela aprovou meu empenho e até segurou minha mão uma vez no meio do processo. Foi inebriante. Você nunca sabe quando segurar a mão de alguém se torna algo como uma espécie de salvaguarda até então insuspeita.

E quando começou a tocar piece of my heart (essa eu conhecia, assim como todo mundo) e nós cantamos juntos, por um instante eu deixei de verdade de me importar com a imagem que eu estava projetando ou com o que eu estava fazendo da minha vida num geral. Por minutos inteiros eu deixei de ser o cara insuportável que eu era e fui só uma voz desafinada acompanhando uma música. E, depois – mas quase simultaneamente - apenas olhos interessados em Izzie cantando "leve outro pedacinho do meu coração agora, baby". E, ainda, mãos incontidas que finalmente pousaram na cintura que gostariam. E estou certo de que teria sido só boca, não fosse o sininho da loja anunciando cliente. 

Voltar a mim foi decepcionante. Eu me afastei de Isobel e olhei para frente, prendendo o melhor palavrão que conhecia. Lily deslizou tranquilamente para dentro da loja.

— Bom dia - Sorriu com todos os dentes.

— Bom dia - Isobel respondeu ao meu lado, mais empenhada do que eu em fornecer um bom atendimento.

— Eu estava pensando se por acaso eu não encontraria por aqui o que eu estava procurando. - Ela disse casualmente, observando prateleiras aleatórias, folheando mil quadrinhos até encontrar uma revistinha de vingadores da costa oeste. Foi lendo por cima, até parar em uma página. Triunfante, ela me mostrou o que havia achado, uma página em que Wanda diz "então, isso é poder! que coisa agradável. quão tola eu fui por me negar esses prazeres".

— Eu estava certa - disse sem perder o brilho nos olhos. Colocou o gibi no balcão e abriu a bolsa.

— Não precisa. - murmurei. Eu pagaria qualquer coisa para ela não continuar esfregando sua vitória pessoal na minha cara.

— Não, eu insisto, irmãozinho. 

Suspirei, me vendo forçado a dizer:

— Lily, essa é Isobel. Isobel, essa é Lily, minha irmã mais nova.

— Olá. É um prazer. - Lily estendeu a mão e Izzie a segurou. Eu quis morrer até Lily voltar a verificar a bolsa.

— Sempre me confundo com...

— Contas? - Sugeri, fulminando-a com o olhar. Eu sabia que ela diria "conversão para dinheiro muggle". Ela simplesmente não conseguia decorar os valores corretos.

Antes que Lily pudesse responder, Isobel foi simpática e disse:

— Eu também sou péssima com isso. 

O problema é que Lily não era. Lily era muito boa com números, no geral. De acordo com ela, era necessário ter precisão com todos aqueles graus de mapas astrais. 

— Ah, é bem pior que isso, eu... - Mas ela me olhou e mudou o que quer que pretendia dizer: - tenho problemas com qualquer coisa muito racional. - E me abriu um sorriso dúbio, antes de pagar pela compra. Acenando para Izzie, ela se dirigiu a saída e eu tive a impressão de que ela estava quase saltitando.

— Toda a sua família é assim? – Isobel cochichou, um segundo depois.

— Assim como?

— Recém-saída de um comercial da coca cola cheio de pessoas bonitas.

O elogio implícito melhorou um pouco meu humor, mas não o suficiente. Eu pensei no meu pai e na cicatriz enorme que agora ele carregava na bochecha direita, muito maior, mais grotesca e evidente que a famosa na testa, além do ar pesado de auror e herói de guerra. Me peguei considerando que não seria fácil  apresentar minha família. E depois pensei em que diabos eu estava pensando por considerar apresentá-la. 

— Não exatamente. – Eu disse, dissipando as ideias febris.

— Sei. - Ela me olhou desconfiada, mas parecia estar se divertindo. Uma segunda olhada em mim, no entanto, fez com que ela perguntasse: - Você tá bem? 

— Tô. - disse depressa. - Tô sim. - mas eu tinha perdido o final da nossa música, a chance de beijá-la e agora tocava "ball and chain", uma música que poderia ser considerada no mínimo depressiva. 

— Certo. - O mesmo ar de desconfiança, mas dessa vez sem traço de humor. Eu não queria estragar nosso dia sendo tão eu mesmo, então me forcei a continuar conversando.

— Tenho mais dois irmãos além de Lily. - Conversas casuais eram difíceis para mim, mas Isobel era uma boa ouvinte. Ela passava a segurança e a disposição necessária. Eu podia visualizá-la no metrô escutando uma velhinha tagarelar infinitamente sobre coisas chatas sem demonstrar o menor sinal de enfado, mesmo sentindo-se assim por dentro.

— Mesmo? Você tem cara de filho único. 

— Eu sou o terceiro na ordem. Segundo, para ser sincero. Meu irmão mais velho não é meu irmão de verdade, é afilhado do meu pai.

— Entendo. Legal vocês serem próximos. 

— Os pais dele morreram quando ele era um bebê, então a avó dele e os meus pais se revezaram nos cuidados. - Os olhos dela cresceram e eu me dei conta de que estava falando demais.

— Eu sinto muito. 

— Não, tudo bem, eu que sinto. Não sei por que estou falando disso. A verdade é que eu também não tenho muitas experiências com encontros. E olha que eu moro aqui desde sempre. - Era um alivio ser inteiramente franco com ela. 

Eu já havia saído com outras garotas. Duas, para ser mais exato. As lembranças não eram as melhores possíveis. Havia uma névoa densa de vergonha e desconforto envolvendo minhas escassas experiências amorosas/sexuais. E depois de Delphy, com quem eu não tive nada (a não ser que a vontade de homicídio conte como algo), Isobel era a primeira pessoa que conseguira me despertar interesse duradouro. E eu queria muito que ela soubesse disso sem parecer esquisito.

— Eu tenho uma irmã, um ano mais nova que eu. - ela disse, colocando a mão em cima da minha. - Em resumo ela é bem mais espirituosa e nesse momento está rodando o mundo dentro de uma van. Os meus pais são professores universitários, então eu imagino que é um pouco decepcionante eu não ter nenhum diploma ou sequer uma pista do que fazer academicamente. E eu vim pra cá porque a minha avó está doente. Nada muito grave, mas eu achei que eu deveria ficar por perto. Como ela esteve por mim quando eu era pequena. Nós nascemos aqui. Minha avó, pai, irmã e eu, mas eu vivi praticamente a vida inteira no país da minha mãe. E eu sempre achei que minha cor preferida fosse vermelho, mas esses dias eu entrei em crise ao descobrir que era azul.  Essas são as coisas que sei sobre mim, no momento. - ela pausou, me dando um tempo para absorver as informações. – E além disso, eu acho que você está se saindo bem nesse experimento social.

Ouvir isso me deixou tão aliviado e agradecido que eu a beijei como vinha querendo há algum tempo. Eu sabia quão pouco profissional isso era da minha parte e como eu poderia perder o meu emprego se o dono da loja surgisse naquele instante, mas eu não me importava, desde que ela continuasse me retribuindo.


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