Alvo Potter e a Sala de Espelhos escrita por Tiago Pereira


Capítulo 2
Capítulo 2 — Pastilhas Dançantes


Notas iniciais do capítulo

E aí, gente! Tudo bem?
Fiquei feliz demais por vocês terem comentado e elogiado bastante o primeiro capítulo. Espero vê-los todos aqui em baixo novamente! Sim, até você que marcou em acompanhar e não comentou. :(
Como vocês pediram, um capítulo toda sexta-feira! *solta fogos*
Boa leitura! :)



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ALVO MAL TEVE TEMPO PARA PISCAR quando um raio vermelho cruzou o ar e explodiu no rosto mascarado do homem-corvo. Seu corpo foi impelido com uma violência estrondosa, se perdendo na névoa densa que a madrugada proporcionava.

Parada na outra extremidade da colina, a silhueta nebulosa — que Alvo reconheceu imediatamente como a de Flora Nightingale — ainda estava com a varinha erguida, perscrutando todo o território ao seu redor. Foi ela quem atacou o homem, disso Alvo não tinha a menor dúvida.

— Há mais? — ela pergunta ao vento. — Há mais?

Somente então é que Alvo percebeu que a pergunta fora destinada a ele, o único ser consciente no local. Ergueu-se e caminhou para fora da cúpula coalhada de encantamentos de proteção. Quando o Feitiço da Desilusão se desfez aos olhos da auror, seu rosto ficou púrpura. Alvo nem precisou respondê-la; notando que a barra estava limpa, a mulher caminhou altivamente na direção do garoto.

— Eu não dei ordens para você abandonar o seu posto, Potter! — exclamou Flora, guturalmente. — O que pensa que vai fazer?

— Vou embora — respondeu Alvo, categoricamente.

A mulher abriu a boca para falar alguma coisa, mas Alvo se apressou.

— Não vai adiantar nada eu ficar parado coçando o traseiro. Quer nos manter seguros? Mande-nos para casa.

Flora ponderou as palavras do menino por um instante e disse com a voz fraca:

— Não posso...

— Como assim não pode? — retrucou Alvo. — Você não faz parte do Esquadrão de Aurores? Você não é uma líder?

— É claro que sim, Potter — disse com seu tom tradicional. — Mas eu não posso colocar minha missão por água abaixo. Meu objetivo principal não é protegê-lo. Minhas ordens foram para procurar pelos... Bom, isso não é da sua conta. Se quiser ir embora, vá! Preciso cuidar de Yancey.

— Ele morreu — disse Alvo com frieza. — Você sabe quem o matou.

— Sim — disse Flora. — Eu... sei que falhei.

Alvo sentiu um calafrio percorrer por toda a sua espinha. O impulso de chorar tornou-se quase incontrolável naquele instante, mas ele sabia que tinha que ser forte. Flora se ajoelhou ao lado do cadáver, que ainda carregava o fantasma de seu último grito, e colocou a mão sobre o queixo, o polegar deslizando pela pele oleosa. Seu rosto, com o cenho franzido, estava mais lívido do que nunca. A auror balançou inconformadamente a cabeça e um brilho perolado surgiu nos seus olhos. Introduziu o ar gelado da noite nos pulmões e se recompôs. Alvo sentiu uma pontada de dó da mulher prostrada ao lado do homem que era, há tão pouco tempo, membro do seu esquadrão, possivelmente até um amigo.

— Droga — disse Flora, estridente. — Ele não tinha um bom juízo, é claro, mas era integrante da minha unidade. Estava agindo estranho esta noite, até acredito que o seu pai iria demiti-lo depois de ter utilizado a Maldição Imperius em você, moleque. Nunca foram nossas recomendações. Homem biruta!

Alvo não conseguiu encontrar nenhuma palavra apropriada para ilustrar o que fosse que Flora quisesse dizer.

— Que Deus o tenha — disse a mulher, conjurando uma mortalha branca e cobrindo o rosto raquítico de Yancey. — Preciso chamar reforços. Alguém tem de tirar o corpo dele daqui. Não, Potter, não se intrometa nos assuntos ministeriais. Você precisa encontrar Donald MacDuff, ouviu?

O garoto assentiu, a garganta seca. Seu ânimo não estava nem um pouco propício para comemorar o seu aniversário, muito menos para planejar alguma estratégia decente. Queria fugir, voltar para o aconchegante chalé, deitar-se na sua cama macia, fazer uma guerra de travesseiros com Lílian e Teddy. Desejou com veemência que a madrugada fosse um sonho; nunca ambicionara tanto algo. Piscou os olhos fortemente e sentiu as lágrimas se quebrarem nos cílios. Ele continuava na colina, os tênis soterrando a relva. Flora Nightingale, o homem-corvo, Yancey morto e todas os terríveis acontecimentos eram cem por cento reais. Mas fechar os olhos não adiantará nada, pensou.

— Não chore — disse Flora, ríspida e suplicante. — Por favor.

Sem outra alternativa, deu um abraço vertiginoso no garoto. Alvo jamais havia imaginado este momento. Ao mesmo tempo que abraçava a desconhecida mulher que trabalhava para seu pai, a sensação era de estar enlaçado nos braços da mãe. A mulher e o garoto não tinham nenhuma afeição um pelo outro, mas abraços servem para muitas coisas e uma de suas principais finalidades é aliviar os corações aflitos, como verdadeiros curativos de pele. E, para Alvo Severo Potter, não haveria função melhor naquele instante.

— Ande, garoto — disse Flora, gentilmente. — Busque seu irmão, vocês precisam ir. É muito perigoso ficar aqui. No entanto, espere as minhas próximas instruções.

O garoto inspirou profundamente e sacudiu a cabeça positivamente. Girando no próprio eixo, caminhou em passos apressados, refletindo no que acabara de acontecer. Sussurrou o nome do irmão por todos os cantos, mas não houve resposta.

— Tiago! — Alvo alteou a voz. Ouviu um resmungo típico e, depois de agonizantes segundos, o rosto de Tiago apareceu. — Temos que ir embora, rápido.

Tiago esticou os braços, alongando-se. Girou a cintura de um lado e para outro e bocejou. Alvo ia falar alguma coisa, mas Tiago ergueu o indicador, tentando silenciá-lo. O garoto, porém, não se reprimiu.

— Você não ouviu o que eu acabei de dizer? — falou rudemente.

Tiago assentiu e deu de ombros.

— Cadê aquela mulher para desfazer os feitiços? Perdi a moto de vista.

Alvo rolou os olhos para o alto, considerando o comentário do irmão inoportuno. Será que ele não compreendia a gravidade de suas palavras? Ou estava considerando tudo uma verdadeira piada?

— Um auror morreu — disse Alvo, com dolência.

— Nada impressionante — retrucou Tiago, impiedoso. — Qual deles morreu?

Alvo arregalou os olhos verdes, enternecido com a quantidade excessiva de aspereza contida no tom de voz do irmão. Às vezes, a falta de humanidade que Tiago mostrava arrepiava Alvo. Não que o garoto fosse um desalmado, porém seu julgamento sobre as pessoas era quase imediato: ou odeia ou ama. Não existia meio termo. E ele claramente odiava Flora.

— Y-Yancey — gaguejou Alvo.

— Hum — retorquiu Tiago, com indiferença. — Veja, a morcega velha está vindo em nossa direção.

Os olhos de Alvo correram pela extensão até Flora Nightingale, que vinha caminhando com um ar estimulante. Efetuou um floreio com a varinha e os feitiços de proteção foram anulados. A moto de corrida surgiu, nova em folha, como a mulher havia consertado. Em um movimento complexo da varinha, os irmãos Potter testemunharam a motocicleta flutuar, rodopiar em pleno ar e pousar graciosamente em suas frentes. As sobrancelhas de Alvo se arquearam.

— Uou.

Tiago emitiu um guincho, nada impressionado.

— Se eu pudesse utilizar minha varinha, você iria ver o que é impressionante, Al — disse, arrogantemente.

— E, considerando as chances de sua permanência em Hogwarts, é provável que nunca mais irá usá-la — interpôs Flora.

Tiago estava pronto para dar uma resposta recheada dos palavrões mais enfáticos, porém um javali prateado cortou a névoa de Godric’s Hollow e aterrissou como uma bala de canhão entre os espantados irmãos Potter e a Flora. Sua boca se abriu, a ponto de quase engolir Alvo, as presas saindo como chifres da gengiva. Uma voz grave e caricata anunciou:

Reforços a caminho. Praça. Cabine telefônica. Faíscas vermelhas.

O javali se dissipou no ar. Um silêncio incômodo perdurou durante um breve momento. Flora abaixou os olhos e Alvo notou as engrenagens de sua cabeça maquinando, ao passo que ele não fazia a menor ideia de como desvendar o código. Que falta faz Rose, pensou. A auror estalou os dedos e ordenou:

— Potter e... Potter. Sabem onde tem cabines telefônicas por aqui?

Sem hesitação, responderam em coro o primeiro lugar que lhes vieram à mente:

— Na praça.

Os olhos negros de Flora brilharam como duas bolas de sinuca polidas. Posicionou os garotos na moto — Alvo ficara no sidecar de novo —, enquanto, segundo ela própria, tentava vislumbrar do alto da colina quaisquer indícios de fogos de artifícios.

— E aí? — resmungou Tiago. — Vamos ficar parados aqui por mais quanto tempo?

Flora ignorou a pergunta de Tiago.

— Tiago, temos que encontrar um cara — ponderou Alvo, com uma incerteza na voz. — Ele se chama Donald MacDuff, se não me engano.

Um vinco surgiu nos olhos de Tiago.

— Não é possível — disse, incrédulo. — Ele é uma espécie de mensageiro do Ministério, Al, com certeza está com a minha carta de expulsão. Temos que ir o mais rápido possível atrás dele e rasgar a carta.

— Creio que não será muito eficiente — disse Alvo, displicente. — Os fatos não mudarão. Acho mais fácil nós obedecermos às ordens e, se tudo der certo, você pode considerar os feitos de hoje para revogarem a expulsão.

— Duvido muito — disse Tiago. — Meu histórico é horrível. Embora, na verdade, não tenha tido notas ruins.

— Viu? Quem sabe eles não consideram isto.

Tiago encolheu os ombros, mas o otimismo estava de volta à sua voz.

— É, quem sabe.

Uma ventania acentuada ululou sobre os garotos e a névoa foi perdendo a intensidade. Alvo pressionou as mãos na borda do sidecar e abaixou a cabeça, evitando a camada de terra que o vento trazia em seus olhos. Era como se um furacão estivesse se formando perto da colina. Flora colocara o antebraço na testa, estreitando as pálpebras. Havia algo de incomum e todos sabiam disso.

Faíscas azuis estouraram no céu diversas vezes, como se fossem endereçadas à mulher. Quase instantaneamente, o mesmo javali prateado irrompeu e pousou no meio da colina. O coração de Alvo acelerou abruptamente quando ele falou na mesma voz grave:

Emboscada. Carver vivo. Reforços. Faíscas azuis. EMERGÊNCIA.

O corpo de Alvo se arrefeceu quando o javali desbaratou. Não foi muito difícil entender o código. Se havia compreendido bem, os aurores caíram em uma emboscada, algum Carver sobreviveu e trouxe reforços. As faíscas azuis que clareavam o céu era um chamado de emergência.

Tiago ligou o motor, que vibrou e roncou como um dragão furioso. O som era tão alto que não conseguiram ouvir as instruções de Flora, mas não havia outra instrução a seguir a não ser uma: fugir. Tiago avançou assustadoramente para fora do penhasco quando um lampejo verde passou à centímetros da orelha do garoto. Houve uma guinada brusca e Alvo pôde ver, mesmo metros abaixo do irmão, outro homem mascarado, embora não fosse o mesmo. Possuía a pele negra, ombros largos e uma expressão intransigente.

— BUSQUEM MACDUFF! — berrou Flora. — CUIDADO!

Alvo viu o homem mirar a motocicleta, mas Flora já havia lançado um lampejo vermelho que fez o homem se contrair totalmente para se desviar. E então um duelo se formou, com lampejos se encontrando, desviando e uma chuva de estrelinhas douradas caindo sobre a colina.

A moto levantou voo e os Potter foram tragados pelo breu da noite, que já apresentava um tom cintilante de roxo e azul. O pitoresco vilarejo foi entrando em foco conforme os garotos se aproximavam do coração da aldeia. Haviam perdido a noção do tempo.

— Que horas são? — perguntou Alvo.

Tiago, concentrado na fuga, deu uma leve refreada na moto e apanhou o relógio de bolso. Fez uma careta e atirou o artefato no colo de Alvo.

— Meus óculos estão embaçados, não consigo ver direito.

Alvo, que tinha espaço de sobra no sidecar, verificou os ponteiros. O menor estava próximo do número quatro, ao passo que o maior estava se movendo lentamente para o onze.

— Acho que são quase 4h — disse Alvo, por fim. — Tiago, acho melhor descermos e irmos a pé até a praça. Os trouxas não estão muito habituados a ver uma moto voadora.

— Hã-hã — respondeu Tiago. — Tem razão, irei estacionar naquele pub.

Tiago mergulhou lentamente até uma estradinha de paralelepípedos que eles tanto conheciam. A moto aterrissou acintosamente e Tiago se esforçou para não içar voo. O vento erguera uma quantidade de folhas de jornais encardidas. Perto de um banco amadeirado onde um mendigo dormia agarrado à uma garrafa de xerez, Alvo ouviu uma voz engrolada.

— Veja, Norton, uma moto enorme acabou de pousar na estrada.

Uma outra voz embolada falou:

— Eu disse para você não beber muito, Angus.

— É sério — retrucou Angus. — E tinha um garoto dirigindo e outro no sidecar.

— Cale a boca, velhaco, me deixa dormir.

Tiago fez uma curva à esquerda e a pracinha foi surgindo aos poucos. Luzes brancas iluminavam o coração da vila, que estava praticamente deserta. Tiago avançou mansamente, passando pelas lojas e o correio fechados. O vulto de um casal de aldeões, ligeiramente iluminados por lampiões, cruzou o caminho da moto. Tiago desviou por pouco e os pneus deslizaram ; Alvo foi lançado para a lateral do sidecar, acertando o ombro em cheio na lataria.

— Idiota! — gritou o rapaz, aparentemente embriagado. — Eu vou... ‘seus olhos!

Mesmo sem entender uma palavra, Tiago retrucou: rancar

— Olhe por onde anda!

O homem ergueu os punhos ossudos e soltou um arroto. A namorada tentou impedi-lo. O rapaz disse:

, meu amor... esse ‘diota tentou de matar... Voltaqui, covarde!

Mas Tiago já havia acelerado a Triumph Bonneville T120 e estacionado ao lado de uma modesta fileira de motos à frente de um pub; sacou a varinha do cós do jeans. Alvo saltou do sidecar e se pôs na frente do irmão.

— Não, Tiago — falou. — Não vale à pena. Temos uma missão para cumprir.

O vento soprou sobre as madeixas pretas de Tiago, que parecia considerar de algum modo as palavras de Alvo como uma vantagem pessoal. Seu rosto se acendeu com a ideia de poder se tornar um herói e ele guardou a varinha.

— OK, Al — disse Tiago. — Vamos atrás do Donald MacDuff. Há algumas cabines perto daquela mercearia. Tente encontrar algo que pareça útil. Aliás, de onde vieram aquelas faíscas?

— Não faço ideia — respondeu Alvo. — Mas eu tenho certeza de que não vieram daqui, seria completamente indiscreto. Pode ter sido perto de casa, sei lá.

Tiago partiu na direção das cabines telefônicos enquanto Alvo não sabia o que poderia fazer para contribuir. Caminhou até o centro da praça, aonde, ao invés de um obelisco recheado de nomes inscritos, havia a estátua da família Potter. Tiago e Lílian, seus avós, pareciam tão vivos, embora estivessem tão distantes. Alvo tocou na base de pedra e mirou nos olhos do bebê aninhado nos braços da bela mulher de rosto bondoso.

Aonde você está, pai?, mentalizou. Ouviu uma movimentação seguida de música pop e notou algumas pessoas saindo do pub; a porta se fechou, emergindo o local no silêncio.

Alvo teve uma sensação estranha, como se estivesse sendo observado. Olhou de soslaio por cima do ombro e reparou em um gato de listras amarelas sentado na esquina em que entraram na pracinha. Sacudiu a cabeça e se voltou para as cabines telefônicas. Não havia sinal de Tiago.

O céu já estava começando a mudar de tom. A escuridão ia se transformando aos poucos em um azul-marinho e as estrelas iam perdendo o seu intenso brilho. Alvo estava tão distraído que foi despertado quando uma buzina aguda ressonou.

Girou os calcanhares e encarou um Tiago com o rosto sujo de fuligem, os cabelos desgrenhados, mas um sorriso triunfante no rosto. No banco de trás, um homem baixo e rechonchudo se segurava no estofamento para não cair.

— Achei ele — disse Tiago. — Venha, suba, Al. Temos que voltar para casa.

Alvo abriu um sorriso desmesurado e correu até o sidecar, aonde se atirou no seu interior. Seus olhos verdes se ergueram e se encontraram com os olhos azuis de Donald MacDuff.

— Olá, Sr. Potter — disse, com um sorriso formal. — É um prazer conhecê-lo.

O rosto de Donald era redondo como um biscoito. Seus cabelos eram uma cortina acetinada loira que caía nos ouvidos. Vestia uma camisa de botões com babados no fim das mangas. Um justo cinto suspensório, uma lederhose e polainas, além da bolsa de carteiro que mostrava a sua posição lhe davam total impressão de um típico germânico.

— Olá — disse Alvo, acanhado. — É um prazer também.

— Ei! Ei!

As cabeças se viraram. Um policial magro e alto se aproximou da motocicleta. A música pop no pub diminuiu e algumas luzes nos chalés se acenderam. Pares de olhos apareceram por trás das persianas, observando o tumulto.

— Vocês foram pegos em flagrante, rapazinhos — disse o policial alto e magro. O distintivo dourado no peito brilhou contra a luz. — Sou o Sargento Walton. Desçam da moto com as mãos na cabeça.

Alvo e Tiago se entreolharam, sem saber o que fazer. A mão de Tiago deslizou até o jeans, mas Alvo balançou a cabeça negativamente. Utilizar um feitiço agora em meio de tantos trouxas era assinar a própria sentença. Com as mãos atrás da cabeça, os Potter e Donald MacDuff saíram da moto e se posicionaram de frente com Walton.

— Absolutamente ultrajante — disse Donald. — Um trouxão como você está se achando muito.

Walton balbuciou de raiva, mesmo não entendendo o termo utilizado.

— Eu não lhe dei permissão para falar, rolha de poço.

Tiago pisou levemente no pé de Donald, que engoliu a seco um grito; seu pomo-de-adão subiu e desceu. Walton deu um risinho debochado e apanhou um bloco de papel. Pressionou um botão em sua caneta e começou a anotar em voz alta.

— Menores de idade dirigindo uma moto. — Walton se inclinou para ver a placa inexistente. Fez um risco no papel. — Dirigindo uma moto irregular. Tentativa de atropelamento... Palavras de baixo calão... Desacato à autoridade...

— Alguma ideia? — sussurrou Tiago com o canto da boca.

Alvo raciocinou. Fechou os olhos e tentou pensar em um plano.

— Indiciados por mais de cinco crimes — continuou Walton. — Entraram em uma baita encrenca. Nomes.

— Depende — disse Tiago, ironicamente. — Existem vários nomes. Uns mais comuns, outros mais esquisitos. É para seu filho? Eu daria o nome de Bernardo, sabe, é um belo nome.

Walton continuava a anotar com um sorriso malicioso no rosto.

— Você tem um ótimo senso de humor, garoto.

— Como assim? — retorquiu Tiago, em uma falsa inocência. — Você estava falando dos nossos nomes? Por que não disse antes? Meu nome é Tiago Sirius Potter, este é Alvo Severo Potter e aquele é Donnald MacDuff.

Alvo permaneceu calado, os olhos girando para cima, espreitando os postes e os lampiões. As luzes. Se não houvesse luz, eles poderiam fugir, embora o amanhecer acontecesse em torno de uma hora, mais ou menos. Contudo, enquanto houvesse escuridão, eles poderiam sair o mais rápido possível.

— Nomes incomuns, hein? — desdenhou Walton. — De onde tirou? De uma caixa de cereais? E esta camisa, magricelo? The White Bats? Tsk, me poupem! A coisa vai ficar preta para vocês. Vou levá-los para a cadeia!

E andou até Alvo. A cena pareceu transcorrer em câmera lenta. Walton, com seus cabelos louros ajeitando o quepe, sorrindo maldosamente, um par de algemas pronta para ser usada. Alvo sentiu raiva de sua fragilidade; piscou os olhos e ouviu o som de vidro se estilhaçando de todas partes:  plaft, plaft, plaft!

Houve uma sessão de gritos aterrorizantes no pub. Um baque surdo ocorreu e, em meio ao blecaute, os Potter tentaram correr, mas uma mão pesada agarrou o tornozelo de Alvo.

— Não, moleque — disse Walton, abatido. — Você não vai a lugar algum!

Alvo sacudiu a perna, mas era quase impossível se mover, principalmente se tratando de um garoto de onze anos contra um homem de trinta. Olhou para Tiago que metera a mão no bolso da jaqueta e lhe atirara um pacote retangular do tamanho de uma vela. A princípio, imaginou que fossem Feijõezinhos de Todos os Sabores, mas com certeza um tira-gosto em meio à uma fuga errática não era a melhor opção.

— Faça-o engolir! — gritou Tiago.

Alvo ergueu as abas do pacote e atirou uma pastilha açucarada na boca de Walton que gritava para ele não correr. O doce caiu no abismo de sua boca e, em poucos instantes, as mãos rijas do policial se soltaram do tornozelo magro de Alvo, que parou para contemplar o efeito. Walton levantou-se em um salto e cingiu os dedos no próprio pescoço, como se a garganta estivesse em chamas. Tiago curvou o canto dos lábios e um emblemático sorriso travesso surgiu, com ar de triunfo. Uma gostosa gargalhada saiu de sua boca e Alvo ficou incrédulo com a atitude do irmão em rir do sofrimento de Walton. Porém, ao voltar-se para o policial, o encontrou da maneira mais inusitada possível: dançando “Shake Your Groove Thing”, ao melhor estilo anos 70.

O esgar de descrença de Alvo se desfez e ele mesmo deu boas gargalhadas. Mesmo em meio ao azul-marinho noturno, Alvo viu Donald MacDuff se enfiando no sidecar e chamando os garotos. Metendo o pacote no bolso da calça, Alvo e Tiago, rindo à toa, dispararam na direção da moto e literalmente deram um pulo para se sentarem na grande motocicleta de corrida, que ganhou vida e pulsou como um coração motorizado. A lanterna traseira da moto se acendeu e Tiago, num movimento arriscado, empinou a moto.

— Vocês me pagam! — gritava Walton, dançando Thriller. — Eu ainda pego vocês!

— Desculpe pelo incidente! — disse Alvo acima do ronco do motor.

— Até mais, Sargento Walton — disse Tiago, chapando o capacete na cabeça. — E não se esqueça: Bernardo é um belo nome!

O ronco estremeceu as vidraças do pub e chacoalhou os estilhaços no chão da pracinha. As pessoas, antes acuadas, surgiam com um toco de vela com grossos pingos de parafina sólidos para ver a confusão de perto.

— Chamem a polícia! — Alguém gritou.

— Eles já estão aqui, e ainda por cima dançando! Culpa da May!

Tiago, felicíssimo com o tumulto, acelerou o máximo que pôde e voltou para a estradinha. Alvo se segurou no banco do carona, Donald iniciou suas preces e Tiago fez uma curva célere e acentuada, deixando um facho da luz traseira como um rubi sumindo de vista, rumo à residência dos Potter.

— Afinal, foi você quem estourou aquelas lâmpadas, Donald? — perguntou Tiago.

— Eventualmente, não — afirmou Donald. — Imaginei que tivesse sido você, Sr. Potter.

Alvo vergou as sobrancelhas, estarrecido.

— Bom, se não fomos nós — retomou Donald. — Só pode ter sido você, Sr. Potter.

Referia-se a Alvo.

— Eh... pode ter sido — disse Alvo, com simplicidade. — Mas, como? Eu nem possuo varinha.

Donald chacoalhou enquanto ria.

— Isto é normal, Sr. Potter. Bruxos que ainda não possuem varinhas são capazes de executar mágicas inacreditáveis! É quase incontrolável. Mas isto não quer dizer que você irá para Azkaban, afinal, quem castigaria crianças que ainda não sabem utilizar a magia devidamente?

— É —  Alvo concordou, absorto. Ainda havia esperança de não ser beijado por um dementador. — Falando nisso, você tem cartas para nós?

Donald concordou. Tiago e Alvo se entreolharam quando a moto fez mais uma curva, contornando a praça e chegando ao seu lado oposto, onde havia uma igrejinha, cujos vitrais brilhavam como joias.

— Mas recebi ordens específicas que deveriam ser entregues ao senhor ou à senhora Potter — disse Donald, empinando o nariz.

Alvo deu de ombros e se virou para Tiago.

— E o que era aquela coisa que fez o policial dançar, Tiago? — Sacudiu o bolso do jeans aonde o pacote de balas estava.

— Está falando das Pastilhas Dançantes, a oitava maravilha do mundo? — Tiago riu enfaticamente ao se lembrar de Walton e sua bizarra dança. — Fred, Roxanne, tio Jorge e eu estamos criando ainda para a Gemialidades Weasley, sabe. Ainda está em fase de teste, mas, como foi para uma situação de emergência, considerei útil. Enfim, calhou no momento certo.

A moto foi introduzida em uma rua de campo aberto pouco iluminada, que saía da aldeia. Procedendo alguns metros em poucos minutos, Tiago reduziu drasticamente a velocidade enquanto passavam pelos chalés. No final da fileira de casas, Tiago freou em frente do chalé com sebes milimetricamente aparados. Acenou para Alvo, que desceu e abriu o portão de ferro com a combinação do cadeado.

Tiago andou lentamente, Donald ainda no sidecar. Seguiu o trajeto de pedras polidas e parou a moto ao lado do Rolls-Royce Silver Shadow verde-escuro do pai. Alvo olhou de um lado a outro, verificando os arredores. A rua estava mergulhada na taciturnidade. Trancou novamente o portão e caminhou na ponta dos pés até a porta com Tiago e Donald no seu encalço. Pisoteou algumas urtigas e ervas daninhas. Na parte baixa do chalé, as heras estavam começando a se apossar da madeira.

Alvo ergueu o indicador na altura dos lábios e se agachou para apanhar a chave sob o carpete felpudo de boas-vindas. Naquele momento era possível ouvir uma agulha caindo no chão em um raio de 40m. O garoto Potter girou a chave na fechadura, mas não foi ele quem abriu.

Houve um suspiro coletivo. Parada com um robe de cetim lilás, baixa e magra, os cabelos ruivos tão vivos como um incêndio flamejante e os olhos castanhos resplandecendo de fúria, Alvo viu, através do pórtico, sua mãe, a Sra. Potter. Uma mão no quadril, a outra apontando a varinha diretamente para o peito de Donald MacDuff.


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Notas finais do capítulo

POR QUE SERÁ QUE A GINA ESTAVA MIRANDO O DONALD? POR QUÊ? POR QUÊ? DESCUBRAM NO PRÓXIMO CAPÍTULO DE "ALVO DO BAIRRO"

Obrigado se você chegou até aqui, gostaria de fazer somente uma consideração: NÃO, o patrono de javali não pertence ao Ernesto McMillan. Quem leu os livros talvez se lembre que o patrono dele é um javali. Mas não é o caso.

Curiosidade: o nome de Donald MacDuff foi inventado enquanto eu estava no McDonalds.

Muito obrigado mesmo por lerem e fiquem à vontade para comentarem, dizerem o que acharam deste capítulo, sobre o Alvo, o Donald, o Tiago e Walton. Eu juro que se vocês não comentarem eu mando o Pirraça assombrar sua casa, hein! >:(

E NÃO SE ESQUEÇAM: BERNARDO É UM BELO NOME!

Att,
Tiago



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