Festa caipira escrita por slytherina


Capítulo 1
Vou pedir a Santo Antônio




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O tecido de algodão barato, com cores vivas e chamativas, pouco a pouco foi moldado em um belo e feminino vestido, de mangas curtas bufantes. Seu busto tinha uma graciosa gola branca que combinava com a fita que lhe marcava a cintura. A mocinha exigira muitos folhos e nervuras na saia, pois julgava que moças caipiras adoravam esses detalhes. A velha senhora nada falou. Apenas seguiu o bom senso, fazendo apenas um folho, com fita de cetim na barra em cor escura. O vestido não ficou deslumbrante, mas não faria feio se fosse usado em um dia normal.

A mocinha veio experimenta-lo. Olhou daqui e dali. Puxou e repuxou. Como fantasia caipira para festa junina estava muito simples, mas que poderia fazer em cima da hora? Decidiu-se por um esfiapado chapéu de palha com longas tranças falsas. Isso apagaria a má impressão daquela fantasia sem graça.

"É, vou usar esse vestido, embora não seja muito enfeitado. Quanto lhe devo?"

"Quarenta."

A mocinha pagou a modista e se foi levando o embrulho consigo. A idosa sentou-se na cadeira de vime do seu estúdio, recostou-se e fechou os olhos. Pensou na festa que aconteceria logo mais à noite. Festa de Santo Antônio. Dia dos namorados. Todos os jovens estariam participando de festas temáticas em suas escolas ou comunidades. As moças iriam caracterizadas como garotas do interior, com vestidos de chita, sobrancelhas marcadas, batom vermelho e sardas falsas. Os rapazes usariam roupas com remendos. Bigodes pintados no buço e o onipresente chapéu de palha.

A modista sorriu. Nem na sua juventude o povo da roça se vestia assim, mas graças aos filmes de Mazzaropi, a figura do matuto remendado, bronco e meio lerdo, foi imortalizada. Quando era jovem também se festejava festas juninas, mas as pessoas usavam roupas normais. Ela abriu os olhos, mas não mais viu seu estúdio de costura. Estava outra vez nos anos de sua mocidade, na varanda da casa dos pais, no rincão querido de seus antepassados.

Ela penteara o cabelo vezes sem conta, para que o mesmo ficasse perfeitamente liso, e então amarrara a fita azul clarinha formando um bonito laço. Seu vestido tinha uma saia rodada, como vira nos filmes que eram exibidos no centro paroquial. Ela caprichara no visual para comparecer à festa de Santo Antônio, o santo casamenteiro. Quem sabe ela não teria sorte e conseguiria encontrar seu príncipe encantado?

Laudicéia, esse era seu nome, embora todos a conhecessem por Cecé. Ela foi para o arraial da igreja. Havia barraquinhas de comida, estandes de jogos, várias fogueiras, teatrinho de bonecos, quadrilha, várias crianças correndo, e até mesmo algumas carolas entoando cantos sacros. Cecé aproximou-se de um grupo de jovens que mexiam em uma bacia com água, fazendo mandingas para Santo Antônio. Elas riam muito e algumas até faziam cócegas umas nas outras.

"Do que vocês estão brincando?"

"Vai embora, Cecé! Isso não é pra você. Estamos tentando adivinhar o nome de nossos futuros maridos."

"Eu também quero brincar."

"Não! Você ainda não tem idade pra namorar Cecé. Vá brincar com aquelas crianças ali."

Cecé se viu empurrada em outra direção. Ela se virou para ver as crianças e estas estavam correndo sem direção, até que trombaram e foram ao chão, se sujando de terra e grama. Cecé se virou estupefata, preparada para discutir com as outras jovens. O que elas estavam pensando? Ela não era mais uma pirralha.

As outras moças estavam outra vez rindo baixinho, enquanto tentavam adivinhar um nome masculino na bacia de água. Cecé desistiu de brigar com elas. Não valia a pena se indispor com pessoas idiotas. Ela se dirigiu para o oratório de Santo Antônio. Ficou algum tempo admirando a imagem do santo carregando o menino no colo. Santo Antônio era um sujeito tão bonzinho que deveria ser de carne e osso, para que pudesse conversar com ele.

"Gostaria de conversar com o senhor, Santo Antônio, tenho certeza que seríamos muito amigos."

"Tenho essa certeza, também."

Cecé se assustou e se virou abruptamente em direção àquela voz. Diante de si havia um par de olhos calmos, como a superfície de um lago no fim do dia. Ele sorriu para ela e duas covinhas apareceram em suas bochechas. Ela ficou atônita. Deveria ser ilegal ser tão atraente assim.

"Não deveria ficar bisbilhotando os outros. Isso não é educado."

"Desculpe-me! Também sou devoto de Santo Antônio e não me contive. Eu me chamo Epitácio, mas todos me conhecem por Tururim."

O rapaz estendeu a mão para cumprimenta-la. Cecé relutante apertou a mão dele e falou num fio de voz: "Laudicéia".

Cecé não tinha medo dos rapazes. Ela até os achava grosseiros e sem modos. Vivia sonhando com um príncipe hollywoodiano que a arrebataria daquela vidinha sem graça de Jeca Tatu. Entretanto, cá estava ela, encabulada, corando como uma menina apanhada fazendo traquinagens. Tudo porque aquele moço Tururim a tratava com deferência e respeito, como se ela realmente fosse uma moça casadoira.

"Laudicéia é um lindo nome e combina com você."

"Obrigada, mas pode me chamar de Cecé, que é como todos me chamam por aqui." Ela falou ainda envergonhada, mas fazendo um esforço para tomar as rédeas do coração, e parar de corar ridiculamente.

"Então, tá. Olha, Cecé, já vão começar a quadrilha. Vamos dançar?"

E ela foi. Nunca se importara tanto com a quadrilha antes, pois os rapazes sempre pisavam no seu pé, ou erravam a dança, mas agora, tudo mudara. Tururim a guiava como um exímio dançarino. E as mãos dele na sua cintura a faziam ter arrepios. Logo estava novamente corando e tonta. A música, o movimento, o rosto dele, sorridente e tão bonito. Tudo isso foi demais para ela, que simplesmente abandonou a dança e se afastou.

Ela sentiu o toque dele no ombro, e se envergonhou por estar se comportando como uma sua tia solteirona, tomada por calores e tremores perto de um homem, mas não conseguia controlar suas reações.

"Tudo bem, Cecé? Quer que chame alguém? Talvez sua família?"

"Não, tudo bem. Acho que não estou acostumada a dançar tanto. Foi só isso."

"Tá! Você já comeu alguma coisa? Talvez se comer algo doce possa se sentir melhor."

"Sim, é uma boa idéia."

Foram para o estande de comidas e se serviram de bolo de milho verde, curau e maria-mole. Pouco a pouco, Cecé foi se controlando e parando de corar por estar perto de Tururim. Ainda se sentia andando nas nuvens, como se o sonho das fitas de cinema tivesse se tornado realidade, mas ela sabia que aquela não era uma fantasia, mas um rapaz de carne e osso.

Passearam pela festa, pularam fogueira, ele jogou argolas em garrafas e ganhou um bibelô que deu a ela. Por fim voltaram ao início de tudo, aos pés de Santo Antônio.

"Tenho uma coisa pra te dizer, Cecé."

Ela ergueu os olhos envergonhada por estar emocionada. Tudo naquela noite fora mágico e perfeito. Desde a imagem do santo com o menino, até o rapaz encantador que conhecera. Ela tinha vontade de chorar.

"Pois fale."

"Eu nunca te vi em toda minha vida, mas sinto como se nos conhecêssemos há anos. Você é a garota mais linda que já encontrei ou que jamais encontrarei. Eu sei que sou um completo desconhecido, com um nome de passarinho, mas eu gostaria muito mesmo, que você me desse uma chance. Tenho certeza de que não sou um traste, e que sei ser um homem decente. Gostaria que você fosse minha namorada, Cecé."

Ela sabia que tinha o rosto banhado em lágrimas, e que provavelmente seu nariz escorria também, mas não tinha como ficar apresentável, depois de ouvir coisas tão bonitas do homem que roubara seu coração.

"Aceito." Ela se ouviu dizer.

Ele então abaixou o rosto lentamente e encostou os lábios macios nos dela, úmidos pelas lágrimas.

Dona Cecé, a velha modista, encostou dois dedos encarquilhados nos lábios murchos. A imagem do arraial de Santo Antônio se desvaneceu totalmente de seu campo de visão. A única coisa que via agora era a velha máquina de costura a pedal, o manequim sem rosto expondo seu penúltimo trabalho, além de estantes cheias de tecidos e roupas prontas. Ela levantou-se pesadamente e foi até um armário velho, de onde tirou um volume grande, com capa de couro, já bastante desgastado pelo uso. Seu álbum de família. Voltou para sua cadeira de vime e abriu o álbum. De todas as fotos dispostas, uma lhe era muito querida. Nela estava um casal no dia de seu matrimônio. Dona Cecé beijou a ponta de dois dedos e encostou-os na figura do noivo.

Este fora um dia feliz. Após muitas discussões, seus pais aceitaram que se casasse com seu namoradinho, Tururim. O pobre rapaz trabalhava duro no armazém do tio, para provar que poderia sustentar sua esposinha. Ela até aprendera a costurar, para ajudar nas despesas da casa. E quando o filhinho nasceu, as coisas ficaram difíceis, mas ela nunca antes fora tão feliz em sua vida.

O sono chegou e Dona Cecé fechou a casa para ir se deitar. Após o casamento do filho e a morte de Seu Tururim, ela vivia sozinha, sustentando-se com dinheiro da previdência e uma costura aqui e outra acolá. Optará por continuar viúva, pois amor como o que tivera acontecia somente uma vez na vida.

Ao passar pelo corredor, lembrou-se de apagar a vela do oratório de Santo Antônio. Desde sua mocidade ela tinha grande carinho pelo santo, como a um grande amigo. Afinal, ele a ajudou a encontrar o mais encantador rapaz das redondezas, seu futuro marido.


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