A governanta escrita por Sirukyps


Capítulo 10
Capítulo 10




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A tempestade acompanhou os afazeres domésticos. Os criados (três, em específico), parecia incomodados com a minha presença. 

Tratavam-me como uma espécie de algoz empenhado em atormentá-los. 

Aquilo era terrível. Como eu poderia obter informação? 

Até a senhora que antes conversava sobre formas de morte, não havia me dado nenhum mísero “bom dia” quando retornei.

Estranho. Tão poucos criados para uma mansão tão grande e luxuosa. Ainda assim, sempre impecável. Tudo lustrado perfeitamente. Nenhum pó. Nenhuma poeira. Eu passava o dedo pela superfície dos velhos móveis com frequência, buscando imperfeições e... Impecável.

A velha senhora aparentava ser a responsável pela maior parte dos serviços. O engomado olhar bondoso e enrugado pelas experiências combinavam com a típica farda negra doméstica. Caindo-lhe tão bem que poderia jurar ser parte natural daquele robusto corpo.

Possuía ralos cabelos grisalhos e estava um pouco acima do peso como a maioria daquela mansão. Talvez, aquela fosse uma excelente cozinheira. Fiquei impressionado quando pude degustar durante o café-da-manhã. Era tanto sabor... Nem minha mãe conseguia superá-la. 

O senhor motorista ficava fazendo cera pela mansão. Jogando papo fora ao telefone, parava somente quando tinha que carregar algo pesado até a cozinha, coisa que não acontecia frequentemente. 

O maldito me encarou durante todo o dia. Talvez, curiosidade sobre meu passado, digo isto, pois tentou puxar conversa e pedi que ele esvaziasse as caixas do porão sem lhe dá atenção. Uns quarenta anos, cultivava o jeito intacto de um jovem boêmio conquistador, o qual trabalhava por não ter nascido em uma família abastada da alta sociedade. 

Novamente, tentou falar comigo, desta vez argumentando sobre o tempo e banalidades. Pedi que revisasse a engrenagens dos seis carros daquela garagem. Depois disto, só um evidente desprezo lançou em minha direção. Nem ao menos tinha a dignidade de disfarçar. Inadmissível.

E, por último, o jovem de poucas palavras e pouca ação. Um adolescente obcecado por plantas. 

— Não acho que isto esteja certo. 

— Óbvio. Você trata como grama quando eles lhe designam para orquídea. 

E seguia respondendo com analogias a flora. Uma vez, chegou a me ameaçar enquanto comentava sobre seu enorme conhecimento sobre vegetais, o que incluía uma caseira produção de veneno potente pronto para exterminar mulheres estúpidas e críticas do signo de virgem. 

Eu não era do signo de virgem, por isto fiquei meio aliviado. Ao contrário dos demais que sempre estavam fardados, este usava folgadas roupas exotéricas e tinha drags compridos nos cabelos acastanhados. A impulsividade era familiar, assim como aqueles amendoados olhos zangados disparando flechas em chamas na minha direção. 

A velha tia não saia do quarto e permanecia o dia todo tricotando. Perguntou-me qual minha cor preferida e pediu que fosse fazer meus afazeres. Desde então, pegou um novelo na cor que eu havia mencionado e tricotava calmamente, cochilando de vez em quando. 

Afogada na confortável cadeira mantinha uma manta sobre as pernas. Será que não podia caminhar? Não fui indiscreto em perguntar, pois não sabia qual seria a melhor forma para tocar no assunto.  

Dois dias perdidos e eu já estava cansado daquela vida. 

Entrei na cozinha, a qual tinha uma decoração bastante caipira e sentei na cadeira da mesa marrom, observando os lentos e agradáveis movimentos da cozinheira. Algo recíproco, de vez em quando, ela olhava por cima dos ombros, desconfiada das minhas ações. 

No fim, tudo funcionava tão bem que eu era inútil naquele local. Um intruso desnecessário, apenas. 

Apoiando os cotovelos sobre a mesa, recostei meu rosto contra a palma das minhas mãos, tendo cuidado para não afastar a preta peruca levemente ondulada como os cabelos da minha esposa, os quais permaneciam presos por um improvisado coque que sabe lá como minha colega conseguiu fazer. 

— Não sabe como criticar minha comida? – Comentou com certo humor, quebrando o irritante silêncio.  

— Eu não quero criticar sua comida. – Pontuei franzino o cenho, indignando-me com aquela interrogação. 

— Se quisesse, conseguiria? 

— Não... Não foi o que quis dizer. 

— Acho que a senhora tem sido muito rude com as palavras desde que chegou, principalmente com Adalberto. – Respondeu, voltando a mexer um enorme caldeirão com a colher de madeira. – Inclusive, Arthur pediu para colocar sonífero em sua comida. 

Nada respondi, só suspirei decepcionado, abafando meu rosto novamente contra as mãos. Eu não era bom em nada que fazia, poderia até mesmo levar a casa do meu amigo para falência como levei minha família e os negócios da minha esposa. 

— Agora, não sei se realmente é tímida como Dudu falou noutro dia. – Continuou, notando minha baixa estima. – Poderíamos ter, pelo menos, uma conversa de comadres. 

— Desculpe. Eu não sei como ser a governanta de uma casa tão perfeita. Talvez, eu fosse melhor que eu desaparecesse. 

— Sim. Seria melhor, bruxa velha. – Comentou o adolescente adentrando o cômodo. Trazia uma cesta de tomate e trajava terra praticamente, pelo tanto de lama vermelha em sua roupa. Sujava todo o cômodo e nem queria imaginar o rastro que havia deixado até chegar ali. 

— Modos, Arthur. Ela é bonita e jovem... Em breve, pode até ser a esposa do pequeno Dudu... 

— NÂO! – Assustei-me com a ideia insensata, sendo que meu grito de espanto foi repetido pelo impulsivo rapaz que continuou. – Eduardo merece uma alma bela como a rosa Camélia e ilustre como uma tulipa negra... – Suspirou sonhando. – O casamento será em uma piscina de amor perfeito de tão perfeito que será o casal e todos ficarão sempre felizes devido o otimismo emanado por esta jovem proveniente de um pequeno dente de leão.

— Concordo com o garoto, só que desejo a felicidade de Eduardo em primeiro lugar... Mesmo que seja um relacionamento destrutivo... Ele estando feliz... Sei lá, é válido. Acho que estou sendo egoísta, pois não quero presenciar aquele rosto triste novamente, no fim das contas. 

— Sim e ele ainda ficou mais triste nos últimos dias desde que aquela mulher apareceu o ameaçando. – Completou o jardineiro, puxando uma cadeira da mesa e se sentando também. Seria Oríntia? Por que ela o ameaçava? Não seria o contrário? 

— Talvez... Não tenha sido isto... – Continuei, sem saber o que realmente queria falar. – E se ele a amar, no fim das contas? E estar triste, pois... Realmente... Realmente, não sei. 

— Sim. Você não sabe, mas quer falar como se o conhecesse. – Rangendo os dentes, excomungou. - Aquela erva daninha impossível! Eduardo deve exterminá-la. 

Colocando pratos de vidros com verduras submersas em um líquido avermelhado, a senhora sorria das nossas bobas suposições. 

Entardecia, mas não era hora do almoço ou jantar, ainda assim, ela prosseguia alimentando como uma mãe preocupada. Desta vez, não opinei nada. Comecei a degustar do provento oferecido, agradecendo-a na mesma proporção do sorriso que me direcionava. 

Juntando-se a nós, na mesa, ela também começou a comer do mesmo alimento e o jovem aproveitou a oportunidade para provocar de modo atrevido: 

— Esta casa funciona tão bem quando cada um se importa com o próprio serviço... 

— Acho que compreendi o recado. 

— Estarei lhe observando, mocinha. – Retrucou, alisando com o indicador e o polegar do bigode imaginário, fingindo por um gesto já me analisar seriamente. 

Não contive a tímida risada que curvava meus lábios involuntariamente. Até que aquele local poderia ser aconchegante. E... Eles sabiam sobre Oríntia, eu só precisava aproveitar as brechas certas para penetrar no assunto. 

Praticamente engolindo o alimento, o rapaz terminou, retirando-se do cômodo. 

A senhora calmamente esfriava, afinal já não existia pressa naqueles dias quase finalizados. Teria tido uma vida calma? Sempre viveu naquela mansão? 

— Oi. – Disse Eduardo, timidamente ultrapassando a porta da cozinha. Possuía olheiras e realmente aparentava cansaço e algumas noites muito mal dormidas. A criada rapidamente levantou e repeti sua ação, curvando-me ao senhor daquela casa que balançou as mãos, tendo um forçado sorriso, pedindo que continuássemos sentadas. – Já estou de saída. Minha tia apenas queria restabelecer seu quadro de empregados e disse que minha presença é dispensável agora que sua casa voltou à ordem. 

— Você sabe que ela não quis dizer isto. – Pontuou a senhora num leve tom de bronca. Ele apenas sorriu evidentemente preocupado com algo doloroso demais para ejetar. 

Durante toda nossa amizade, meu amigo mostrou aquela expressão apenas uma vez, quando soube da notícia da morte de meu pai e não sabia como me contar. 

Fui obrigado a saltar de pára-quedas e comer doces em demasia dentro do cinema, até a ligação do hospital chegar, revelando-me o triste acontecimento. No fim, minha mãe viajou repentinamente e foi no seu ombro que chorei enquanto improvisava o enterro vazio como nossa vida ficava cada dia mais. 

— Eu sei... Mas tenho muitas planilhas para terminar. 

— Você poderia pedir ajuda a alguém... – Comentei meio apreensivo, afinal ele era hipoglicêmico e perder noite era um terrível agravante no processamento da glicose, pois a produção de adrenalina e outros hormônios associados ao stress tornavam as células mais resistentes à insulina, estas em deficiência naquele corpo.  

— São planilhas administrativas... Você... Poderia me ajudar? Eu te ensino o básico só para adiantar algumas coisas enquanto cochilo um pouco.

Eu poderia? Não! Não poderia... Meu estômago gelava pelo medo de permanecer muito tempo ao lado do meu amigo. Eu não tinha vindo para fazer planilhas administrativas... No entanto, o receio era gradativo, por isto queria vê-lo descansar, pelo menos, minimamente. 

Não sei como pude prometer a minha esposa a morte daquela criatura de sobrancelhas grossas e cabelos acastanhados que agora, aguardava atentamente, minha resposta. O que o amor não faria? Eu a amava muito... Ainda assim... 

—  Eu entendo de planilhas, cotações e coisas do tipo. Não precisa se preocupar.

— Eu jamais me preocuparia estando contigo. – Respondeu, imediatamente trocando aquele ar engraçado por uma decidida seriedade por dois segundos. Percebendo meu leve espanto, voltou ao normal e completou. – Afinal, você é uma governanta legendária, verdade? 

— Não acho que sou tão útil. 

Ele não respondeu desta vez. Começou a tatear os bolsos. Retirando a chave do carro, foi repreendido pela atenta cozinheira que, praticamente o obrigou a ir com o motorista, argumentando desejar a minha segurança. A segurança de uma recém-chegada naquela mansão... Ele tentou contra argumentar. Em vão. 

O pior que na metade da viagem até o apartamento, meu amigo realmente adormeceu. Sentávamos no banco de trás e este, hipnotizado pelo sono, terminou encostando contra meu ombro esquerdo e rendeu-se aos caprichos de Morfeu. 

Aquela expressão. Aquela pessoa. Uma eterna levada criança após se divertir bastante no parquinho. Eu...


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