Série Lobos I - Hogosha (O Guardião) escrita por M Schinder


Capítulo 3
Parte III: Zetsubo no Yama


Notas iniciais do capítulo

Voltei com mais um!
Espero que gostem e qualquer dúvida com os nomes dos lugares e personagens me avisem :3

Boa leitura!



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Os outros garotos conversavam entre si e aos cochichos. Parei para reparar neles apenas naquele instante e fiquei um pouco receoso com o que vi. Um deles não era muito maior que eu, mas era redondo como um porquinho e mastigava uma maçã que achara na mata – eu me perguntei o porquê de um lobo estar comendo frutas, mas resolvi continuar calado; os outros dois eram muito mais altos que eu e visivelmente mais fortes, um possuía os cabelos muito marrons da cor da terra e o outro tão negro quanto vários corvos que eu já caçara em minha vida.

Provavelmente, todos eram meus parentes distantes. Os lobos que podiam assumir a forma humana vinham todos da mesma linhagem dos protetores pessoais do deus Tsukuyomi – mesmo que nem todos fossem da mesma matilha ou partilhassem o mesmo sangue, formávamos um Clã unido. Entretanto, olhando para mim mesmo, eu não tinha nada a ver com aqueles caras. Estava tão distraído com as diferenças que eu possuía em relação aos meus parentes distantes que não notei o momento em que nosso guia parou de andar e acabei esbarrando nele com toda a força.

Mais risadinhas. Um suspiro de minha parte e um olhar mortal em minha direção. Pedi desculpas e afastei-me rapidamente. O recrutador, que devia ter quase dois metros de altura e quase cinquenta anos, me lançou um último olhar ameaçador antes de começar a falar.

— Estão vendo esta entrada? – questionou apontando para a abertura na rocha da montanha. – Esta é a Zetsubo no Yama (*Montanha do Desespero). Existe apenas uma entrada e uma saída desta caverna, que é essa passagem aqui. Vocês terão que entrar e buscar o que está escondido ou apenas voltar com vida. Usem seus sentidos e não confiem em sua visão.

Sem qualquer outra palavra, ele abriu caminho para que passássemos. O gordinho, como eu o apelidara carinhosamente, soltou um guincho e se escondeu atrás de um dos garotos que riu afirmando estar tudo bem. Os três entraram juntos, como uma matilha, e avançaram sem hesitar. Eu continue parado, olhando para a entrada como se o recrutador e aqueles três estivessem loucos.

Vocês devem estar se perguntando o porquê de toda a hesitação e foi exatamente isso que o recrutador fez.

— O que está esperando, moleque? Ande logo, você não tem muito tempo.

Ele praticamente me chutou para dentro. O clima dentro da caverna era muito mais frio e úmido que o normal e, para deixar as coisas piores, vários animaizinhos podiam ser ouvidos ao meu redor. Aquele lugar não era conhecido como Zetsubo no Yama por diversão. Claro que não. Por eu passar minhas tardes brincando em minha forma original, eu já fora confundido com os lobos que não possuem a habilidade de se transformar e ouvira muitas coisas. E as lendas sobre aquela montanha não eram nada agradáveis.

Resolvendo que queria sobreviver àquela experiência maluca, voltei a ser um lobo. Pelo menos, nessa forma, eu correria menos riscos de alguém ou algo tentar se aproximar. Caminhei com cuidado por trezentos metros até que pude ouvir as vozes dos garotos, corri para acompanhá-los e, para a minha sorte, encontrei uma bifurcação em vez deles. Ainda podia ouvir suas vozes e tinha quase certeza que deveria ir pela direita quando um ruído metálico tilintou pelo corredor da esquerda.

Parei, hesitante. Os outros garotos se afastavam cada vez mais e suas vozes começavam a se fundir aos ruídos da caverna. Eu tinha certeza que eles estavam indo pelo caminho mais seguro, eu podia farejar aquilo, mas o tilintar metálico me dizia que minha "caça" estava do outro lado.

Voltar seria o mais sensato, mas algo me dizia que era muito capaz do recrutador me trazer arrastado para dentro e, sem muitas escolhas agradáveis, segui pela esquerda.

Não vou dizer que foi bonito. Aquele corredor fedia a urina e fezes de rato e várias vezes esbarrei com esses animaizinhos nojentos tentando correr entre minhas patas. O chão e as paredes estavam molhados, o que deixava meu pelo da mesma maneira e o cheiro se unia ao resto. Eu me orgulhava de ser um lobo limpinho e aquilo estava irritando.

Apressei o passo e, apesar dos cheiros, consegui sentir uma leve essência de lavanda no ar. Como o homem avisara, eu não conseguia enxergar nada, mas meu olfato e audição estavam melhores do que nunca – e não, eu não queria testar o paladar também.

Depois de quase cem metros caminhados com cuidado, a lavanda começava a dominar minhas narinas e eu já me perguntava se as lendas sobre aquele lugar eram verdadeiras quando o tilintar ficou mais forte e minha pata perdeu o chão.

Recuei assustado, tentando enxergar alguma coisa. Eu não tinha tanta certeza, mas a meros dez centímetros de mim havia um buraco muito grande. O cheiro de lavando e o barulho metálico predominavam o ar com muito mais força e eu sabia que o que quer que estivesse do outro lado, era lá que eu precisava estar.

Hesitante, eu soltei um latido baixo. O eco não se alongou por muito tempo e eu soube que o buraco não era tão fundo quanto imaginara. Meu estômago grunhiu, avisando que eu precisava comer alguma coisa, e eu voltei para a minha forma humana. Confuso, comecei a tatear por meu corpo sentindo a pele e não o pelo. Alguma coisa fizera com que eu me transformasse e eu não estava gostando nada daquilo. Antes que eu pudesse decidir se voltaria ou não, um choro de criança veio do outro lado.

Era uma voz muito baixa e fina. O choro não era constante, mas o soluçar era forte e denunciava exatamente a localização da minha "presa".

Por algum motivo que eu não sabia identificar, a caverna começou a ficar mais clara. Ou era eu quem estava enxergando melhor? Eu não sabia. Só sabia que aquilo me permitiu ver uma tábua, de pelo menos quinze metros e dez centímetros de largura, que levava até o outro lado. Minha forma canina nunca conseguiria atravessar aquele pedaço de madeira tão fino, mas a humana poderia conseguir.

Meu eu franzino deveria ser capaz de cruzar sem morrer. Não vou descrever tudo, porque foi vergonhoso. Vou resumir e dizer que quase cai para a morte mais vezes do que gostaria de admitir e que eu mesmo me juntara ao choro da "presa" durante o percurso.

Já do outro lado e agradecendo a todos os deuses que eu conseguia me lembrar, coloquei-me sobre as duas pernas, que estavam mais bambas que uma floresta de bambus em um vendaval, e comecei a caminhar novamente. Algo que me dizia que não deveria voltar para a forma animal, mas eu não entendia muito bem meu sexto sentido canino, então decidi não ficar me questionando sobre aquilo.

Não precisei caminhar muito e logo cheguei a uma nova caverna. Diferente dos caminhos que enfrentara até agora, ali era muito mais arejado e eu podia sentir uma leve brisa vinda de algum lugar que eu não conseguia identificar por meus olhos ainda estarem inchados do choro. No centro do local, para o meu espanto, estava uma garotinha muito pequena – devia ter, no máximo, oito anos. Ela parara de chorar e me olhava com medo, como se eu pudesse machucá-la.

E a realização do medo dela me fez sentir mal. Eu nunca machucaria uma criança, senda ela menina ou menino, e aquele recrutador estava maluco se achava que eu a caçaria. Sem saber ao certo o que fazer, cai sentado no chão fazendo com que ela me olhasse como se eu fosse um maluco.

— Você está bem? – ela perguntou se levantando. Ainda estava com medo, mas a preocupação genuína me pegou desprevenido. – Parece machucado.

Eu batera meu ombro em uma parede enquanto me arrastava até ali e ou estava muito evidente que doía ou a menina possuía superpoderes para saber daquilo. Entretanto, minha cabeça girava tanto que não tive tempo para suspeitar dela. Seus olhos azuis e cabelos loiros lhe davam um ar de inocência e me faziam querer ficar ali, parado e descansando.

— Não vai me responder? – exigiu. O ruído metálico pareceu juntar-se a sua voz e eu a encarei. A imagem angelical desvanecia e uma língua bifurcada saia pela boca dela conforme ela exigia uma resposta. Meus pelos se eriçaram e eu tentei levantar, mas como nada eram flores desde que cheguei ali, continue parado na posição em que estava. A menina se movia em círculos a minha volta. – Anda, moleque. Quem você pensa que é para me ignorar?

Minhas energias pareceram aumentar um pouco e eu finalmente pude enxergar a verdadeira forma da garota. Um corpo alongado, a língua bifurcada, o nariz que não existia... Ela era uma cobra. Uma cobra que assumira forma humana. Eu seria morto rapidinho se continuasse deixando que ela se aproximasse, mas meu corpo ainda estava paralisado por falta de energia.

Quer algo para se divertir? Tudo bem. Admito que voltei a chorar, de raiva por não poder fazer nada, mas voltei a chorar. Eu prometi a mim mesmo que, se saísse vivo, mataria o homem que me obrigara a entrar ali; meu irmão também pagaria por não ter sido bom o suficiente para ser chamado em vez de mim e, com certeza, eu colocaria toda a culpa em meu pai.

Enquanto eu bolava as formas que usaria para matar as pessoas que eu selecionara como culpadas de minha situação. O cheiro de lavanda entrou novamente por minhas narinas e ouvi a cobra sibilar irritada. O som de uma pedrinha quicando no chão ecoou pela caverna. Eu e a cobra olhamos na direção da qual o projetil viera e eu não pude deixar de ver grandes olhos cinzentos aparecendo atrás de uma pedra. Eles queimavam com algo que eu não consegui identificar, mas a distração da cobra foi o tempo certo para que eu pudesse me afastar e assumir minha forma original.

Sentir minhas presas e minhas garras foi extremamente tranquilizante e deixei um rosnado baixo sair por minha garganta, tirando a atenção do animal de minha salvadora. A cobra sibilou mais uma vez e o som metálico apareceu novamente e foi nesse momento que eu entendi que aquele som era sua arma para atrair presas desavisadas. Curvei as patas da frente e rosnei com muito mais força, desafiando minha presa. Naquela forma, eu não me importava se era ela ou ele, apenas queria recuperar um pouco do orgulho que eu perdera.

Quando ela ia dar o bote, eu saltei. Graças a minha musculatura muito mais consistente e aos caninos enormes, eu me pendurei no que julguei ser sua jugular. Um engasgo e sangue em minhas patas foram as únicas coisas que notei quando senti suas presas grudarem em minha pata dianteira esquerda. Mordendo com mais força, um grito ecoou e nós dois desabamos.

O chão estava frio e nem mesmo meus pelos conseguiam me proteger. Minha pata ardia e, para minha surpresa, a cobra voltou a ser a garotinha de cabelos loiros. Meus olhos pesavam e eu estava ensanguentado, sem saber se era meu ou da criatura que eu enfrentara. Vocês não devem receber essa notícia com muita surpresa, mas eu odeio admitir: desmaiei.

Uma sensação gelada subiu por meu braço e foi até minha espinha. Tentei me afastar, mas alguém mandou que eu ficasse parado. Primeiro achei que fosse o recrutador, mas aquele filho da uma canina nunca iria me ajudar; depois, senti o cheiro de lavanda e lembrei-me dos olhos acinzentados. Aos poucos, o frio ia abandonando meu corpo e eu já não me sentia tão mal quanto antes.

Abri os olhos de maneira temerosa. Realmente não queria que fosse outra cobra se preparando para me matar. O que encontrei, entretanto, foi uma menina um pouco mais alta que eu, em minha forma humana, com curtos cabelos negros e olhos que eram tão brilhantes quanto a lua cheia.

— Consegue se sentar? – ela questionou se afastando um pouco.

Sua voz não era estridente, mas era tão mandona quanto a da menina-cobra. Neguei com a cabeça sem nem tentar me levantar. Ela revirou os olhos, visivelmente irritada, e segurou minha pata com sua mão esquerda e colocou a outra sob minha cabeça.

— Vamos, tente.

Com sua ajuda e apesar da tontura, sentei-me sobre as patas traseiras. As paredes giraram por um segundo ou cinco, eu não tinha certeza. Em nenhum momento ela se afastou ou pareceu assustada por estar perto de um lobo. Por outro lado, ela puxou a pata que estava machucada e massageou-a com cuidado, chamando minha atenção. Tirando uma cicatriz, não havia mais sangue ou dor no lugar.

Ela estava distraída, observando com satisfação meu ferimento cicatrizado – o que me fez ter certeza de que fora ela quem me curara – quando eu abaixei meu focinho e esfreguei-o com delicadeza contra sua bochecha.

— Por nada – respondeu me direcionando um leve sorriso.

Eu sacudi a cabeça, tanto para agradecer por ela ter compreendido meu gesto quanto para me xingar por ter feito aquilo em uma menina que eu nem conhecia. Entretanto, para meu cérebro ainda zonzo, aquela era a garota que salvara minha vida e eu devia muito mais a ela.

Com cuidado, ela se colocou em pé e esticou algo para mim. Como lobo, eu era só um pouco maior que ela. Olhei para sua outra mão, que a pouco apoiara minha cabeça, e encontrei um dente ainda cheio de sangue em sua mão. Olhei para ela e tenho certeza que a menina sabia que eu estava perguntando o que era aquilo e deu uma risadinha.

— Você nunca caçou monstros não? – questionou revirando os olhos novamente. Quando eu neguei com a cabeça, ela me encarou surpresa. – Sério?! Por essa eu não esperava... Enfim, esse é o seu troféu. Você derrotou a criatura, você ganha algo para que possa guardar.

Meus olhos se arregalaram, mostrando minha compreensão e antes que eu pudesse pegar o que era meu por direito, a menina puxou a fita que estava em seu cabelo, e eu não havia notado, e usou para amarrar o dente a minha pata não machucada.

— Acho que assim ficará mais fácil de você carregá-lo – afirmou sorrindo satisfeita para si mesma. – De qualquer maneira, acho que você precisa voltar, não é?

Eu estava olhando para minha pata meio confuso e surpreso, mas acenei positivamente para responder a questão dela. Antes que eu percebesse, ela passara a mão levemente no topo de minha cabeça e murmurou palavras que foram incompreensíveis para mim. Para me deixar ainda mais surpreso, ela me deu um leve sorriso e correu para o lugar de onde viera. Meu primeiro impulso foi tentar ir atrás dela, mas um grito ecoou pelos corredores e tomou toda minha atenção.

Quando me virei de novo, a menina sumira. Soltei um bufo e corri por outro corredor, que eu só reparara por causa dos berros que o atravessavam. Todo meu corpo parecia completamente novo. Energia fluía por toda a parte e eu tinha certeza de que isso fora efeito da ajuda da garota.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado e deixem suas opiniões! :3



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