Billy nariz de batata escrita por Lethy


Capítulo 1
Capítulo 1 - A casa azul


Notas iniciais do capítulo

É a primeira vez que escrevo alguma coisa que não é romance, yey! Uma hora tinha que sair, né nom?

Bom, espero que gostem do Billy tanto quanto eu gosto. ♥



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A casa no final da rua era exatamente igual as outras, exceto por uma coisa: ela só existia para as crianças. Nem suas paredes azuis e extremamente velhas, nem suas janelas de vidro sujo, nem o cheiro de muffin que saía de lá de dentro todas as noites... Nada disso era apreciado pelos adultos. Todos eles diziam sempre a mesma coisa

“Crianças e a sua imaginação!”

Era esse o acordo silencioso entre todos eles. Fingir que nada estava acontecendo e criar lendas horrendas sobre casas invisíveis, para que nunca nenhum de seus filhos fosse até lá brincar com os adoráveis moradores.

Eu nunca fui um desses filhos porque meus pais não eram adultos. Bom, eram. Só que eram adultos que ainda não tinham esquecido que foram crianças, então eles me encorajavam a imaginar. Diziam para brincar com o Billy nariz de batata sim, e para não chamá-lo assim porque isso é feio.

(Pai, se estiver lendo isso, prometo que essa foi a última vez)

Toda tarde, depois da escola, meus amigos do colégio tomavam o caminho mais longo para evitar a casa azul, e eu ia sozinho para lá almoçar. Terça era ensopado, quarta era batata fria, quinta era feijão com linguiça e na sexta eu escolhia, por ser um bom garoto.

Billy na... Billy só comia mingau. Todos. Os. Dias. Era bizarro. Eu teria enjoado no terceiro dia, quando viesse com a medida errada de açúcar. Minha mãe nunca adoçava nada certo mais de duas vezes. Inclusive eu desconfio que isso é um mal de todas as mães.

(Mãe, se estiver lendo isso, juro que eu amo sua comida. Só... me deixe por o açúcar, sim?)

Depois do almoço, dona Dora, mãe de Billy, me deixava brincar de bola com ele no quintal. O mais legal de tudo é que ela nunca brigava quando a gente batia na janela da sala. Nem quando quebrou ela reclamou.

Billy tinha uma casa na árvore onde ele colecionava insetos. Era um prazer estranho, mas eu não questionava. Billy era meu amigo, então eu o aceitava (com nariz de batata e tudo).

Todos os insetos tinham nomes. Josefina, a formiga, era a mais amada da coleção toda e também a mais feia. Foi assim que descobri que meu melhor amigo realmente via a beleza interior das coisas. Eu achei isso lindo, e, depois do nariz de batata, é a primeira coisa que me vem à cabeça quando me lembro do meu melhor amigo.

Sim, Billy não está mais na minha vida faz algum tempo. Depois dos meus quinze anos, eu tive que parar de vê-lo. Era o primeiro ano do ensino médio, eu tinha muitas provas e comecei a namorar. Tentei apresentar Larissa a ele, mas ela fazia parte daquele grupo de crianças que cresceu ouvindo que casas imaginárias fazem verrugas crescerem nas costas.

Larissa não queria verrugas nas costas. Era um medo idiota, mas eu apenas deixei pra lá. Sei a influência que os pais têm nos filhos, do contrário eu nem estaria aqui hoje, contando essa história.

Além do mais, eu sabia que Billy não se importaria. Melhores amigos entendem essas coisas.

Quando cheguei à casa azul naquela tarde, o clima estava pesado. Senhor Ivo, que sempre era tão sorridente, me encarou com um olhar triste e disse que eu podia entrar, que Billy estava na casa da árvore me esperando. Eu disse que tudo bem e segui para os fundos da casa, achando tudo muito estranho, mas sem perguntar nada.

No caminho, dona Dora me parou. Me abraçou tão forte, como nem minha mãe fez quando eu quebrei o joelho, e disse que me amava como um filho e que nunca, nunca me esqueceria. Depois repetiu que Billy me esperava.

O nó na minha garganta nasceu ali. De alguma forma, eu sabia que estava dando adeus.

Billy estava sentado na entrada da casinha, com o vidro de Josefina no colo. Ele olhava para o nada, pensativo. Embora não parecesse triste como os pais, também não parecia nem um pouco feliz.

Subi os degraus de madeira que senhor Ivo tinha construído e me sentei ao lado dele no chão de tábua velha.

“O que está acontecendo, Billy?” lembro de perguntar

“Você cresceu, Vini. Agora eu já posso ir embora."

Senti o nó na garganta se tornar uma almôndega de carne daquelas impossíveis de engolir de uma vez.

“I-ir embora? Billy, do que você tá falando?”

Billy sorriu e colocou Josefina ao seu lado, depois se virou para mim.

“Existe um motivo para só as crianças me verem, Vini. É porque eu só estou aqui para quem ainda não tem medo de mim.”

“De... você?”

Ele balançou a cabeça, parecendo se divertir com a situação.

“Eu e meus pais estávamos fazendo um bolo quando algo deu errado e a casa pegou fogo. Nós tentamos sair a tempo, mas eu caí e eles ficaram para tentar me ajudar, então a gente não conseguiu sair e, bem..." ele suspirou, encarando o céu atrás do muro da casa. "Na época, foi bem triste. Todo mundo gostava muito da nossa família, então muitas pessoas vieram fazer homenagens e dar, sabe, o último adeus. Era bom ver que as pessoas gostavam da gente tanto assim, mas era bem difícil também. A gente amava demais esse lugar. Acho que por isso ficamos presos aqui por... sessenta anos.” Ele engoliu em seco e me olhou nos olhos “Você já deve ter notado que eu não fico mais velho."

Claro que eu tinha notado. Eu era uma salsicha de dois metros com espinhas enquanto Billy ainda parecia ter dez anos. Só que a amizade era mais importante que tudo, então eu não ligava. Mesmo que ele acordasse igual a Josefina eu não ligaria.

“Depois de algumas semanas do acidente, a vizinhança se juntou para limpar o terreno e tirar os móveis que não estavam queimados. Não tinha quase nada inteiro, então demorou pelo menos um mês para o lugar ficar limpo. Era estranho ver aquilo, porque nós ainda estávamos ali, sabe? Vivos depois de mortos, como zumbis invisíveis”.

Encarei minhas mãos, ainda sentindo a almôndega na garganta.

“Depois da limpeza, as coisas se acalmaram. Eu, minha mãe e meu pai vivíamos em um espírito de casa, se é que podemos chamar assim, que construímos com as nossas memórias. Memória é uma coisa poderosa, sabe? Ainda mais quando tem a ver com o que a gente ama."

Ah, Billy... Se eu soubesse quanta razão você tinha naquela época, nem teria me preocupado em escrever tudo em diário depois para não esquecer. Como se eu pudesse esquecer meu melhor amigo.

“Já tinham se passado uns quinze anos quando a primeira criança nos viu. É que antes as pessoas ficavam com tanto medo do acidente que ninguém enxergava nada além de um terreno vazio. O medo cega, Vini. Ele pode poupar a gente de muita coisa ruim, é verdade, mas faz a gente perder tanta coisa boa!”

Billy riu, pegando o vidro de Josefina no colo.

“Olha a Josefina, por exemplo. Ela é medonha, eu concordo, mas ter ela na minha coleção me faz tão feliz. Eu teria perdido essa oportunidade de tivesse sentido apenas medo, né?”

Eu assenti, sorrindo.

“Bom, como eu dizia, demorou quinze anos para a primeira criança ver a gente. Ela era uma garota de cabelos pretos enrolados, como os seus. Na verdade, era bastante parecida com você em várias coisas, principalmente na curiosidade. Quando ela tentou dizer para os adultos, eles ficaram loucos. Depois disso, nunca mais a vimos. Os pais trancaram ela em casa, algo assim. Um amigo dela nos viu pouco depois e tentou ajudar, dizer que era verdade, mas ele também acabou preso em casa.”

Franzi o cenho, imaginando que inferno não deve ter sido para essas duas crianças e ainda mais para o Billy, que não tinha ninguém pra brincar.

“Depois disso, ficamos anos sem receber uma visita. As crianças eram criadas com tanto medo que nem passavam por aqui. Não sei pra que tanto cuidado, já que provavelmente elas nem veriam nada!”

“Sabe, Billy, quase todos os meus amigos viam vocês, mesmo com medo”

Billy pareceu surpreso.

“Mesmo?”

“Sim. Acho que o segredo não é não ter medo, mas é não deixar ele ser maior que a sua imaginação. Nada é mais forte que uma mente aberta, sabe?”

Pensei em meus pais e em tudo que eles sempre adoravam saber sobre o Billy, como se eles mesmos o conhecessem. Sempre perguntando das comidas da dona Dora, da coleção de insetos do meu melhor amigo e do senhor Ivo. Sempre tão contentes que eu tivesse um melhor amigo tão legal, não importando se todo mundo ou só eu o via. Não existe força maior que essa no mundo.

“Estamos ficando sem tempo. Eu e meus pais partimos hoje, Vini. Estou tão feliz por finalmente poder ir embora!”

Confesso que, no meu egoísmo supremo, fiquei com raiva por ele estar tão feliz de partir. Minha mente de quinze anos não me permitia entender que ele já estava preso ali há sessenta anos, sem dormir, sem ir a escola e comendo mingau todos os dias. Mesmo que ele gostasse de mingau.

“O que eu fiz de tão especial que agora vocês podem ir?” falei, num tom mais irritado do que eu pretendia.

“Você amou a gente de verdade. Todas aquelas pessoas no nosso funeral amaram a gente em vida, mas não conseguiram nos aceitar quando deixamos de ser iguais a elas. Mas você não. Você virou meu melhor amigo, Vini!”

Eu fiquei feliz por ele, mesmo que estivesse com raiva demais para demonstrar.

“Mas e aquelas duas crianças?”

“Elas nem chegaram a conhecer a gente direito, lembra? Aliás, gostaria de saber o que aconteceu com elas. Espero que tenham sido muito felizes. Com pais chatos como aqueles, elas mereciam muito.”

Eu sorri grande e assenti.

Aquela foi a última vez que eu vi Billy nariz de batata, mas com certeza não foi a última vez que falei dele. Além dos meus pais, Larissa ouviu tudo sobre ele, sempre agarrada a um creme para verrugas. Tive mais cinco namoradas depois dela, e todas elas ouviram sobre o enorme nariz de batata e a coleção de insetos. Nenhuma delas acreditava muito, é verdade, mas eu não ligava. O importante era manter Billy vivo.

Meus pais mais do que todo mundo continuaram a falar de Billy mesmo anos depois, como se eles mesmos sentissem uma saudade imensa. Demorou algumas contas de matemática e mais dois meses para eu entender que eram eles as duas crianças que, quarenta e cinco anos atrás, tinham visto a casa azul. Claro que eu nunca falei a eles que sabia. Não precisava. Nós dividíamos o mesmo melhor amigo, isso era o mais importante de tudo.

Não há nada mais forte que uma mente aberta. Ela permitiu a meus pais não esquecer Billy e me permitiu ter o melhor amigo do mundo.

Três anos atrás, eu conheci uma garota que, como todas as outras, ouviu sobre Billy. Tamanha não foi a minha surpresa quando ela riu e disse “Ele parece um ótimo melhor amigo, mas não supera a Fernanda”, e então me contou da sua melhor amiga. Nos casamos há um ano. Até hoje, quando dá saudade, dividimos as nossas histórias de melhores amigos.

Eu sei que nunca mais vou ver Billy. Eu demorei um pouco pra entender que, na verdade, isso não importa. Meu melhor amigo está vivo em cada memória. Além disso, sei que, onde quer esteja, ele está feliz. Nós somos melhores amigos, e não existe amor mais sincero do que esse.


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Notas finais do capítulo

Abraço de urso. ♥