Love Jokes escrita por Bojack


Capítulo 6
Capítulo V - Retomando o Controle


Notas iniciais do capítulo

Este é um capítulo sobre conflitos. Quem nunca esteve tão perdido e conflitante consigo mesmo que pensou que iria enlouquecer? A vida é feita de escolhas, então, leia este capítulo e me diga: qual seria a sua escolha?



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  Não podia evitar, ansiava pelo término daquela sessão. Seus olhos espiavam de forma aflita o seu relógio de pulso. Um relógio prateado, com símbolos numéricos gregos; um presente de seu noivo pela formatura na universidade de Arkham. Desde que a sessão havia começado, esperava terminar. Já não era interessante; sentia-se presa, de certa forma.

  Enquanto ouvia o paciente falar, muitas vezes dispersava-se em pensamentos avulsos e longínquos enquanto sua vista se perdia na janela e o mundo lá fora. Estava entediada, era a verdade. Aquele à sua frente já não era mais um desafio.

  O homem deitado na poltrona Divã contava sobre seu passado, lembranças dolorosas de seus pais e sua infância deturpada. Aquele homem era a exata vítima do fanatismo religioso e abusos dolorosos.

  Contava completamente imerso em lembranças traumáticas, lacinantes, e por vezes confusas, sobre seu pai; um homem bruto, cujo acreditava que o cristianismo era a luz para a escuridão da imundice social. Para o velho fanático, a bíblia era um manual literal da vida; fosse o velho testamento, ou o novo.

  Seu pai acreditava que Deus purificava os filhos de diferentes formas, para suas irmãs: trabalho escravo e abusos sexuais constantes; para ele: penitências cruéis, cobertas de tortura e humilhação. Sua mãe, por vez, era quase tão bitolada religiosamente, quanto seu pai. Acreditava que a mulher era uma mera serviçal do homem, criada unicamente para lhe agradar e gerar filhos; talvez, sua mais absurda crença, seja a de que a família deve se manter “pura” em linhagem. Abuso era crença naquela família.

  Crescendo em uma casa onde a moralidade era completamente deturpada, o pequeno Logan Howard desenvolveu uma doença que lhe tornou insociável; e após a morte de quinze famílias, pais e mães, deixando assim, mais de vinte crianças órfãos, o psicopata paranoico esquizofrênico, finalmente fora encontrado e detido.

   Em seu julgamento, por muito pouco Howard não fora enviado direto para a penitenciária de Gotham, Blackgate. Graças a seu advogado, na época Harvey Dent, um homem excepcional, considerado pela grande maioria, um dos melhores advogados de Gotham, fora enviado para o Asilo Arkham. Onde buscaria, ou seria forçado a buscar, sua sanidade jamais conhecida, sua moralidade comum inexistente.

  Quando conhecera sua psiquiatra atual, a Doutora Quinzel, Howard já havia sido jogado em Arkham há quase um ano. Seu psiquiatra anterior jamais conseguira alguma forma de interação social utilizável com Howard. Para o paciente paranoico, tudo o que o psiquiatra queria era maltratá-lo de alguma forma. Howard acreditava que falsos anjos viriam até ele para corrompê-lo à tragédia, mas, um dia, em algum momento, um real ser divino, um anjo de pura bondade viria e lhe salvaria de toda a escuridão onde vivia. Quando a Doutora Quinzel se tornou responsável por ele, ele soube imediatamente: era ela, o seu anjo benevolente.

  Com sua voz mal sendo notada pela psiquiatra à sua frente, ele continuava a contar suas histórias do passado. Ela por sua vez, torturava-se internamente, percebendo cada vez mais o quanto sua vida pessoal de alguma forma afetava sua vida profissional. Havia algo, como imãs que magneticamente, mesmo com cargas completamente opostas, se repeliam intensamente, sendo assim impossível de manter em equilíbrio ambas as partes.

  No dia anterior, após o retorno de um adorável e esclarecedor final de semana, notou que seu empenho até então perfeito e empolgante a respeito de um de seus pacientes, havia decaído imensamente. Ele notara. Ela estava diferente, mais fria. Havia terminado o dia sentindo-se derrotada emocionalmente.  Sua autoestima havia sido destruída pelo controle a qual se impunha e fora forçada a impor em seu paciente.

  Não queria estar tão distante do caminho a qual antes estava a trilhar. Nele sentia-se feliz, como se encontrasse o seu próprio caminho, a oportunidade da sua vida, e uma pessoa inigualável, insanamente divertida e interessante; era seu futuro profissional, seu paciente insanamente intenso, ou sua vida pessoal, seu noivo carinhoso e compreensivo. Uma escolha árdua.

  O homem antes deitado na poltrona Divã, agora se levantava de forma a sentar-se. Olhava para sua psiquiatra de forma curiosa, e ela notara isto. Com um sorriso simpático ela demonstrava uma expressão de questionamento. “O que ele está olhando?” Se perguntava.

— O que houve, Senhor Howard? - Ela perguntava sem entender o porquê ele havia interrompido sua história e se levantado de forma tão repentina. Acima de tudo, por que a olhava com aquela expressão curiosa?

— Está tudo bem, Doutora? – Ele perguntou com uma das sobrancelhas erguidas.

— Claramente, Senhor Howard. Por favor, continue a história. – Ela pedira, percebendo que o paciente havia notado seu estado distraído.

— Se quiser, pode falar comigo, Doutora. – Howard não possuía a menor base para aconselhar, e mesmo que houvesse, isto seria extremamente errado. Um paciente psicótico aconselhar sua psiquiatra. Hilário. “Talvez eu deva contar esta para o Sr. C.” Ela pensou, sentindo um leve sorriso engraçado surgir em seus lábios.

— Não, obrigada, Senhor Howard. Eu estou bem. – Ela olhara em seu relógio de pulso e determinara um horário de término da sessão mais cedo do que o planejado, mas, não aguentaria mais tanto tempo com aquele paciente.

  O motivo do tédio da Doutora Quinzel, vinha de que o paciente já apresentava grandes avanços com o tratamento; suas histórias já eram sabidas e memorizadas pela psiquiatra. Não havia nada mais para interpretar, nada mais para estudar. Era um livro repetitivo, velho e sem graça, que a Doutora Quinzel estava ansiosa para guardar.

— Ah sim, Doutora Quinzel... – Howard havia se lembrado do tão aguardado e prometido colchão. Ele e a Doutora Quinzel haviam apostado como recompensa, por uma leitura completa e boa interpretação da mesma, um colchão novo para sua cela, já que o colchão comum dos pacientes era de longe desconfortável. -.... Sobre o meu colchão, sabe, aquele da nossa aposta...

— Sim, eu já conversei com o Diretor sobre ele. O Diretor disse que estaria a ver isto o mais rápido possível para você. Tudo bem? – Quinzel sorria, simulava felicidade e satisfação para com seu paciente.

— Perfeito! Estou ansiosíssimo! – Dizia Howard, animado gesticulando com as mãos unidas em forma de oração e clemência.

— Só aguarde um pouco, está bem? O Diretor é um homem bastante ocupado, mas, ele já está bem ciente de sua evolução.

— Fico feliz. Eu já me sinto outra pessoa. – Era uma frase clássica. Perigosa, realmente.

— Claro que sim. Mas, ainda temos o que trabalhar, então se esforce. Tudo bem? – Ela o olhava sobre os óculos redondos que usava. Um olhar intelectual, perspicaz e extremamente sexy. Howard, porém, não à enxergava de forma sexual. A Doutora Quinzel era como uma divindade para ele, um anjo de luz e purificação. Ela era sua guia no inferno de Dante.

  A Doutora Quinzel se levantara de sua poltrona e caminhara até sua estante de livros do outro lado da sala. Howard nada disse, apenas mantinha sua atenção e curiosidade naquela mulher, confiava plenamente nela. Não demorara muito, até que após algumas leituras rápidas de capa, retirando um por um e pondo de volta ao reconhecer que não era o que procurava, ela finalmente encontrara. “Contos felizes de um pai”.

— Aqui está! – A Doutora Quinzel olhara a capa que além do título, havia também uma foto em preto e branco onde mostrava metade da face de um homem velho e sorridente, com suas rugas expressivas, cujo mostravam que havia muita história para contar.

  O livro “Contos felizes de um pai” se tratava de uma série de lembranças retratadas pelo seu autor Europeu, Karst Kirnov. O homem retratado no livro, o próprio Karst contava em vinte e cinco contos, suas lembranças a respeito do nascimento, infância e crescimento de seus dois filhos: Samin e Argov.

  O interessante deste livro é a forma como seu autor descreve os momentos mais impactantes de sua vida em relação a seus filhos, transmitindo toda a emoção que sentira em seus determinados momentos como se o próprio leitor estivesse vivenciando aquela situação. Chorar, comover-se, alegrar-se e impactar-se não era uma opção e sim obrigação ao ler aquele livro.

  A verdade era a de que a Doutora Quinzel viria a testar seu paciente, Logan Howard, na questão onde mais era afetado: paternidade. Para Howard, tanto a mãe, como o pai eram demônios, cujo único objetivo era aterrorizar e corromper a criança ainda pura; porém, Howard considerava que as mães apenas tornavam-se pervertidas e monstruosas por graças à influência e ordem do pai, o verdadeiro mau.

  Era a forma perfeita de provocar o trauma e ao mesmo tempo mostrar ao paciente outra versão de paternidade. Uma versão mais amável. Mais compreensível. Mais paterna, realmente.

  A Doutora Quinzel se aproximara de seu paciente sem sentar-se em sua poltrona, para mostrar-lhe o livro. Entregou-lhe por fim o livro de capa escura e mole e aguardou sua reação. Sabia o que veria. Uma luta interna tornou-se clara na expressão do paciente. Era o que esperava.

  Finalmente retornou à sua poltrona, donde observava com clareza a reação contínua de perplexidade e incompreensão que se desenvolvia interna e externamente em Logan Howard. Era divertido, porém, previsível. Ele vai aceitar, por mim.

— O que é isto? – Sua voz tremia um pouco.

— Um livro. Quero que leia. Tudo bem? – Ela sorria como um anjo. Ele admirava isto.

— Bem... Se a Doutora quer. Está certo. – O paciente demonstrava intenso repúdio pelo assunto abordado no livro.  Ela escrevera tal atitude em sua prancheta.

— Tenho certeza que ajudará em sua recuperação. Vamos conversar sobre o livro em todas as sessões antes de continuarmos a escrever os próximos capítulos do seu livro, está bem? – Explicou ela, observando apenas um aceno de cabeça como resposta. A Doutora Quinzel sabia que trabalhar estes conflitos ainda existentes dentro de Howard ajudariam à acimentar a nova perspectiva e percepção de Howard sobre a relação entre pais e filhos.

  Howard demostrara uma contínua e perceptível melhora em sua cegueira emocional que transformava pais em criaturas horrendas de forma generalizada, entretanto, ainda havia recaídas e conflitos internos devido a maneira como Howard lembrava dos males passados, e estes conflitos e percepções sombrias e depressivas, hora tocados por um súbito ódio que ressurgia quase como um reflexo muscular, se tornavam claros durante a escrita que vinham produzindo juntos como experimento para sua terapia.

  Estas últimas semanas, Howard e Quinzel têm escrito o livro sobre a vida e o passado daquele paciente, vítima e assassino, ao fim de cada sessão. Era evidente o quão bem aquela ideia estava funcionando e o como tanto Logan Howard era forçado a reviver e refletir a respeito do que passara e fizera, como Quinzel podia observar o quão profundo seu trabalho, a terapia que fazia naquele paciente, havia adentrado em sua psique e o quanto ainda havia de melhorar ou corrigir.

— Muito bem, então! – Olhou o relógio em seu pulso e agradecera que os minutos a qual determinara em pensamento, havia enfim passado. – Certo, senhor Howard, chegou a hora. Vamos? – Ela se levantara novamente da poltrona, ansiosa para se direcionar à porta.

— Ah, sim, que pena. – Logan Howard ficara de pé, segurando o livro em sua mão esquerda com as pontas dos dedos.

  A Doutora Quinzel tomara à dianteira, sentindo uma energia controlada em suas pernas ser expelida em passos rápidos até a porta de metal. Abrindo-a chamou ambos os seguranças: “Frances” e “Ronn”. Os dois já trabalhavam com a Doutora Quinzel havia algumas semanas, após o infeliz pedido de Luca para transferência. Particularmente Quinzel não gostara dos dois novos parceiros de trabalho. Lamentava a saída de Luca.

 Os dois grandalhões adentraram a sala e deram início ao protocolo de segurança para transferência de localidade do paciente. Eram homens extremamente regrados. A Doutora Quinzel pegou-se imaginando o que seu paciente, o Coringa, faria com aqueles dois, se em liberdade. Por algum motivo, pensar naquela possibilidade lhe parecia tragicamente hilário.

Já havia tempos, talvez desde o início de seu trabalho com o Coringa, que vinha tendo pensamentos, cujo, em algumas poucas vezes de autoquestionamento, se perguntava o “por quê?”. Este autoquestionamento a respeito do seu comportamento e envolvimento estranhamente intenso com aquele paciente tinha se tornado muito mais constante e real desde o último final de semana. Ele era uma mina de ouro, uma passagem para um futuro promissor, um trabalho que brilhava ao sucesso, mas, então, por que quando estava com ele se sentia tão... Estranha?

  ______________________Coringa________________________

  Aquele retângulo cinzento completamente exposto parecia cada vez menor com o passar do tempo. Era deprimente. Não importava como tentava olhar aquele lugar, não melhorava de forma alguma. Um pesadelo a qual não planejava manter por muito mais tempo.

  Sentado no velho e duro colchão padrão do Asilo Arkham, o homem insano aguardava. Seus pensamentos retrocediam até sua última consulta; havia algo errado, podia sentir. Era como o sexto sentido de um predador. Ela estava diferente.

  Nas últimas semanas em que conversara com sua psiquiatra, como de costume, era como um pássaro bicando as sementes a qual seu dono lhe dava. Como ele queria. Ela era sua chave, seu passaporte, sua salvação daquele lugar imundo. Estranhava a atitude incomum à qual ela apresentara no dia anterior.

  Verdadeiramente esperava que seu mais novo brinquedo não estivesse permanentemente defeituoso. Seria lamentável, ela parece tão divertida. Claro, ele sabia, ainda restavam alguns ajustes para a perfeição. Muitos, na verdade. Mas, o caminho aparente para sua perfeita criação, estava a se formar, bloco por bloco. Ao menos era o que esperava.

  Uma única ideia alternativa bem colocada, e tudo viria a ruir. Somente uma forte distorção moral, uma fria lobotomia cerebral ideológica e batidas repetitivas sob um aspecto marcante, esclarecedor, poderiam tornar irrefutável a insanidade como único meio de fuga. Só o que precisava, era que seu alvo, sua bela e anômala psiquiatra, questionasse sua própria visão do mundo e da realidade em que vive.

  Na tarde anterior, a Doutora responsável por seu tratamento, demonstrava um comportamento tão mais frio do que o habitual. Intolerante sobre a tragédia a qual envolvia seu humor, e incisiva, de forma quase vulgar, se não estúpida e completamente fastidiosa em seus questionamentos, mostrava que havia alguma perturbadora e deplorável mudança comportamental.

  Aquela atitude incomum da parte dela, que lhe fazia comparável, senão similar a qualquer outro psiquiatra sórdido daquele asilo pútrido, não era de longe, parte de sua personalidade.

 Tinha de admitir: aquela mulher era mesmo impressionantemente incomum. Bela em aparência, corpo fabuloso, personalidade completa e surpreendentemente desvairada, apenas presa em uma jaula de poucas correntes, louca para sair e conhecer a si mesma. Ele ansiava por soltar a fera. Temia que se perdesse antes que tivesse a chance.

  Em seus pensamentos, imaginações sobre o futuro que lhe aguardava, aquela mulher já era sua. Uma propriedade já destinada, sem possibilidade de fuga ou extravio. Sair da rota, ou da coleira, não era permitido. Não se apegava com facilidade a nada, mas, sentia que estava aos poucos, se apegando a ela.

  Mesmo que ela tivesse outro, sabia que não duraria muito mais tempo. Ele seria o único. Seria o seu vício. Sua necessidade. Apenas tinha de derrubar os blocos, um de cada vez. Esperar não era agradável para ele. Porém, infelizmente, sabia que era fundamental.

  Na consulta do dia anterior, decepcionou-se ao ter todo seu ânimo e gosto cortados por uma sensação de sufocar em uma infeliz prisão, criada pelo gelar desanimador em perguntas cansativas. “Você falou da sua mãe. O que ela era para você?” ou ainda: “Após os eventos com seu pai, descritos pelo senhor, o que houve?”, o que durante duas semanas havia sido momentos divertidos e intrigantes, agora mais parecia um interrogatório policial.

  De qualquer forma, aquelas perguntas haviam desencadeado uma série de algo a qual ele mesmo não poderia classificar como lembranças, embora as mesmas parecessem. Lembrar-se de algo ante a sua letal mudança, era como rebobinar uma fita danificada; os ruídos e imagens distorcidas, nem sempre eram parte do filme original, mas, sim consequências do dano físico e químico acarretado ao objeto. “Imaginação ou lembranças, não importa realmente. Tudo se torna mais divertido desta forma.” Ele pensava.

  As lembranças, ou meras imagens que haviam tocado sua mente fértil, voltavam-se para horas após o surto macabro de seu pai. Lembrava-se de não ter fechado os olhos, mas, permanecer inconsciente por todo o trauma psicológico e físico a qual vivenciara. Lembrava-se do líquido quente que molhava o seu rosto ferido, caído ao chão. Seu corpo frágil, pálido e fraco, com a face mergulhada na rubra sensação de estar morto, ou quase.

  Lembrava-se como havia levantado com as mãos forçando o chão coberto por seu próprio sangue. A sensação ardente, quente e dolorosa em sua boca. O gosto do metal ainda estava lá. Aos poucos, conforme a dor retornava ao seu corpo, as lembranças daquela trágica noite vinham como estacas que perfuravam sua mente e coração de forma tão profunda que a dor física parecia ínfima em relação à sua chocante noção do que havia ocorrido.

  Pondo toda a força que seu corpo trêmulo podia ceder, ergueu-se devagar e errante ao se apoiar na parede atrás de si. Recuperando aos poucos sua noção de espaço e localidade, com imagens perturbadoras e brutais explodindo em sua mente, pôs seu olhar a vasculhar a cozinha ao seu redor, em busca de sua mãe.

  Não demorou até que a encontrasse pouco mais de um metro de distância. Arrastando-se em meio à cambaleios até seu corpo frio, arremessou-se ao seu lado. Até aquele momento, o garoto ainda acreditava que sua mãe pudesse estar viva.

  A poça de sangue sobre a qual o corpo pálido daquela mulher estava caído, se estendia até mais à frente. Era uma quantidade absurda de sangue, mesmo uma criança sabia disto. O garoto não entendia o que havia acontecido. Como podia entender?

  Mesmo após confirmar a morte de sua mãe, não sentiu a menor necessidade de comover-se. De qualquer forma, a dor em sua boca não lhe deixaria gritar e não havia para quem chorar. Nunca houve.

  Sentiu seu corpo estremecer, junto à uma sensação de frio repentino. O cenário ao seu redor parecia se distorcer sob aquela realidade pavorosa. Estava morrendo? Assustado, pôs seus dedos sobre o ferimento de corte que seu pai havia feito em um dos cantos de sua boca. Não sangrava tanto à ponto de causar anemia, tinha certeza. Então o que era?

  Pondo-se de pé, cambaleante, andou para fora da cozinha. De alguma forma, sua mente fraca lutava para sobreviver, mas, para aonde iria? Estava fraco demais para andar até o hospital mais próximo, e ainda mais fraco para raciocinar qualquer demais alternativa. Ainda assim seu corpo parecia movimentar-se só.

  Uma imagem, porém, lhe fez despertar uma sensação confusa dentro de si. Ao passar pela sala, próximo à porta de sua casa, caído num canto do corredor, encharcado de seu próprio sangue e urina, extremamente fétido, estava o corpo inerte do assassino de sua mãe, seu pai. Suicídio?

  Como nunca antes, uma langorosa e insólita gargalhada fora exposta por aquele garoto debilitado. A dor que sentia em sua boca não lhe fizera parar, mas ao sentir suas pernas cederem, soube que tinha de ir.

   Quando saíra da casa onde vivia, e que agora mais parecia cenário de um tenebroso filme de horror, percebera que ao longe, no céu ainda escuro, pequenos raios de sol já se expunham. Sentiu também o frio úmido da noite e a brisa gélida da manhã lhe espancar a pele e martirizar o ferimento em sua boca. Sem ter onde se apoiar, aquela criança cambaleava e tremia.

  Não sentia medo, nem tristeza. Não sentia nada. Sua mente apenas queria sobreviver, seu corpo magro e pequeno, apenas não queria desistir. Vagou solo pelas ruas e avenidas que surgiam à sua frente. Pouco conhecia daquele mundo. Pouco conhecia sobre a crueldade e falsa moralidade. Para uma criança, o peso da sociedade hipócrita era ainda mais devastador.

  Não gritou por ajuda, nem ao menos sussurrou, não crescera aprendendo sobre generosidade humana; pouco realmente sabia sobre isto. Era como uma lenda para ele. Sobreviver era o único aprendizado real de sua infância. Passo à passo, tentou manter-se forte.

  Podia ver vultos distorcidos nas ruas pela fraca consciência a qual se forçava a manter. Aparentes pessoas, ou alucinações em pontos de ônibus, ou caminhando apressadamente pelas calçadas. Carros passavam poucos centímetros do pequeno delirante, buzinas altas e agressivos xingamentos não lhe afetavam, pouco existia para seus ouvidos quase tampados pelo frio e fraqueza.

  De forma covarde, a sociedade lhe ignorava. Julgavam-no como um garoto perdido, entorpecido pelo consumo de drogas, quais ele mesmo nunca havia ouvido falar. Sentia o sangue quente escorrer pelo queixo e pingar de sua pele fria, e mesmo que visivelmente ferido, ninguém se propunha a ajudá-lo.

  Em determinado momento, sentiu seu corpo paralisar e junto dele a consciência se esvair. Tudo ficara escuro em um giro alucinógeno, mal pôde sentir suas pernas se dobrarem e seu corpo impactar ao chão. A escuridão lhe olhava de perto.

  Ali ficou o garoto desvalido, jogado em meio à pista, como a carcaça seca de um animal falecido. Ninguém para ajudá-lo, mais era visto como um obstáculo em meio às ruas imundas da cidade de Gotham. Não havia lágrimas para ele. Não havia ajuda para um filho perdido daquela cidade espurca.

  Carros desviavam sua rota do corpo caído daquele pobre menino, não por pena ou preocupação, mas, por pressa de chegada em seus próprios problemas. Algum tempo se passara ali, tempo suficiente para que o corte feito na boca infantil do menino inconsciente parasse de sangrar. Em algum momento, chamaram a polícia de Gotham. Reclamações apenas.

  Algo agarrara as pernas e braços do garoto. Podia sentir. Mesmo que sua consciência estivesse distante de seu corpo, e a fraqueza lhe impedisse reagir, ele podia sentir. Seus pequenos olhos com imensa fragilidade abriram brevemente. Policiais, foi o que vira. Nada mais. Tudo escuro novamente.

  Quando acordara outra vez, desta vez sentindo seu corpo menos exíguo, percebera que ainda estava no chão frio e duro de Gotham. Desta vez, na calçada. Não em seu meio, claro, quem lhe pusera ali não objetivava atrapalhar os bons pedestres. Jogado em um canto úmido, ao lado de um beco, forçou todos os músculos do seu corpo para reagirem. Levantou-se, outra vez.

  Vagou a cidade de Gotham, perdido, sem saber se estava próximo ou ainda distante do hospital o qual lutava para chegar. Quando finalmente encontrou, percebera que não lembrava do caminho até aquele ponto da cidade. “Quando foi que andei até aqui?” estava fraco e não conseguia pensar direito, sua cabeça doía.

  Próximo à porta do hospital, enfim, sentiu como se seu corpo desistisse inteiramente. Mais uma queda. Desta vez, como que se algo dentro dele estivesse muito errado, a criança começara a ter pavorosas convulsões. Estava em um estado crítico.

  Dentro do hospital, uma enfermeira vira toda à cena, e em meio ao pânico e desespero gritara por ajuda enquanto corria o mais rápido que podia na direção daquela criança em óbvio e aparente estado crítico. Uma luz em meio ao obscuro caos.

  Suas alucinações, ou lembranças, reais ou não, foram interrompidas ao ver passar inesperadamente à mulher sobre qual antes debatia consigo mesmo. Andando com uma expressão tristonha, sua psiquiatra, Harleen F. Quinzel, acompanhada por seus dois seguranças e um paciente, outro paciente, passaram direto por sua cela no corredor infame. “Nem sequer olhou para mim.” por algum motivo, aquilo lhe estressava “Ela vai olhar. Ela vai voltar. Acalme-se...” Discutia consigo mesmo.

  Aguardou ansioso pelo retorno da Doutora Quinzel, esperando que não o ignorasse; afinal, esta devia ser à hora comum de sua sessão particular. Tentou olhar as celas seguintes ao caminho por onde sua psiquiatra passara, mas, a angulação do vidro à sua frente não permitia tal feito.

  Não demorara muito, e logo a Doutora Quinzel retornara pelo mesmo caminho, ainda acompanhada de seus dois brutamontes. Ela passou direto. O palhaço insano sentia o sangue subir à cabeça, uma vontade imensa e quase incontrolável de tomar a atenção à força. Afastou-se do vidro em meio à baforadas furiosas, infelizmente, não podia fazer nada.

  Aguardou. Encostou-se na parede de sua cela e como que em uma discussão com ele próprio, lutava para manter a necessária calma. “Eu vou... Não, não, não! Calma, coração, calma... Eu devia arrancar aqueles olhos e... Não! Ela é minha saída daqui!” ele estapeava a própria cabeça “Talvez só um pouquinho... Só pelo respeito... É isso! Só um... Não! Calma, ela vai aprender... Ela vai...” com as duas mãos em sua cabeça, sentindo o cabelo liso esverdeado transpassar por entre os dedos, com sua respiração ofegante e olhos possessos, uma intensa e prolongada gargalhada lhe surgira.

— Você será minha, Harleen Quinzel... Você é minha... – Ele dizia para aquela sala isolada.

  Momentos depois despertou-se de seus psicóticos e hilariantes pensamentos ao ouvir pesadas batidas no vidro de sua cela. Frances e Ronn haviam enfim chegado, mas, de forma incomum e até mesmo desrespeitosa para a mentalidade egocêntrica do palhaço, a Doutora Quinzel não estava lá. Apenas os dois gorilas de uniforme do Diretor.

  Pensou se não deveria esquartejar ambos e sair daquele lugar naquele exato momento, mas, decidiu para si mesmo, que sua amável e oscilante psiquiatra não era meramente uma chave de saída, mas, poderia vir a ser algo mais. Um brinquedo permanente.

  Erguendo os braços para mostrar que os dois grandalhões poderiam entrar em segurança, manteve-se próximo à parede enquanto aguardava todo o cumprir do regulamento de segurança. Logo estava vestido, pronto para transporte.

— Hei, garotos, sua dona mandou buscar o graveto? Vão ganhar biscoito? Não se esqueçam de dividir comigo, certo? – Ele gargalhava.

— Cala a boca, palhaço. – Dizia Ronn com tom agressivo.

  Logo o palhaço do crime de Gotham, era levado pelas mãos pesadas dos seguranças especiais de Arkham até seu destino. Era hora de ter uma conversa séria com sua psiquiatra. Uma discussão de relacionamento seria necessária.

  _______________________Quinzel________________________

  Doutora Quinzel estava deitada em sua poltrona Divã, pensando em qual seria o rumo que sua vida tomaria por fim em meio à tamanha dúvida sobre as escolhas a qual estava sendo forçada a tomar. Sabia que um caminho corromperia o outro, por isto era inevitável que escolhesse um.

  Não havia caminho fácil, infelizmente. Escolhas que mudariam tudo, escolhas que definiriam o seu futuro pessoal e profissional. Talvez fosse essa a escolha mais difícil da sua vida.

  No último final de semana, Doutora Quinzel passara por situações extremas, tanto em seu relacionamento, quanto em uma experiência de quase morte. Após uma longa e dolorosa discussão com seu noivo, que quase acarretou um acidente de trânsito, os dois tiveram uma conversa extremamente emotiva, para que pudessem encontrar uma solução, a solução ideal para o futuro do casal.

  A Doutora Quinzel prometeu que tomaria mais cuidado e seria mais presente com seu noivo. Devia isto a ele. E embora tal promessa levasse a um diminuto de desempenho profissional e com isto lhe causasse imensa tristeza, e pudesse acabar por limitar, se não até mesmo desabar sua carreira como psiquiatra de sucesso, pensava que mais valia à pena ter Robert consigo do que ser reconhecida por seus estudos e pesquisas.

  Sentia uma pequena lágrima escorrer pelo canto do olho esquerdo até sua orelha, onde a mesma veio a enfim gotejar. Limpara o úmido deixado para trás pela pequena lágrima, e engolira o nó preso em sua garganta. Era como ser enforcada por seus próprios sentimentos. “Será que vale mesmo a pena?” um intenso questionamento interno existia em sua mente. Estava dividida.

  Ergueu-se da poltrona Divã, sentindo um forte desânimo tomar conta de si. Com os braços apoiados ao lado das pernas, na poltrona, abaixou a cabeça com seus olhos fechados, sentindo uma forte emoção chegar. Prendeu-a. Segurou-a. Apagou-a. Seus lábios eram sugados para dentro e olhos apertados com força; era o esforço que fazia para não gritar, nem chorar. Era adulta, estava em ambiente de trabalho, não era hora de chorar.

  Seu próximo paciente era um homem com o qual tinha de ter cautela, mesmo que o admirasse tamanha como era a realidade. Seu humor bipolar movido pelo impulso animalesco, natureza manipuladora e humor inconveniente lhe faziam um paciente perigoso, porém, demasiadamente interessante e também cativante.

  Não queria que seu paciente lhe visse num estado de baixa autoestima, não podia mostrar a ele o quão frágil estava naquele momento. Para ele, os fracos apenas deveriam ser esmagados, ela sabia. Era a natureza animal, a natureza humana.

  Rapidamente caminhara até um espelho num dos cantos da sala e checara a maquiagem em seu rosto. Apenas um canto da maquiagem que passara no olho esquerdo estava minimamente borrado. Menos de um minuto, era o necessário para que ajeitasse. Esperava que o paciente não chegasse nesse curto período.

  Estava pronta. Recompôs seu estado emocional, e adotou uma faceta sem emoção para mascarar a real que se escondia. Agora apenas havia de aguardar a chegada daquele paciente.

  Enquanto aguardava, repensava em sua abordagem com o Coringa. Pensava se realmente seria necessário criar este espaço qual dera início no dia anterior. Sabia que quanto mais próxima dele, mais obcecada por sua insanidade ficava. No início, pensou ser meramente admiração, mas, na semana anterior, notara a realidade, ou ao menos parcela dela sobre seus sentimentos por aquele paciente. Nada profissional. Nada esperto, sabia.

  Quando ouvira o bater na porta, sentira sua nuca arrepiar. Sabia quem era. Era ele! Seu coração, assim como em todas as sessões anteriores, batia forte, mas, desta vez, não meramente batia, e sim apertava. Sentia como se um punho forte apertasse seu coração, como se uma lâmina cravasse sua ponta no mesmo. Limitações.

  Andara rapidamente até o dispositivo de abertura da porta, e passara seu cartão de acesso. O som comum da engrenagem girando fora escutada, e logo em seguida a imagem dos dois enormes e corpulentos guardas, junto ao seu paciente, menor que ambos, preso à uma camisa de força e sendo segurado pelo antebraço, surgira.

  Um sorriso amigável e um olhar insano foram recebidos de seu paciente. Ela não pôde evitar tremer as pernas ao ver sua imagem. “Ele ainda sorri para mim...” ela pensara ao ver aquele sorriso metálico, porém belo na boca do psicótico palhaço.

  O paciente já mostrara algumas determinadas melhoras desde que começara o tratamento. Sua timidez, sua vergonha a respeito de seu sorriso, vinha diminuindo cada vez mais, seu descontrole emocional nem de longe se mostrara, até mesmo aparentemente demonstrava gestos doces e amáveis.

  Em suas últimas duas semanas de tratamento, escutara boas histórias de seu paciente, muitas delas eram tristes, melancólicas, vindas de traumas aparentes ou alucinações irreais, outras eram alegres, porém confusas. Não conversavam apenas sobre ele, muitas vezes a Doutora Quinzel deixara escapar uma coisa ou outra sobre sua vida pessoal e até mesmo citações de seu passado. Havia perdido, em certo ponto, a noção de paciente e psiquiatra, sabia. Planejava recuperar esta noção. Era o certo.

— Venham. – Disse ela, em um tom completamente sem emoção.

— Certo. – Frances carregava o Coringa para dentro da sala com cuidado.

  Ronn, o mais alto e corpulento, com aparência latina, segurara o paciente com força enquanto seu parceiro, Frances, retirava as amarras das fivelas daquela camisa de força. Um único homem não poderia realizar tal trabalho, se tratando do Coringa. Era perigoso demais.

— Pronto, Doutora. Vamos indo. Qualquer coisa... – Frances lhe olhara com uma expressão preocupada. Sempre ficava tenso em deixar a aparente frágil mulher à sua frente, sozinha com o lunático psicopata, Coringa. –.... Grite.

— Sim, sim. Por favor, saiam. – A Doutora Quinzel estava ríspida.

— Ouviram a Doutora, rapazes. Xô! – Coringa os olhava de baixo para cima, com um sorriso de canto de boca, enquanto gesticulava com ambas as palmas caídas para baixo em movimentos repetitivos como se varresse o ar. Os expulsava.

  Embora irritados pela provocação do Coringa, ambos os seguranças obedeceram ao comando para deixá-los à sós e se retiraram da sala da Doutora Quinzel. A porta atrás deles fora fechada logo em seguida, com pressa para livrar-se deles. Sua presença era um incômodo para a psiquiatra. “Homens cobertos de testosterona, e com nada na cabeça.” ela detestava o tipo.

— Por favor, sente-se. Vamos começar. – Quinzel soava meramente profissional. Dava-lhe nos nervos.

  Ele andou até a poltrona Divã e jogou-se completamente relaxado naquele acolchoado confortável. Olhou-a se aproximar com uma expressão fria, diferente da anterior ao final de semana, e teve de controlar-se para não apertar o seu pescoço.

— Muito bem, boa tarde, senhor Coringa. – Ela dizia, como se ele fosse apenas mais um paciente.

— Vamos lá! Pare com essa encenação, Harley! Eu conheço você! Lembra? Bons amigos! – Ele agora se sentava, para ficar de frente à sua psiquiatra e assim pudesse olhá-la nos olhos.

— Não estou encenando, Senhor. E a intimidade anterior.... Foi um erro. Nada profissional, desculpe. – Ela parecia triste, ele notara.

— Um erro? – Um sorriso de escárnio extremo surgira em sua boca, com um jogar de cabeça inclinado na direção do mesmo. Ele sentia o absurdo proferido em palavras pela Doutora Quinzel.

— Desculpe. – Ela escondia os lábios e mostrava um pesar em seu olhar.

— Oh... – Ele se levantara perante ela. – Um erro, não é? – Seus olhos arregalados e boca semiaberta, traziam um sentimento de ameaça consigo.

— O senhor está indo muito bem em seu tratamento. Devo dizer-lhe. Obrigada pela cooperação... – Ela o cortara.

— Pare! – Gritara, o Coringa. Havia uma fúria, uma inconformidade em sua voz. Aquilo surpreendera a Doutora Quinzel. – Não fale como eles! Nem pense nisto! Você não é como eles! Pode até querer ser como eles, mas, você não é! – Coringa gesticulava ameaçadoramente em frente à Quinzel. Suas palmas e dedos esticados, porém, levemente encurvados para cima, com os polegares quase ligados em uma curta distância, gesticulavam quase que como se enforcassem sua vítima.

— Não sou... – Aquelas palavras chocaram-se contra a Doutora Quinzel, como a resposta para um enigma exaustivo e doloroso. -... Como eles?

— Já vira um animal enjaulado, Doutora Quinzel? – Ele agora dava a volta na poltrona onde sua psiquiatra sentava, enquanto passava seus dedos pálidos pelos ombros delicados daquela mulher, cobertos pelo jaleco branco do Asilo Arkham.

— Um animal enjaulado? Cachorros apenas. – Ela não entendia o propósito daquela pergunta.

— É triste, não é? Ter sua natureza limitada. Presos em um cubículo ridiculamente pequeno, meramente pela satisfação humana. – Agora ele colocava ambas as mãos nos ombros da Doutora Quinzel. Massageava-os. Era relaxante, prazeroso, inesperado e também reprovável.

— Nunca havia pensado desta forma... – Entendia perfeitamente o que ele queria dizer.

— Você, Doutora Quinzel... – Um grunhido animalesco, como de um gato e uma aproximação vagarosa até o ouvido direito da Doutora Quinzel, onde ele terminara seu raciocínio. –.... É agora, por algum motivo desprezível, um animal fraco e enjaulado.

  Aquela acusação fizera a Doutora Quinzel ficar boquiaberta e sentir como se o mundo ao seu redor caísse completamente. Ele estava certo. Ela, naquele momento, era como um animal enjaulado, chorando e se lamentando por sua liberdade perdida em prol de seu dono. Lamentável. Vergonhoso.

— Acorde! – Um berro repentino com uma voz mais grossa que o habitual despertara Quinzel de seus pensamentos reveladores. Ela estava sem palavras.

  Ele percorrera o caminho por de trás da poltrona, até estar de frente à sua psiquiatra novamente. Seus olhos verdes intensos pareciam ver dentro da mulher à sua frente. Como um objeto hipnótico, ela não podia separar seu olhar do dele. Seu coração parecia saltar em sua garganta, sua cabeça parecia rodar, estava tonta, confusa e chocada.

  Era como estar completamente perdida, embora soubesse o que realmente desejava, soubesse o caminho certo para o que realmente queria. O medo a qual lhe perseguia era pavoroso demais para tomar tal decisão. Apenas se mantinha paralisada, sem saber como prosseguir.

— Não me diga que eu errei com você, Doutora Quinzel. – Ele a olhava como se analisasse seu conflito interno.

— Não... – Sua voz era fraca.

— Não somos amigos? Pensei que gostasse de mim. Pensei que eu fosse diferente dos outros, para você, Doutora Quinzel. – Ele lhe pressionava da forma certa.

— Somos! Eu só... – Por algum motivo, ela não conseguia completar suas próprias frases. Dando assim, tempo para que o Coringa avançasse cada vez mais.

— O que está havendo, Quinzel? Está perdida? Está perdida aí dentro? – Ele se aproximava cada vez mais.

— Não. Não é isso... – Havia uma fragilidade assustadora em sua voz. –.... Eu apenas...

— Vamos, querida. Você sabe o que você quer. – Ele agora colocava suas mãos nos apoios da poltrona, avançando cada vez mais, vagarosamente, para cima da Doutora Quinzel.

— Eu sei? Eu sei. Eu só... – Ela engolira em seco. Sentia o calor, a presença do Coringa, cada vez mais perto. –.... Eu só não quero magoá-lo.

— Magoar? Magoar a quem? Nada disso importa, docinho. – Estava à poucos centímetros de distância do rosto da Doutora Quinzel. – Você apenas tem de escolher: ser a caça, ou o caçador. Permanecer enjaulada, ou se libertar. – Seu olhar intenso era sedutor. Seus lábios pálidos estavam inapropriadamente próximos aos dela.

— Eu não sou uma presa! – Ela quase gritara aquela frase. Ele se afastara para seu ponto inicial, em pé à sua frente. O coração da Doutora Quinzel parecia explodir, sua respiração acelerada e transpiração exacerbada mostravam o quão grave era seu estado nervoso.

— Ótimo. Entende agora? – Ele sorria para ela. Era encantadoramente assustador. Antônimos maravilhosos em sua existência. – Você e eu, somos iguais, querida. Predadores.

— Predadores? – Ela ainda estava confusa, perdida com tudo aquilo, mas, sentia que algo dentro dela havia mudado.

— Sim, Doutora Quinzel. Somos aqueles que não podem ser enjaulados ou controlados. Temos uma personalidade forte e independente. Você e eu. – Ele agora se sentava novamente na poltrona Divã, sem tirar seus olhos da mulher à sua frente.

— Talvez você esteja certo, Sr. C. Talvez esteja. – Ela ainda parecia triste, porém, havia algo diferente agora. Ele podia sentir.

— Sim, eu sei que estou, docinho. Lute por você mesma, está bem? – Ele pegava em suas mãos com delicadeza, e olhava em seus olhos como se estivesse extremamente preocupado com sua psiquiatra e amiga. Era comovente.

  Havia apenas uma coisa a qual a Doutora Quinzel, não importando a quão encantada estivesse com aquele homem, não podia deixar de pensar: “Psicopatas de grau tão elevado, não sentem amor. Se isto é uma verdade absoluta, então como poderia classificar este homem? Ou ele mente para mim, atua incrivelmente bem, ou ainda, ele é algo completamente novo, algo além de um psicopata.” Aquilo lhe preocupava e ao mesmo tempo intrigava. Qual seria a verdade, afinal?

  Sentia-se envergonhada pela forma como vinha agindo, e embora desejasse com toda sua força desculpar-se com seu paciente, seu amigo, tinha medo de estar errada, de este ser o caminho que no final, lhe faria infeliz verdadeiramente. Sabia que trilhar este caminho era perder o homem da sua vida. Não queria isto. Entretanto, sabia que como estava atualmente, não aguentaria ficar; não era o certo.

  Ele podia ver que ainda havia um intenso e deplorável conflito dentro dela. O que percebia lhe irritava imensamente, fazendo com que houvesse de se conter para não explodir em ações extremas e impossíveis de retroceder. Havia de espetá-la mais um pouco para firmar sua escolha de forma inquestionável.

— Sabe, Doutora Quinzel. – Ele chamara sua atenção. Ele tinha sua atenção. – Eu já estive em uma situação semelhante. Vivi em uma constante indecisão. Uma tentativa fútil e ignorante de manter o controle a qual me escapava. – Ele lambera os lábios enquanto se forçava a lembrar com os olhares para cima e para esquerda, forçando as engrenagens de sua mente fértil.

— Lembrou de algo mais? – A Doutora Quinzel via-se, como comumente, interessada nas lembranças perdidas de seu paciente.

— Algumas coisas, acredito. – Respondera.

— O que houve? O que quer dizer com “uma tentativa fútil e ignorante de manter o controle”? – Sua curiosidade era como êxtase para ela, e como uma luva para ele.

— Foi há muito tempo. Sabe-se lá quanto tempo.  Eu realmente não faço ideia. Mas, eu lembro claramente. Eu era outro homem, um homem fraco, sem muitas esperanças, um fracasso como gente. Toda a minha ridícula tentativa de controlar minhas ações, apenas me afundava cada vez mais para baixo. – Com uma expressão tristonha, ele perguntou. – Já se sentiu tão desesperada, à ponto de que faria qualquer coisa para que não lhe vissem como a merda ambulante que era? Já se sentiu assim, Doutora Quinzel?

— Sim, Sr. C. Eu já me senti assim... – Lembranças dolorosas vinham à mente da Doutora Quinzel.

— Em uma estúpida tentativa de manter a ordem e os padrões, seguir as regras da sociedade, para sobreviver mais um dia nesta selva de pedra e metal, me encontrei em um paradoxo desafortunado onde que para cumprir as necessidades da lei comum e da cidadania, eu precisei quebrá-la e corrompê-la. Roubar o povo, para pagar o povo.

— Continue. – A Doutora Quinzel estava completamente fixada nas palavras proferidas por seu paciente.

— Eu já fui um homem comum, Doutora Quinzel. Assim como você, eu tive família. Uma mulher, um filho, um sonho e uma casa. Paguei contas de luz, telefone e aluguel. Acredito ter cursado a escola, pois me lembro vagamente de uma universidade. Meus conhecimentos sobre química e física não podem ter vindo do nada, não é mesmo? – Ele parecia esforçar-se para lembrar de seu passado. – Trabalhei honestamente, até não trabalhar mais. Cumpri meu dever social, até não cumprir mais. Vivi como um cão, até não viver mais. – Sua voz era serena, porém penetrante. Sua narração era envolvente e criava questionamentos milhares sobre seu passado. A curiosidade da Doutora Quinzel estava atiçada ao limite.

— Você disse uma vez, que já esteve morto. Tem algo haver com a forma como você perdeu o controle, Sr. C? – Ela encaixava as peças do quebra-cabeça que era aquele homem.

— Excelente, querida. Você merecia um beijo, mas, vejo que não somos tão próximos assim.  – “Ainda.” pensou.

— Um beijo? – Ela sentiu seu rosto corar, mas, logo retomara sua concentração e afastara seus pensamentos inapropriados. Não podia cogitar beijar outro homem que se não seu noivo, era errado.

— Eu lembro agora... – Ele apoiava as costas no encosto da poltrona Divã. –... Real ou não, é tão vívido! Tão triste.

— Pode me contar sobre isto, Sr. C? Não precisa guardar para si. Sabe disso. Fale comigo. – Estava preocupada com seu amigo e paciente, porém, não era apenas isto; curiosidade era seu maior defeito.

— Eu vou lhe contar, Doutora Quinzel. Eu vou lhe contar. – No fim, podia ver que seu brinquedo não estava permanentemente defeituoso. Fora apenas um susto. Um que esperava não acontecer novamente.

— Esta história, minha cara Harley, é sobre um homem que pensou poder controlar o seu próprio destino, e falhou. É a história de um homem que podia ter tudo, mas, escolheu a risada como o caminho da sua vida. Esta, Doutora Quinzel, é a história de como eu perdi completamente o controle, em apenas um único dia ruim. Ha Ha Ha Ha Ha! – Gargalhava ao deitar-se para dar início a sua trágica narração. Real ou não, era o martelo que fixaria a escolha de Quinzel e lhe faria estar cada vez mais próxima da libertadora insanidade.

  A história da inevitável desgraça, assim como qualquer outra boa história, possui seu início trágico e desenrolar nefasto, onde seu único desembarque possível é a morte. Entretanto, o que todos devemos questionar é: a morte é mesmo o final? O fim da linha?

  Quando a escuridão é plena, e aparentemente não há para onde fugir, não esqueça que ainda existe um último caminho para onde você pode correr, um último abraço para lhe acolher. A insanidade. Ela que lhe aguarda constantemente nesta sociedade perdida. Ela que lhe observa e se aproxima cada vez mais em sua natureza sombria. Ela que ali está, pronta para lhe estender a mão; para salvá-lo e mostrar a ti mesmo quem verdadeiramente és.

  Não conhecerás a ti mesmo, até que conheças sua própria natureza. Sua própria insanidade. Não há outro caminho além deste. Esta é a história onde perder-se, é encontrar-se.


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Notas finais do capítulo

E você? Concorda com esta ideia de que para conhecer a sua sanidade, deve-se também conhecer a insanidade? Alguém aqui está preocupado com esta mulher? Sabemos o como o Coringa pode parecer persuasivo. O que será que aconteceu com o Coringa para ele ser quem é?