O estúdio estava silencioso como uma catedral. Tanto assim, que os passos de Daniel ainda ecoaram no chão de mármore por muito tempo quando ele foi embora, deixando Liz sozinha no salão amplo e repleto de espelhos e barras.

Naquela noite, as aulas na EDAC — Escola de Dança e Artes Clássicas — haviam terminado às cinco da tarde, mas Liz e Daniel, que eram o casal principal da releitura da clássica peça O Lago dos Cisnes, se demoraram por mais uma hora, ensaiando incansavelmente os passos que já conheciam. Depois disso, o rapaz fora embora, mas Liz não tirou as sapatilhas; mesmo que seus pés doessem, havia um peso em seus ombros que pedia alívio. E, no caso dela, só a dança tinha esse poder.

A jovem voltou a colocar música e jogou de lado o controle do som, esticando o corpo antes de começar a repetir a coreografia que antes fizera com Daniel. No início, até preocupou-se em observar nos espelhos seus passos, certificando-se de que estavam corretos, mas logo fechou os olhos e perdeu-se na dança e em seus pensamentos, tão distraída que, quando sentiu mãos em sua cintura, pensou que seu par havia voltado.

— Daniel?

A música era lenta e os passos acompanhavam o ritmo: o casal girava junto, inclinando-se ao mesmo tempo como se fossem o mesmo corpo, a mesma flor soprada pelo vento.

— Nos confundiu de novo?

A voz, sussurrada tão perto do pescoço de Liz, lhe trouxe um arrepio que nada tinha a ver com a temperatura do local. Sua voz sumiu e ela não pôde responder; não se atreveu a olhar o espelho.

A música tornou-se mais rápida e os corpos se desvencilharam; Liz girou seguidamente, fazendo giros regulares, mas logo, como ditava a coreografia, seu par a seguiu, puxando-a pela mão até que estivessem frente a frente, os rostos tão próximos que quase podiam se tocar.

— Daniel, não. — outro sussurro, enquanto as mãos se roçavam, os braços juntos, erguendo-se sob o ritmo da música. — Anna.

A melodia continuou e os passos da dança também; os olhos da jovem bailarina ardiam, com tantas palavras não ditas. Não amava Daniel, sequer gostava dele.

No salão, apenas a música tocava, mas o olhar de Anna parecia dizer tudo.

“Por que ele, então?”

Os corpos novamente se separaram e Liz fechou os olhos. Havia tantas coisas... O ballet, que significava tudo para ela, a EDAC, a mãe...

O toque morno das mãos de Anna em sua cintura bagunçou seus pensamentos como a queda de uma folha em um lago cristalino. Sabia que não podia ficar sem aquela sensação.

Eram amigas, colegas no Grupo Especial de bailarinas da EDAC. Haviam começado juntas e eram igualmente boas. No entanto, por qualquer motivo, Liz se destacara e havia sido selecionada como Principal na peça. E Anna, no lugar de a invejar, beijou-a nos lábios, confessando um sentimento que Liz surpreendeu ser recíproco.

A melodia mudou, tornando-se lenta, e o corpo de Liz foi guiado pelos braços de Anna. As mãos hábeis lhe contornavam a cintura, o pescoço, deixando a pele da jovem em chamas. A cada giro, Anna a aparava. Os corpos aproximavam-se, encostavam-se, soltando faíscas.

Em algum momento, Liz inclinou-se, suspirou ao sentir os dedos da outra ao longo de suas costas. Ergueu-se e a moça a conduziu, tocou seu braço, a fez girar.

Aos poucos, a dança foi ganhando contornos sensuais, diferente da fria formalidade da coreografia — e do superficial namoro — entre Liz e Daniel.

A música tornou-se ainda mais lenta, até que as últimas notas soaram, deixando Liz de pé, curvada para trás e segurando uma das mãos de Anna, que lhe tocava uma perna e tinha o rosto tão próximo de seu colo que conseguia respirar seu perfume suave.

Aquele instante ainda ficou suspenso no silêncio por uma dezena de segundos, até que Anna, tomada pela languidez do momento, moveu-se lentamente, puxando Liz para si, beijando-lhe os lábios mornos como tanto desejara.

Primeiro, a jovem estremeceu, assustando-se, mas logo seu corpo correspondeu ao toque da outra e ela envolveu-lhe o pescoço com os braços, arrepiando-se com o contato dos lábios, do beijo caloroso.

O chão do estúdio era revestido de madeira, e por isso a temperatura não foi um problema quando Anna fez com que Liz se deitasse sobre ele. O corpo da outra bailarina encaixou-se sobre o seu, ao mesmo tempo em que suas mãos percorriam o corpo delgado, coberto, naquele dia, somente por um collant aberto nas costas.

Os lábios de Liz novamente procuraram os de Anna, unindo-se em outro beijo tão quente quanto o primeiro. Naquele momento, a música havia cessado e o silêncio imperava. Não havia, nos pensamentos da primeira bailarina, qualquer traço de medo ou receio; ela nem mesmo se importava com o fato de estarem numa das salas da EDAC. Naquele momento, só havia Anna e seu corpo, seus toques, seu beijo.

Da mesma maneira que haviam dançado momentos antes, envolviam-se agora em outro tipo de dança, dessa vez sem roteiro ou coreografia, guiada apenas pelo instinto e pelos desejos e comandada não por música, mas por murmúrios e suspiros.

O chão do estúdio virou cama e lá as duas bailarinas giraram, num conjunto de sensações, sabores, toques, perfumes. Não havia nada, apenas elas.

E então, mesmo que houvesse iniciado com languidez, o fim de tudo foi súbito e intenso; uma pequena morte. Restaram apenas a respiração palpitante, as mãos entrelaçadas e os corpos quentes, contrariando o frio do lado de fora.

Os olhos de Liz percorreram o estúdio, as paredes de espelhos, as barras, o teto alto emoldurado por relevos de gesso. Em uma fração de segundo, tudo passou pela sua cabeça. Seus olhos arderam, enchendo-se de lágrimas, e ela suspirou.

Anna percebeu e tomou-lhe delicadamente a mão, puxando-a até que pudesse deitar em seu ombro. Com a mesma calma de antes, envolveu-a em seus braços e permitiu-se sorrir.

— Estou aqui por você.