Deixe-me te amar escrita por Nathália Francine


Capítulo 19
Dezenove




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A água salgada se misturou com a chuva e o vento forte.

O universo parecia chorar comigo.

Parecia se apiedar de mim.

Olhei ao redor e ao longe vi uma toalha vermelha sendo enterrada na areia pelo vento, um casal havia passado a tarde ali, mas a mudança de clima os afugentou. O amor dos dois ainda pairava no ar o que não ajudou a minha situação.

Os trovões cortaram o céu e eu me levantei cambaleando apenas para cair de joelhos novamente quando ouvi em alto e bom som a voz de Amy dizendo “sim” para Gael.

A terra tremia com os trovões e os sinos na minha cabeça pareciam não se calar. O amor de Gael por Amy era tão profundo que cortava minhas veias. Ouvi uma Porta se abrir, mas eu estava deitado, encolhido e sujo de areia e nem ao menos me dei ao trabalho de olhar, apenas senti uma mão pequena em meu ombro.

— Meu pai?

Levantei a cabeça ainda tremendo e vi Flerah com tanta preocupação no rosto que minha dor apenas aumentou. Logo atrás dela estavam todas as minhas filhas já encharcadas com a chuva e algumas delas choravam.

— Como...

Arly veio para o lado de Flerah e acariciou meu rosto:

— O Espelho...do nada ele ficou branco e logo em seguida mostrou o pedido de Gael para a Amy. Todas nós vimos. Vimos também você pai...é verdade então?

Eu recomecei a chorar e enterrei o rosto entre as mãos novamente deixando minhas lagrimas se misturarem com a areia.

A vergonha me corroeu.

Ali estava o Ser do Amor jogado na areia em baixo de uma tempestade sendo motivo de pena para suas filhas!

Flerah sentou e puxou meu rosto com os dedos pequeninos e gelados:

— Você nos moldou. Nos deu a vida. Nos deu seu sangue. Nos ensinou todo que sabemos. Cuidou de cada uma de nós...chorou nossas lagrimas e sorriu com nossos risos. Agora é nossa vez de te cuidar.

Eu permiti que elas me levassem para casa e por uma semana permaneci no meu quarto. Cada vez que levantava minhas pernas tremiam e eu caia novamente. As Canções na minha mente se transformaram em meros sussurros que eu não conseguia decifrar e eu sentia meu arco vibrar e a cada lagrima que eu derramava. As coisas apenas pioraram quando Flerah entrou em meu quarto as duas da manhã de uma terça-feira gaguejando e tremula.

— Pai...pai...

Eu me sentei na cama assustado e ao ver seu desespero, esqueci minha dor e depois de anos de criação, Flerah se jogou em meus braços e chorou como havia feito quando seu primeiro casal se separou. Eu a abracei forte e beijei o alto de sua cabeça. Esperei até que ela se acalmasse e segurei seu rosto com a mão acariciando sua bochecha:

— Minha filha, se acalme. Eu estou aqui.

— Meu pai...aconteceu de novo. Dessa vez...dessa vez foram dois! Os primeiros de Pureza e Orgulho.

— C-como assim?

— Não sabemos. Bella acabou de me contar...s-são os primeiros...apenas os primeiros.

Ela recomeçou a chorar e eu a abracei com mais força.

— Nada vai te acontecer minha filha. Eu jamais vou deixar que alguém encoste em você. Nem que pra isso eu tenha que queimar minha própria flecha!

Assim que ela parou de chorar a peguei no colo e abri uma Porta:

— Hang Én.

Quando passamos a beleza da gruta foi abatida pelo barulho das discussões.

Pureza e Orgulho estavam sentados no chão abraçados e chorando. Honestidade, Morte e Vida estavam na frente deles impedindo que Solidão e seu Ser avançasse nos dois. Em outro canto Ódio e Inspiração estavam observando a cena sem interesse nenhum enquanto seus primeiros encaravam tudo com a maior atenção possível registrando mentalmente cada detalhe de cada palavra dita. Sabedoria estava de mãos dadas com sua primeira, ambos sem esboçar nenhuma expressão e logo à frente dos dois, Sucesso estava sentado no chão brincando com a areia fofa distraidamente. Assim que a porta se fechou atrás de mim todos me olharam.

Honestidade foi a primeira a falar:

— Agora que estamos todos aqui, podemos conversar civilizadamente.

Coloquei Flerah no chão e ela correu para os braços do primeiro de Honestidade, os dois seguravam as lagrimas e se sentaram escondendo os rostos.

— Onde estão os outros?

Foi Morte quem e respondeu:

— Eles não virão. Disseram que não sairão de perto dos seus primeiros por nada.

— Entendo...

Vida pigarreou e nós o olhamos:

— Precisamos saber o que está acontecendo...isso não faz parte da ordem natural da nossa criação e se continuar a acontecer perderemos o controle e o mundo caíra em ruinas!

Uma gargalhada seca desviou nossa atenção e não me surpreendi ao ver que vinha de Sucesso.

Eu o observei bem, ele ainda usava o mesmo terno, porem ele estava manchado e mais amassado do que naquela noite e com alguns rasgos. Seu cabelo estava mais desgrenhado e sua feição era pavorosa.

Ele se levantou e limpou a areia da calça sem realmente se importar se estava limpo ou não, em seguida encarou Vida:

— Agora vocês se importam em descobrir quem foi? Onde estão as acusações? – Ele caminhou e encarou cada um de nós – Onde estão as tochas e tridentes? Eu não vi essa clemencia toda quando meu filho foi assassinado! – Ele parou em frente a Vida e cuspiu no chão – E então oh monarca dos monarcas, primeiro dos primeiros! Será que você que foi o primeiro a caminhar pela Terra ao lado do seu irmão tirano tem essa resposta? Onde estava essa preocupação quando a vida do meu primogênito foi tirada? Onde estava essa piedade quando eu senti a existência dele se esvaindo das minhas veias?

Ele pulou em direção ao pescoço de Vida, mas Morte o agarrou pelo cabelo e o jogou longe:

— Controle-se e nem pense em encostar um dedo no meu irmão! – Morte nos encarou e todos nós, até mesmo Sucesso abaixou a cabeça – Eu e Vida estamos aqui a muito mais tempo que vocês. Vimos a Terra ser criada e eu não vou admitir que ameacem a mim ou ao meu irmão dessa forma!

Ele fuzilou Sucesso jogado no chão que não se controlou e recomeçou a chorar. Vida pôs a mão no ombro de Morte e caminhou até Sucesso, o pegou pela mão e o abraçou. Em seguida suspirou e disse:

— Meu irmão está certo. Estamos aqui a muito mais tempo que todos vocês, mas nem mesmo nós temos todas as repostas – Ele olhou para Sabedoria – Você é o regente do Saber. Sabe mais sobre tudo do que todos nós juntos...eu te imploro, nos de uma luz!

Um silencio banhou a gruta e o eco de uma goteira ao longe se tornou o único som, até que Sabedoria suspirou e balançou a cabeça.

— Sinto muito. É contra as regras da minha criação.

Assim que ele terminou a frase, Orgulho pulou em sua direção e o jogou no chão desferindo socos:

— Contra as regras? Minha filha está morta! Morta!!! Você sabe o que é isso?

Quando Morte e Vida puxaram ele de cima de Sabedoria eu o ajudei a se levantar. As feridas em seu rosto já estavam se fechando, ele se esquivou de mim e passou pela Porta que Iris, sua primeira, já havia aberto. O silencio reinou e novamente, um a um todos se foram com a jura de que se não fosse descoberto quem estava fazendo isso, poderia se esperar o fim da existência dos Materiais.

Antes que eu pudesse ir, Morte me chamou. Flerah me encarou ainda agarrada em mim e ele abaixou e acariciou sua bochecha:

— Olá Flerah.

— Olá Morte...

— Eu tenho que falar com seu pai. Pode ficar com Ian um pouco? – Um jovem careca com uma cruz marcada na testa e olhos vermelhos em um terno branco sorriu para Flerah e estendeu a mão – Você sabe que ele te protegerá.

Ela sorriu para Morte:

— Não tenho dúvidas.

Eles caminharam para longe mas permaneceram ao alcance de nossas vistas.

Morte me abraçou e cochichou:

— Sinto muito.

— Obrigado – ele me soltou e suspirou. Eu conhecia aquele suspiro. Era o suspiro de más notícias – Morte...o que aconteceu?

— Bem...ainda não aconteceu. Antes de eu vir para cá um nome surgiu em minha foice Cupido.

Meus ossos gelaram e minhas pernas começaram a tremer novamente:

— A-amy?

Ele balançou a cabeça lentamente e tirou a foice do peito. Na lamina um nome brilhou: Gael Bonaste.

Eu cai de joelhos e sussurrei:

— Quando?

— Logo...

 

 

O “logo” veio duas semanas depois.

Morte me contou o acontecido: um pintor havia ficado enfurecido e cego de inveja pelo sucesso que as obras do artista novato da cidade conquistaram; então o seguiu até o salão onde sua mostra estava para acabar e aguardou até que todos fossem embora e quando Gael ficou sozinho ele entrou e atirou duas vezes na cabeça do jovem italiano e em seguida se matou.

Eu estava agora no cemitério sentado em baixo de uma árvore olhando de longe a cerimônia de despedida. Não havia muita gente então foi rápido. Antes que o caixão fosse abaixado a atenção foi direcionada a jovem de cabelos vermelhos que se afastou de todos e veio em minha direção. Ela estava com uma calça jeans com pequenos respingos de tinta rosa e uma camiseta preta que era de Gael. Seus olhos estavam inchados e vermelhos, mas ela não chorava. Se sentou do meu lado em silêncio e começou a brincar com uma formiga que passava pela grama. Assim que todos foram embora ela me olhou, pegou minha mão, me beijou e foi embora sem dizer nada. Eu fiquei ali, sentado vendo ela ir embora abraçada consigo mesma.

Quando ela sumiu de vista abri a mão e vi a aliança de noivado que Gael havia lhe dado. Ouro branco polido com uma inscrição dentro: “per sempre”


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