Lusco Fusco escrita por isa


Capítulo 2
Alossauro




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Nada em vão no espaço entre eu e você.

 

— Tudo bem. Dois pontos. Primeiro ponto: você tem certeza que ela existe? Segundo ponto: você tem consciência de que esse não é um plano muito bom, né? – Scorpius disse, sugando com o canudo o resto do milk-shake no fundo do copo, de propósito. Eu fiz uma careta para o som desagradável e voltei a fitar o crânio do alossauro que estávamos analisando a dez minutos ininterruptos.

Nós estávamos no Museu de História Natural e embora meu amigo tenha aproveitado bastante a primeira hora de deslumbramento, agora ele só estava analisando o quão pouco saudável era a razão de estarmos ali: em síntese, meu espírito de perseguidor.

Era o sétimo ponto turístico que eu visitava em duas semanas na esperança de encontrar Isobel Dawson casualmente, mas Scorpius não precisava ser abastecido com essa parte da informação. Já era ruim o suficiente ele saber que eu tinha feito notas mentais sobre os locais que estavam marcados de caneta vermelha no mapa que Dawson havia me mostrado, supondo que ela os visitaria.

— Ela existe. – Eu respondi com meu tom irritado habitual. – Eu nunca teria a capacidade de inventá-la tão bem.

Scorpius encolheu os ombros, em indiferença. Eu estreitei os olhos.

— Rose mandou você perguntar isso, não foi?

— Bom, ela tem suas preocupações.

— Esse é um modo muito sutil de falar sobre o péssimo hábito da sua namorada de meter o nariz onde não deve, Scorpius.

— Oi! Minha namorada! – ele ameaçou um dedo indicador na minha direção. – E até onde eu sei essa descrição que fez sobre Rose cai bem em você também.

Eu abri a boca para responder, mas percebi que não tinha resposta.

— Desculpa. – balbuciei, meio constrangido. – Só estou um pouco nervoso. Eu sei que não é um bom plano, mas é o único que eu tenho.

— Você sempre tem a opção de parar de usar suas folgas e trabalhar normalmente. – Scorpius aconselhou. – Se ela estiver interessada em você, é provável que apareça no local onde te achou inicialmente.

— Não. – suspirei. – Quantas vezes eu vou precisar dizer? Ela estava perdida. Não tinha a menor ideia de como havia parado ali, o que, diga-se de passagem, parece ser a realidade de todos os clientes do Sr. Friedrichsen.

Scorpius abriu um meio sorriso de solidariedade e me deu um tapinha meio incerto no ombro direito. Eu agradeci mentalmente por ele ter entendido que era a hora de parar de tentar argumentar comigo.

— A parte boa é que nós temos o dia inteiro. – ele tentou me animar.

Eu concordei.

Sem dizer mais nada, nós voltamos a encarar os restos mortais do dinossauro e eu pensei por um instante como seria ficar ali sentado, aguardando para sempre, contemplando o alossauro, divagando sobre as mais variadas coisas no universo, mas sem pensar de verdade – só especulando, existindo, esperando e resistindo até ser uma caricatura de mim. Depois um esboço. Depois vestígios e ossos.

*

— Você a encontrou? – Lily me perguntou no instante em que pisei em casa. Era noite e eu havia calculado minha chegada para o momento em que meus pais já estivessem dormindo e James estivesse farejando confusão em bares bruxos. Tirei o casaco, lamentando não poder me livrar dela também.

— Não, e eu apreciaria se você parasse de invadir minha privacidade através das suas borras de qualquer coisa. – Eu apontei para a xícara que ela estava segurando casualmente antes de me sentar ao seu lado na mesa de jantar.

— Achei que você não acreditasse nisso. – Minha irmã sorriu. – Chá?

— Não, obrigado. – disse, meio ranzinza.

— Você sabe, não há nada a temer, se você não acredita. – continuou.

— Lily, por favor...

— Desculpe. Pisciana. – ela abriu um sorriso largo, sabendo que eu não tinha a menor pista do que ela estava falando. Grande parte das nossas conversas eram assim.

— Tudo bem. Eu só estou cansado.

— Você vai encontrá-la, Al. – ela disse, dando um tapinha de consolação nas costas da minha mão. – Vai ser legal. – ela considerou um instante e finalizou: - Você vai aprender uma coisa ou duas.

— Sobre o que? – eu cometi o erro de perguntar.

— Sobre ser gente. – ela piscou e se levantou em silêncio, me desejando boa noite do topo da escada. Eu suspirei e fiquei um bom tempo quieto antes de ir para o meu quarto também.

*

No sábado seguinte, eu já havia desistido de encontrar Isobel. Em parte apenas pelo prazer de dizer para Lily que ela estava errada, e em parte porque ter esperança cansa. Apesar disso, eu havia selecionado uma lanchonete estratégica perto de dois pontos turísticos e me convencido de que era perfeitamente plausível me encontrar ali com meus amigos. Nós três preferíamos o anonimato oferecido pelos estabelecimentos comuns. Além disso, e daí se estávamos um pouco espremidos na mesa do canto por conta de um grupo excursionista asiático?

O lugar era bonito e vintage, e embora fosse impossível conversar decentemente, valia a experiência na minha visão pessoal parcialmente alterada nas ultimas semanas.

— Você vai ter que me desculpar, mas isso é a sua cara. - Rose disse de mau humor depois do terceiro esbarrão. Eu notei que Scorpius até tentou lhe barrar com um olhar, o que ela prontamente ignorou sem qualquer traço de culpa. - Uma garota misteriosa de um país distante. É tão conveniente...

— Conveniente? Como isso poderia ser conveniente pra mim? - Minha voz subiu um decibel. A senhora-da-razão já estava pronta para se explicar. Era impressionante como ela nunca titubeava. Às vezes eu tinha a impressão de que Rose poderia estripar alguém enquanto debatia de maneira eloquente sobre a política bruxa, sobre o brexit, sobre Freud, astronomia,  metafísica ou Downton Abbey. Ela transitava entre os mais diversos assuntos com uma segurança sobre-humana independente do contexto. Às vezes eu também sentia como se eu fosse a pessoa hipoteticamente estripada. Aquela definitivamente era uma vez dessas.  Ela ia falar/me abrir sem dó com aquela língua afiada, não fosse o fato de que nesse momento, meu melhor contra argumento, a própria Isobel Dawson, surgiu como um milagre, atravessando a porta de vidro da lanchonete e me fazendo soltar chocolate quente pelo nariz. 

— Ah, Al... - Rose me encarou com uma careta deprimente. - Tenha dó.

Minhas mãos voaram no mar de guardanapos disponíveis e eu me limpei do melhor jeito possível, ainda meio engasgado de surpresa e zonzo de sorte.

Me levantei da cadeira num impulso e foi aí que ela me viu. O sorriso curto de reconhecimento que eu recebi foi o suficiente para me deixar consciente de quão ridículo era estar ali de pé como um maldito soldado da guarda real. Me sentei novamente e ela seguiu em direção ao balcão. Desespero e bile me subiram à garganta simultaneamente e eu pensei que se não falasse com ela, se eu fizesse bobagem de novo... Não. Com a cabeça a mil, apoiei o braço e me levantei de novo.

— Isso é doloroso de assistir. - Scorpius murmurou, sofrendo de vergonha alheia. Eu não o julgava. Eu sabia quão patético devia estar parecendo, mas forcei meu corpo em direção a ela. Era estranho que isso fosse tão difícil considerando o quanto eu queria estar perto de Isobel.

— Oi. - eu disse e tive medo de me trair e falar coisas como "te procurei como um psicopata nas ultimas duas semanas".

— Hey. - ela parecia muito mais confiante e calma. Isso deixou meus nervos em frangalhos. - Bom ver você! - havia uma amabilidade natural e tão anti-europeia nessa frase que eu simplesmente não soube o que fazer. 

Não havia nada no meu manual de conduta que me ajudasse a responder a garota que eu estava interessado quando ela se sentisse feliz em me ver.

— Ok. - eu disse, engolindo a seco.

Ela riu um pouco e assentiu com a cabeça. Eu quis me socar.

— É bom ver você também.  - mas a frase na minha voz saia errada, deturpada de um fluir orgânico, robotizada mesmo, apesar de ser uma constatação sincera. - Eu estava esperando que você voltasse lá na loja. - eu disse, já desistindo de qualquer tentativa de parecer normal. - Porque...  chegaram novas coisas. De doctor who. Não sei se você gosta - Eu me apressei em dizer, sentindo todo meu rosto quente como o inferno. - Eu apenas não pude deixar de reparar que você parecia interessada naquele dia...

— Gosto. E eu teria voltado. - Ela me cortou com gentileza, me livrando do sofrimento de justificar minhas mentiras. - Se eu soubesse fazer isso.

Eu quis gritar para Scorpius um “EU DISSE”, mas ao invés disso, sorri, sem nenhuma resposta para ela. Eu já estava pronto para decretar minha derrota, quando algo me surgiu.

— Eu posso te levar lá. Ou em qualquer outro lugar, na verdade. - Suspirei, cansado de tentar fazer isso de maneira charmosa e sutil: - Se você quiser sair comigo.

Ela me encarou com uma expressão que parecia ser de genuína surpresa. 

— Seria bem legal. - Disse por fim.

Não apenas legal. Bem legal. Bem legal sair comigo. Ela não tinha a menor ideia do que estava falando, mas eu não poderia estar mais exultante. Eu poderia beija-la ali mesmo, se eu não fosse, bem... Eu.

Depois disso, tudo foi um pouco mais fácil. Nós trocamos números de telefone como as pessoas fazem geralmente quando querem manter contato e não utilizam varinhas e nem têm corujas domésticas. Eu precisei suprimir a vontade de segurar a mão dela e sair correndo naquele mesmo instante e também precisei evitar a ideia de chamá-la para se sentar conosco (Rose podia ser bem intimidante e a ideia de um encontro duplo me dava calafrios).

Voltei para minha mesa com a mesma dificuldade que senti para sair dela. 
— Então? - Scorpius quis saber e eu abri um sorriso de lado.

Até Rose sorriu. E em silencio, o que significava duas coisas: ela havia gostado de Izzie e aprovava minha postura.

— Porque você não a chamou pra cá? - Minha prima quis saber. A aprovação sempre durava muito pouco com ela.

— Porque eu não sou imbecil, com todo respeito. - Rose girou os olhos, mas Scorpius cobriu minha retaguarda.

— Seria estranho, Rosie. - Ele disse e lançou um olhar discreto para Izzie. - Alem do mais, ela já está acompanhada.

— Saramago. - Rose leu o autor na capa do livro que ela tinha aberto. - Você tem um interesse amoroso  que lê Saramago. - eu não tinha a menor ideia de quem ele era, mas parecia um desses caras distintos e isso me fez sorrir abertamente, como se o mérito fosse meu.

O resto da tarde foi um misto de  alegria e agonia mudas. Estar no mesmo lugar que Isobel era uma sorte absurda, mas não estar interagindo com ela (mesmo que de maneira desastrosa) parecia uma imensa perda de tempo. Quando nós finalmente nos levantamos para sair, senti alivio em ter a desculpa de ir me despedir.

Ela se levantou para me abraçar e de novo a naturalidade do gesto me pegou de surpresa. Eu queria viver naquele universo alternativo dela em que abraçar desconhecidos parecia comum e despretensioso, quando na minha realidade, era apenas a melhor coisa que poderia me acontecer no dia. Acho que o susto me fez apertá-la um pouco mais forte do que o necessário, mas Isobel não fez nenhuma objeção corporal. Eu quis morar ali e morei, durante os curtos segundos em que isso foi socialmente aceitável. E soube, no momento em que a soltei que eu teria sérias dificuldades em não tocá-la ou em não me apaixonar por ela.

— A gente se fala. - era para soar casual, mas saiu importante como uma promessa.

— A gente se fala. – ela repetiu, como uma garantia.


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