The End Of The Peace escrita por Saffra Everdeen Mellark


Capítulo 23
O pesadelo mal começou




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Não durmo à duas noites, mal como e mal bebo, recuso-me a fazer isso. Não saio desta suite desde aquele dia, desde que revelei as minhas verdadeiras cores.

Não sei ao certo quanto tempo passou, pelo que consegui contar, já lá vão duas semanas de exílio. Todos os dias tentam falar comigo sobre isso. O Finnick visita-me todos os dias e tenta fazer com que eu me abra, contando o que sinto. O meu irmão acompanha a Daisy, não abre a boca durante nenhuma das visitar, apenas a Daisy tenta que eu desabafe, mas não obtém qualquer resultado. A Hayley também me vem ver diariamente, tenta que eu fale com ela, no entanto não implora como os outros fazem. Ela acaba por me contar o que tem acontecido no exterior, a diversão que teve ao quase aniquilar toda a gente com o seu machado, tranquilizando-me logo a seguir, porque penso sempre que ela matou alguém. 

Sempre que tentam que fale disso, eu recuso-me. Digo que não quero falar do assunto e que se não trouxerem nada de novo e interessante, ou se põem na alheta ou ficam caladinhos, se insistirem tanto em fazer-me companhia. 

Por essa razão, as conversas mais longas do dia que tenho são com a Hayley. Ela é diferente e percebe-me. O facto de humorizar e ridicularizar cada coisa que acontece num dia faz-me sentir melhor. Acho que o facto de ter feito o que fez na Arena, a faz compreender que eu não estou a passar por algo fácil. Penso que o meu irmão não fala comigo por essa mesma razão, por compreender demasiado bem e se rever em mim. Provavelmente, está chocado e não fala comigo, porque ao contrário da Hayley, ele não superou todas as mortes que causou. Ele não matou apenas na sua Arena, ele matou em nome do Capitólio ao realizar os Jogos todos aqueles anos, quem consegue esquecer isso? 

—Olá Willow - o Finnick entra e senta-se ao meu lado. Dá-me um beijo na bochecha, eu limito-me a olhar fixamente para a frente. É a nossa rotina diária. Ele chega, senta-se, dá-me um beijo na bochecha, tenta falar comigo, eu renego-o e ele faz outra coisa qualquer para se entreter e dar-me alguma companhia que eu não faço a mínima questão de ter. - Toda a gente está a perguntar-se quando vais sair, temos todos saudades tuas. O Gale está preocupado contigo, não te veio visitar porque não sabia como reagirias à presença dele e não te quer destabilizar.

—Com reagiria, queres dizer se não o matava de vez, não é? - ele vira a minha cara para ele. É a primeira vez que o Finnick traz algo de novo para mim, alguma notícia, por mais estúpida que seja, é algo. Algo para além de me tratar com pena. Algo para além de me tentar consolar como se eu fosse uma criança de cinco anos que perdeu o ursinho de peluche favorito. Algo para além de desvalorizar as minhas ações. Algo para além de ficar ali, a fazer de corpo presente para eu não me sentir sozinha, o que não adianta de muito, porque não me faz sentir mais acompanhada.

—Não. Eu sei que não farias isso - rio fracamente. Enraivece-me o facto de ele falar como se nada tivesse acontecido, como se eu não tivesse feito o que fiz.

—Toda a gente pensava que eu não faria isso, que não teria coragem, que não conseguia. Quando fomos a ver, eu não o fiz porque me pararam - respondo. - Eu sou uma assassina, aceitem isso de uma vez por todas!

—Tu não és... - interrompo-o. 

—Eu sou! Percebe que eu não sou a pessoa que toda a gente pensou que eu fosse! Eu sujei as minhas mãos com sangue dele, eu ia matá-lo porque eu queria! Eu não sou tão boa pessoa como me pintaram, nunca fui! - deito cá para fora com bastante revolta e mágoa dentro de mim, não toda a que tenho acumulada, mas uma parte significativa.

 

—O próprio Gale tinha noção dos riscos que estava a correr ao pedir-te para o fazeres, mas ele não te castigou porque tu não tiveste culpa! Ele próprio disse que as emoções nos mudam e viramos pessoas completamente diferentes quando somos dominados por elas! - eu questiono-me como é que ele consegue ver-me da mesma forma depois de ter assistido àquela cena, como é que as pessoas conseguem ver-me da mesma forma após eu ter feito tudo o que fiz? Pessoas inocentes pagam pelos meus erros todos os dias, eu matei imensa gente, e não matei mais porque realmente me pararam a tempo.

—Mas eu quis matá-lo! Eu sabia o que estava a fazer durante aquele tempo todo! Eu quis que ele simplesmente morresse ali, estendido, e acabar o serviço com as minhas mãos sujas de sangue - ele parece chocado. - Eu quis fazer com ele, aquilo que não tive oportunidade ou coragem de fazer ao Dylan.

—Como assim? O que é que o Dylan tem a ver com isto tudo? Ele está morto, pensei que não sentisses remorsos pela morte dele - ele parece confuso.

—Toda a gente sabe que eu sempre tive nojo do Gale, mas eu sempre abominei o Dylan desde o momento em que ele subiu àquele maldito palco! Então, quando ele começou a ser extremamente arrogante para nós, a falar mal da minha família, eu sempre quis matar o Dylan, sujar as mãos com o sangue dele, mas eu não tinha capacidade para isso! Ontem, quando o Gale estava a dizer aquelas coisas horríveis, foi como se o Dylan tivesse reencarnado no corpo do pai! - lágrimas começam a escorrer pelo meu rosto, carregadinhas de raiva, de mágoa, com um ligeiro toque final de culpa. - Foi então que eu tinha condições e capacidade para cumprir aquele desejo, acabar com a raça daquela gente de vez!

—Ei! - ele abraça-me e eu largo-me.

—Mas eu ainda não acabei! O que mais me magoou não era o facto de serem coisas ofensivas, mas ter plena noção de que eram verdade - ele parece chocado com tudo. - Eram os meus sentimentos e pensamentos mais profundos, mais secretos, ninguém podia saber acerca deles! E ele expôs-me ali, à frente de toda a gente, o que me deixou ainda mais furiosa! Toda a gente ficou a saber o que eu realmente sentia!

—Willow... - ele chega-se a mim e eu já choro imenso.

—NÃO! SAI DAQUI! É MELHOR PARA TI FICARES LONGE DE MIM! SAI! - ele agarra-me com força, não me deixando fugir dele e olha-me nos olhos muito sério. O azul dos olhos dele está imensamente escuro e eu consigo ver-me neles.

—Não! Eu não vou sair daqui, nunca! Eu não vou deixar-te afastar-me! Não quero ir embora e não consigo ir embora! - ele parece realmente dizer a verdade.

—Mas tu tens que ir, eu não quero que te magoes! - digo chorosa.

—É o que estás a fazer-me ao afastares-me de ti! - insiste.

—Porque é que insistes tanto? Porque é que simplesmente não me deixas e vives a tua vida? - pergunto.

—Porque te amo! - as palavras que ele pronuncia pesam em mim. - Eu amo-te, porra! Eu não consigo viver sem ti, é por isso que passo aqui todo o tempo possível! Eu não te vou deixar nunca! Ouve bem isto e mete-o na cabeça!

—Tu tinhas dito que... - ele interrompe-me.

—Eu disse muitas coisas no passado para negar tudo a mim mesmo! Eu não quis aceitar o que estava a acontecer e então disse isso da boca para fora! Decidi manter tudo, mas foi quando te vi ali, vulnerável, que uma parte de mim ficou destruída. Não conseguia ficar longe de ti, por isso vim todos os dias, e mesmo quando me tratavas mal eu não conseguia deixar-te e tinha que ficar aqui, nem que fosse a olhar para a parede. Foi aí que percebi o quanto eu queria saber de ti e quanto não me eras indiferente! Cansei-me de fugir aos meus sentimentos, eu preciso de ti para ser feliz! - tudo aquilo fica a ser consumido lentamente pela minha consciência.

—Ficas comigo? - pergunta ainda destruída.

—Sempre - ele abraça-me e deitamo-nos os dois, eu no peito dele, como já não fazíamos desde que a Arena aconteceu. Continuo a chorar, ele está lá a abraçar-me e a acariciar os meus cabelos. Começa então a cantar.

Just close your eyes, the sun is going down

You'll be alright, no one can hurt you now

Come morning light, you and I'll be safe and sound

 

—Finnick, chamaram-te para prestares uma prova qualquer - a Hayley entra e vê-nos naquelas figuras. - A sério? Hoje que aconteceu alguma coisa é que te chamam, mas quando ficas aqui horas e horas a olhar para a parede, ninguém quer saber!

—Olha, eu vou ter que ir, eu volto assim que sair, ok? - eu assinto e ele dá-me um beijo na testa e levantando-se em seguida. - Hayley, fica com ela.

—Está bem - ela diz com uma voz entediada e ele fecha a porta. - Então hoje estás no mood de falar de ti ou preferes saber as novidades do exterior?

—Que aconteceu? - ela suspira.

—Então, a Daisy vomitou imenso, o Ryen está preocupadíssimo com ela, mas já está tudo bem. Acho que o iogurte que ela comeu lhe caiu mal ou coisa assim. O Finnick passou o dia mais morto que vivo. Os putos da academia pegaram-se uns com os outros e foram castigados. O Gale continua a querer saber de ti, mas nós não lhe dizemos nada, porque tu nunca falas e pareces um fantasma - segundo a minha mãe, ela é tão filha da Johanna que não há dúvidas nenhumas na questão da maternidade.

—Não deste um show com o teu machado? - ele nega.

—Consideraram-me perigosa com aquela arma nas mãos - ri. - Eu sou perigosa de todas as formas, qual o segredo?

—Falei com o Finnick - ela aponta para o céu como agradecimento, penso eu...

—Estava a ver que nunca mais, ele seguiu os meus conselhos de uma vez por todas! - fico confusa. - Sim, eu dei-lhe conselhos e pelos vistos deram resultado. Queres falar comigo também? Aviso que não sou psicóloga, por isso não estou para choradeiras!

—Eu sempre senti nojo pelo Gale, mas eu absolutamente abominava o Dylan com todas as minhas forças! - ela ri.

—Acredita que não eras a única, toda a gente sentia isso! - ignoro o comentário dela.

—Sempre quis matar o Dylan com as minhas mãos, sujar as minhas mãos, queria que ele morresse e o sangue dele estivesse nas minhas mãos! O problema é que nunca tive capacidade para isso, nem coragem para tal. Quando o Gale me disse aquelas coisas foi como se o Dylan tivesse reencarnado no corpo do pai para me atirar aquelas coisas todas à cara, a diferença é que eu podia finalmente concretizar o desejo que tinha, tinha capacidade e coragem para elas, não só aquela vontade! - explico.

—Confesso que não foi muito surpreendente para mim - fico surpreendida. - Ele expôs-te ali, tocou-te naquelas feridas, contou os teus segredos e sentimentos mais profundos, toda a gente ficou a saber como te sentias. Mas não tens que te sentir assim, nós todos percebemos o teu lado. Somos Vitoriosos, todos já passamos por isso, aliás ainda passamos por isso! Não estás sozinha e ninguém tem nojo de ti.

—Eu sou uma assassina, sou uma péssima pessoa! - ela ri.

—Se fosse por esse prisma, todos seríamos assassinos! Nós somos sobreviventes, é diferente! E para ti, como sobrevivemos, somos más pessoas! Isso não é assim! - ela meio que se revolta.

—Ninguém que é boa pessoa vence os Jogos! - retorno e ela estala os dedos à frente os meus olhos.

—Querida, acorda de uma vez por todas! Tu dizes as coisas mas não percebes o que querem dizer! Ninguém ganha os Jogos, ponto final! - ela diz. - A partir do momento em que entras no Comboio de volta a casa, esquece! Tu nunca mais vais sair do Comboio! Agora és mentora, sempre que te calhar a ti, vais acompanhar crianças que provavelmente vão morrer lá! Todos esses anos a tua vida privada vai tornar-se a vida do Capitólio! Quando os teus miúdos morrerem vais sentir que não fizeste o melhor que podias, que és culpada, mas não és! Com o tempo, claro que vão ser mais uns dos quais não te vais lembrar da cara, não te vão aquecer, nem arrefecer. Os anos passam e 99% das vezes, não vais fazer sequer questão de lhes dar conselhos e saber o nome deles, sabes que provavelmente vão morrer e tu não te vais querer apegar a eles! A falta de esperança deles vai ser irritante e não compreensível, vais fartar-te e vais negligenciá-los, a menos que realmente vejas que na Arena, eles têm uma chance. E quando forem pessoas que realmente significam algo para ti, vai custar muito mais porque sabes que aqueles podem ser os últimos dias dessa pessoa. Entende de uma vez por todas que tu podes sair dos Jogos, mas os Jogos não saem de ti! Willow, o pesadelo ainda mal começou...

Fico estática com tudo o que ela me diz, explica muito a indiferença de mentores quanto a Tributos. Lembro-me que os meus pais raramente sabiam os nomes dos Tributos, ou que os guardavam na memória. Lembro-me da minha mãe falar do Harry como um sem esperança sem qualquer hipótese, e infelizmente as acusações dela virem a confirmar-se.

Eu vou ser mentora num Quarteirão, um ano em que o Capitólio não olha a custos. Há um novo Centro de Treino, há um novo Centro de Tributos, mas acima de tudo, há uma Arena nova extremamente mortífera à espera de Tributos assustados e sem qualquer certeza ou esperança de sobreviverem ao Banho de Sangue.

A Hayley tem razão, isto mal começou e eu não sei como vou fazer para ajudar o Tributo que me tiver como mentora, eu não percebo nada disto. Está bem, eu sobrevivi uma vez, uma miragem distante para muitos, mas isso não faz de mim um ser humano apto para fazer com que a infeliz criatura sobreviva. Na verdade, eu não sei como é que vou sobreviver à vida após os Jogos!

A única coisa que resta desejar é que a sorte esteja a meu favor, e pelo que tenho observado, ela não está!

Continua...


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