Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 80
Rzhavyy


Notas iniciais do capítulo

14/03/2019
Olá! Trago mais um capítulo para vocês, recheado de winterwitch e fofurices. Merecemos, não é mesmo?



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/697672/chapter/80

 

Rzhavyy

"Enferrujado"

 

— Eu não gosto de nada disso, Barnes. — Natasha disse, embora seu rosto permanecesse numa expressão angelical. Estavam no centro da capital da Romênia, sem malas: apenas roupa de corpo, documentos falsos e equipamentos muito bem escondidos. O único item mais interessante que trouxeram foi a seringa vazia, disparada pelo Sentinela. Estavam na esperança que Yelena Belova tivesse mais coisas a dizer sobre aquele objeto.

Bucky ajeitou os óculos escuros antes de responder. Tinham chegado pela manhã no horário local, começaram o dia com uma refeição e depois prosseguiram com uma volta breve pela cidade. Escondiam-se de câmeras na rua e da polícia, os dois severamente treinados para não parecerem suspeitos aos olhos de ninguém.

— Descobrimos em qual apartamento ela mora, mas não sabemos ainda da rotina e Yelena é esperta. É melhor nos separarmos para sondar o bairro e ver se descobrimos algo. Também vou checar se ainda existe alguma conversa sobre o Sentinela por aí.

— Eu só não confio em palpites dados por pessoas que não conheço. Tipo um gato falante.

— Pensei que gostava de gatos.

— Não é esse o problema. — Ela colocou as mãos nos bolsos e juntos atravessaram a rua. Passavam a impressão de serem cidadãos comuns, por vezes olhavam as vitrines das lojas. Bucky lembrava-se de ela ter comentado sobre o próprio bichano, Liho, que estava na Rússia naquele momento. Natasha pretendia levá-lo a Outer Heaven, se possível. — E se esse gato é tão especial assim, por que não pegou as informações que precisamos?

— Porque ele tem outras coisas na agenda dele.

O soldado sorriu quando recebeu um olhar irritado de Natasha.

— Eu deveria ter ido com Steve para o Instituto Xavier.

— É, mas Sam não quis vir comigo.

— Aí já é problema entre vocês dois.

Ele não lhe deu nenhuma resposta ácida, pois na realidade concordava com a russa em um ponto: ela e seu amigo Steve se davam bem. Muito bem. A dinâmica dois era fluida, agradável tanto em conversas tolas à noite quanto em momentos sérios. Bucky se flagrava pensando se havia algo mais. Talvez até mesmo torcendo. De qualquer modo, não era um momento para pensar sobre isso.

Sabia também que Natasha estava um tanto ansiosa pelo encontro com Rooskaya, sua nêmesis e sua irmã de horrores. Não podia culpá-la.

— Seu comunicador está ligado, Barnes?

— Sim. — Ajeitou o volume na orelha. — Vai pela direita?

— Positivo. Nos encontramos nesse mesmo ponto daqui a… Não sei, quatro horas?

Ele confirmou com um aceno.

— É mais que o suficiente para investigação inicial. E também será no pôr do sol. Veremos Rooskaya chegando ou partindo.

— Fique longe de problemas. E me chame se precisar.

— Pretendo não ter a necessidade. — Ele respondeu, despedindo-se dela como se desse um breve adeus a uma amiga. Ninguém na rua gastou tempo para encarar o abraço curto de ambos. — E não faça nada estúpido até eu voltar.

A risada dela foi genuína.

— Eu aprendi esse diálogo entre você e Rogers. Essa é a hora que eu respondo: Como? Você está levando toda a estupidez com você.

Você aprende rápido.

— É, eu sei.

Uma pausa. Ele sentia a questão do Salão Vermelho no ar, trazendo peso aos ombros da antiga bailarina. Seus olhos estavam vazios. Bucky sabia agora que ela se lembrava dele, que se lembrava de tudo.

Assim como ele.

— Eu tentei matá-la.

— Eu sei. E eu quase consegui, com o tiro no gelo do lago.

— Você sofreu lavagem cerebral, Barnes.

Ele deu de ombros, tirou os óculos escuros do rosto e os pendurou na gola da camisa por debaixo da jaqueta.

— E de certa forma você não sofreu?

Silêncio. Natasha então deu um suspiro e disse:

— Tente não ser preso de novo, Bucky. Deu trabalho soltá-lo da última vez. Steve fez um escândalo.

— Apesar de saber que você gosta de um desafio, vou tentar me conter hoje.

Com um sorriso torto, se separaram.

 

Bucky pegou o metrô, mas não chegou a estação em que houve o ataque do Sentinela há tantos dias. Pretendia dar uma olhada no lugar, ver se descobria algo novo ou se escutava outro boato sobre o ocorrido, porém tal coisa se mostrou impossível. Já fazia mais de um mês e ainda não tinham consertado totalmente o local, o que obrigou o metrô a fazer um desvio e parar em outra estação.

Uma que ficava perto de seu apartamento com Wanda.

Ele não resistiu e começou a percorrer o caminho que havia se tornado tão familiar, atravessou as esquinas sem nem bem se preocupar com o trânsito. Tinha a chave consigo, pois imaginava que daria uma escapada para lá uma hora ou outra, quem sabe na volta da missão. Só depois de se acomodar em Outer Heaven que percebeu ter deixado seu boné cinza para trás, também presente de sua boneca, e desejava recuperá-lo. Gostava daquela peça e a queria de volta.

Ao mesmo tempo, entendia que não conseguia enganar a si mesmo, pois não estava se dirigindo até lá apenas por causa um boné. Ele sabia que ela não estaria lá, mas… Mas queria visitar o local onde tantas memórias boas aconteceram, mesmo que fosse só por um momento. Mesmo que fosse só pela ilusão.

Frequentemente ia aos ambientes que lhe provocavam lembranças, boas ou ruins, talvez porque durante muito tempo não pode confiar na própria cabeça. Um hábito seu, de tentar tocar memórias intangíveis. Tinha ido no Museu Smithsonian quando redescobriu a própria identidade. Foi atrás das bailarinas, visitava ocasionalmente ao Ateneu de Bucareste para recordar-se delas… E agora, o apartamento. Para ver de novo a Feiticeira Escarlate, sua magia, sua doçura.

Sentiu-se tolo e cansado.

Abriu a porta, depois tentou logo fechá-la naquela mistura de xingamentos e força para colocá-la enfim no lugar. Maldita trava na maçaneta e maldito Remy LeBeau que nunca a consertou. Conseguiu sela-la somente quando causou impacto com seu ombro, o que fez o trinco girar na direção certa. Bucky soltou um suspiro e se virou para a sala, tentando encontrar o boné cinza.

Seus olhos, no entanto, encontraram uma mulher. Ela se virou devagar, enquanto Bucky permanecia congelado na mesma posição, seu coração parado. Sua boneca, em troca, sorria. Ele então compreendeu por completo quando Wanda narrava sobre ver auras, sobre emoções, pois enxergava uma camada escarlate pairar sobre a pele dela, ou então se tratava da luz que vinha da janela. Etérea e vermelha, assim nos seus sonhos, mas agora ao seu alcance. Engoliu seco.

— Eu voltei. — Ela disse, sua voz tímida. — Eu disse que ia voltar.

Ele não respondeu, só tirou o comunicador do ouvido e o colocou na bancada. Natasha não precisava ouvir aquela conversa, ou melhor, aquela não-conversa. Aproximou-se o mais rápido que pôde, tirando toda e qualquer distância entre ele e ela, o que a fez rir e repetir seu nome do jeito que só era capaz de dizer: “James”. A segurou firme pela cintura, com a outra mão acariciava seu pescoço. Abraçava-a como se no momento seguinte ela fosse desaparecer, pois já havia feito isso antes e ele sentira sua falta. Beijou-a e beijou-a até que sua sede pela cor escarlate fosse enfim saciada. Depois, seus lábios encostaram de leve nos dela, de maneira cálida e doce.

Ele seguia parado ao abraçá-la, mas sentia o chão incerto sob seus pés, sua cabeça um pouco longe demais da realidade. Com delicadeza, ele se afastou de seu rosto ainda segurando seu queixo, observando sua boca, depois seus olhos verdes. A respiração de sua boneca era inconstante, até um pouco ofegante, sua expressão tão inebriada quanto a dele.

— Você me achou. — Ele disse.

Concordava com o que tinha escutado antes. Feiticeiros vão para onde devem estar. Wanda tinha encontrado um caminho pra sua cabeça e para o seu coração. Com um sorriso, ela então acariciou seus cabelos, passou a mão em sua barba por fazer. Riu um pouco mais alto.

— Nós somos uma bagunça, James.

— Uma bagunça terrível.

— Eu sei. Eu sei…

Ela o abraçou forte, ele enterrou o próprio rosto em seus cabelos. Wanda confessou baixo em seu ouvido, brincando com algo que ele havia dito:

— Eu segui o uivo no breu.

Bucky engoliu seco, sua voz quase embargada. Aproximou sua boca do ouvido dela, as palavras afinal escapando de seus pulmões. Não era muito bom com palavras, talvez só com flertes bobos, mas sabia que ela conseguiria sentir a sinceridade de suas emoções, como tantas outras vezes o fez:

— Eu encontrei a cor escarlate.

 

*

Eles fizeram igual Wanda prometera: Ficaram sentados no tapete e encostados no sofá comendo doces, mais precisamente as bolachas que haviam sobrado nos armários da cozinha. Estavam moles e pouco apetitosas, mas Bucky não ligava. Não havia sabor que amargasse o fato de estar com a cabeça deitada sobre o colo de Wanda, seu cabelo acariciado de maneira contínua enquanto escutava histórias fantasiosas. Contar suas investigações em Outer Heaven parecia algo tão pequeno se comparado aos episódios de dimensões diferentes, sonhos e cartas de tarot. Podia ficar daquele modo o dia inteiro, só ouvindo, mas já havia mencionado seus últimos dias para ela, a missão em Bucareste enquanto Steve e Sam iam para o Instituto Xavier.

— Então deixe-me ver se entendi. — Ele disse depois de mastigar e engolir uma bolacha. — Você já sabe fazer um monte de coisas novas. Enfrentou um labirinto sinistro. Atende numa loja esotérica que aparece e desaparece. E ainda vai ter ir para Wundagore de novo? Aquele lugar é horrível.

— Eu sei. Mas até agora eu só… Bem, eu aprendi mais sobre meus poderes. Não sobre meus pais verdadeiros. Sobre Erik.

Bucky assentiu. Ela realmente parecia um tanto mais… Mais sossegada. Segura. No entanto, a lembrança daquela floresta ainda o assombrava. Se Ebony não tivesse procurado ajuda, talvez os dois nem chegassem sequer a Bucareste num primeiro momento. Foi por pouco que salvou-a daquelas criaturas de sombras, mesmo que não soubesse o que diabos estava acontecendo. Era grato por aquele trio de gatos terem vindo ao resgate, Âmbar, Ameena e Ebony.

— Não me conforta saber que você vai voltar lá.

— Estou mais forte agora. Não serei enganada. — Sorriu. — E Agatha e Ebony irão junto.

— Queria que voltasse comigo.

— Eu também. Mas… Não é como se eu estivesse presa. Ebony me disse que viria, então eu… Decidi fazer uma visita. Até que eu termine isso, ficarei na casa da bruxa. Depois vai ficar mais fácil para nós dois. — Wanda pegou a corrente em seu pescoço, mostrando o pingente. — Veja, tenho a chave.

— Eu reparei nela.

— Reparou, huh? — Ela ergueu apenas uma sobrancelha, desconfiada. O pingente ficava num ponto pouco acima de seus seios, embora não fosse exatamente isso que ele quisesse dizer. Bucky soltou uma risada nervosa e breve, o que a fez rir também. Aceitou um novo beijo dela de bom grado. — E você? Ebony falou que viria ao encontro de um informante. Algo perigoso?

— Perigoso? Não. Vai ser só uma conversa. A caça aos mutantes aumentou, mas ninguém encontra esses Sentinelas. Descobrimos que a Sable International foi furtada. Eu e Natasha viemos falar com… Com Yelena. Ela vendia verdades e as pessoas ainda devem procurá-la. É difícil sair desse ramo e eu sinto que ela deve saber de algo. Achamos que alguém roubou tecnologia para fazer essas máquinas.

— Oh. Natasha sabe que… Que está aqui, comigo?

— Não. Não planejei vir para o apartamento, entende?

— Ah. Eu gostaria de dizer oi a ela.

— Um pouco difícil. Não sei onde está agora. Wanda… — O pensamento lhe ocorreu de súbito. — O que veio fazer aqui, se ainda tem que voltar para a casa da Agatha?

Ela hesitou, mas admitiu:

— Dica do Ebony. Quando ele me disse que voce viria para Bucareste numa missão, achei que… Poderia vê-lo. Não tinha muita certeza onde te achar, então vim pra cá na esperança de você vir também. — Bucky não sabia lidar com Wanda confessando sentimentos. Fazia o coração dele dar saltos. E também teria que agradecer o gato numa próxima oportunidade.— Espera. Você falou que não planejou vir, mas por que veio se tem que falar com Yelena?

— Eu vim buscar meu boné. Esqueci aqui.

Prioridades. — Ela debochou.

Bucky soltou um suspiro. Era fácil ficar deitado com ela. Poderia ignorar todo o resto, mas duvidava que uma certa bailarina o deixasse esquecer de suas atuais obrigações.

— Natasha vai ficar um pouco irritada por eu não ter saído para investigar de verdade.

— Ah, não seja por isso. Posso ajudar. — Ele se ajeitou no colo dela, encarando-a com curiosidade. — Lembra quando eu disse que desenvolvi mais a minha leitura de auras? Então, eu posso tentar ver vislumbres do passado de um objeto. Venha, me dê aquela injeção. Talvez eu descubra algo.

Bucky levantou seu tronco, sentando-se ao lado de Wanda. Tirou a seringa de um estojo seguro do bolso na lateral da calça, abriu-o com cuidado e passou para ela, que segurou o item com cerimônia. Seus olhos se tornaram vermelhos, seu cabelos moveram-se levemente, como se tocados por uma brisa fresca - mesmo que não houvesse nenhuma janela aberta. Só pôde observar enquanto a Feiticeira franzia testa, concentrada. Até que ela um arquejo de dor e soltou a seringa de repente.

— Wanda!

Ela fez um gesto vago na ar, dizendo para não se preocupar.

— Eu tô bem. É só que... Vi laboratórios. Pessoas confinadas. — Bucky sentiu seu tórax se afundar com a afirmação, um tanto culpado. Sabia o que significava para ela ver laboratórios, experiências, ver pessoas presas. Era um salto para um passado difícil. — Eles estão mesmo tentando achar uma cura ou algo do tipo. Algo que tira os poderes das… — Wanda engoliu seco. — Cobaias. Mas não é o que tem nessa seringa.

— O que é, então?

— Só… Só um sedativo temporário. Mas eu vi máquinas, James, onde essa seringa foi manipulada. Não entendi o funcionamento delas, mas pareciam esgotar as pessoas. Parecia ser em algum lugar longe… Não entendi a língua. E as pessoas estavam suando. Estava quente. Eu sinto que vi… Anna Marie. Mas não tenho certeza.

— Cada vez mais estranho...

Wanda pensou durante alguns instantes, sua boca comprimida.

— No dia em que fomos atacados, eu teletransportei Anna e Remy para o Instituto Xavier. Na hora não me pareceu importante, mas… Lembro-me de Anna ficar assustada por estar tão longe de Genosha. Disse algo sobre avisar… Mas avisar a quem? Sobre o quê?

— Podemos supor algo sobre os próprios Sentinelas. — Ponderou. — Para alguém querido, talvez uma pessoa que estivesse esperando por ela. Mas se houver algo diferente, Steve e Sam vão descobrir.

— Eu sei… Desculpe por não ser de grande ajuda. Sou nova nisso e a seringa não evocou muitas memórias.

— Tudo bem, boneca. — Ele segurou a mão dela. — Máquinas. Cobaias. Algo distante e quente. Anna Marie. Vou manter isso na cabeça, podemos cruzar essas informações com algo mais.

Ela, no entanto, não parecia ainda satisfeita. Encarou o chão durante alguns instantes, depois ergueu o queixo para ele, luz no fundo de seus olhos.

— Tentarei acabar toda essa história do meu passado o quanto antes. Sinto que… Depois disso, serei capaz de dar o meu melhor para a equipe. Sem nenhuma outra questão pendente para resolver.

— Não é como se estivesse fugindo de algo, Wanda. Na verdade, você está indo atrás de coisas que a maioria de nós não buscaria. O passado pode doer. Então não se sinta, sabe, pressionada. Sua missão é tão dura quanto a nossa.

— Eu sei. Mas não quero ficar presa a isso, a esse mistério. Você, Steve, Nat, Sam… Até mesmo o bobo do Clint, são minha família agora.

Beijou-a com delicadeza.

— Wanda, eu… Eu queria te perguntar algo.

— Ah, James… — Ela sorriu, balançou a cabeça. — E aceito me casar com você, mas não agora. Vamos deixar toda essa história acabar.

Bucky soltou um engasgo com a boca aberta, seu coração descompassado enquanto a Feiticeira ria sem parar, quase envergando o corpo.

— Oh, meu Deus! Eu estava brincando! Desculpa, eu sei que não ia pedir isso. — Wanda aproximou-se, abraçando-o de lado, mesmo que fosse pelo ombro do braço metálico. Sua risada sumiu aos poucos. — Foi só para quebrar a tensão. Me perdoe se fui maldosa. Pode falar, James.

Ele fez o que pôde para encontrar a voz na garganta. O que ia perguntar quase escapou de sua lembrança tamanho era seu nervosismo, mesmo que isso não tivesse se refletido em tremedeira na mão de carne ou suor. Nunca tinha pensado em tal coisa e, agora que cogitava em um suposto noivado, era insano acreditar que ela aceitava.

Aceitava.

Wanda não deveria brincar assim com seu coração. Isso poderia lhe dar ideias.

— Bem, eu… — Ele tossiu, recuando de tais pensamentos. Esperava que ela não tivesse escutado-os, ou que sua aura não tivesse transbordado tanto quanto achou que tinha.— Eu estava pensando se podia cortar meu cabelo.

— Oh… Bom, eu cortava do meu irmão. Não devo ter perdido o jeito. Mas você tem certeza disso? — Suas mãos magras e frias acariciaram suas madeixas. — Eu gosto do seu cabelo.

— Não quer que eu corte?

— Não, não é isso. Sabe que não foi seu cabelo que… Droga. — Evitou seu rosto. — Não foi seu cabelo que me fez me apaixonar por você.  

Ele se obrigou ao não perder o controle e agarrá-la em maiores beijos ali mesmo. Inspirou fundo, engoliu seco e abriu um sorriso fraco.

— Foram meus problemas psicológicos.

Wanda riu.

— Eu ia dizer que foi por causa da sua expressão boba e adorável quando não entende nada.

— Ah. Bom, então se prepare. Eu sempre faço essa expressão porque nunca entendo nada.

Era apenas meia verdade, mas isso a fez rir.

— Mas sua sugestão também serve, Afinal, seus problemas psicológicos são tão parecidos com os meus, digo... Como não me apaixonar?— Ela sacudiu a cabeça.— Céus, nós temos um péssimo senso de humor. O que quero dizer é que não sinto que é só uma questão de cortar o cabelo pra você, é?

O soldado era uma pessoa atenta, perspicaz, e podia afirmar a mesma coisa sobre a feiticeira, mesmo quando ela não usava seus poderes. Seus olhos verdes enxergavam muito mais do que ele sonhava em ver, o que levantava sempre a pergunta: O que ela notava nele? E o que a fazia ficar, ou melhor, voltar?

— Tudo mudou e… Sabe?

Ela assentiu, mesmo que sua fala fosse incompleta. Sabia. Para a maioria das outras pessoas, Bucky teria a necessidade de elaborar frases maiores para explicar a sensação, seus porquês e incongruências, mas não com ela.

Wanda acariciou sua mão, depois soltou-a levantou-se, pedindo que ele levasse uma cadeira até o banheiro, enquanto ela pegava toalhas. Em poucos instantes, lá estava ele sentado e com os cabelos úmidos no meio daquele cômodo, de frente para o espelho. Tinha molhado a cabeça na pia, estava com uma toalha sobre os ombros.

A Feiticeira invocou do ar uma tesoura dourada, os apoios para os dedos delicadamente decorados no formato de aves. Com uma mecha de cabelo cobrindo sua visão, Bucky soltou um assobio, impressionado com o objeto.

— Que dramático.

— Deixa as coisas mais intensas, não? — Ela riu, depois passou as mãos pelas madeixas dele. — Como que a gente vai fazer isso?

— Eu não tenho uma foto de como eu era antes, pra… Pra servir de referência. Mas acho que não é a mesma coisa, afinal de contas.

— Não é… — Um suspiro. — Bom, vamos seguindo. Daí você me diz se quer mais curto, se quer aparar só as pontas… Ou se quer uma mudança completa no visual, pintar o cabelo, raspar o lado. Que tal?

Ele riu junto com ela.

— Não faça nenhuma besteira, boneca. Tipo uma franja.

— Confie em mim.

Assentiu. Confiava. E assim se fez o barulho da tesoura, deixando cair as mechas cortadas dos cabelos de James Barnes.

Wanda parava ocasionalmente para checar o progresso do seu trabalho, encarando-o de frente. Franzia a testa, sua face concentrada, olhos verdes fixos nos detalhes. Quando percebia que ele a encarava de volta, desviava um pouco o rosto, constrangida.

— Eu tô cortando bem aos pouquinhos, ok?

— Ok.

— Dá tempo de dizer para eu parar.

Uma pausa.

— Você não quer cortar, não é?

Ela tentou não rir.

— Certo, certo. Eu vou cortar até… — Wanda deslizou a mão livre de forma distraída pelo seu pescoço, o que o fez soltar um longo suspiro. — Até o queixo. Pode ser? Digo, eu sei que estou sendo uma babaca por não fazer exatamente o que você quer, mas…

Bucky sentiu a hesitação na voz da jovem e tal coisa o fez se sentir um pouco melhor consigo mesmo. Não sabia que sua aparência era assim tão valiosa.

— É até legal ver que você gosta tanto assim do meu cabelo, sendo que eu não cuidei direito dele por… Anos. Um elogio que eu não esperava.

— Vai fazer a barba?

— Não. Hoje não.

Wanda suspirou, talvez de alívio, e foi para atrás dele. Aos poucos, tanto ele quanto ela relaxaram e conversaram outras amenidades. Ela pegou um creme do armário abaixo do espelho e massageou as pontas recém aparadas, o que fez o cheiro de romã se espalhar pelo ar. Talvez fosse esse o aroma que ele sentia nos cabelos dela e parecia bom ter o perfume grudado em si.

Inspirou fundo, lutando contra a própria quietude. Apesar dos silêncios não serem incômodos para os dois, Bucky lembrava-se do que Ebony dissera sobre coisas não ditas. Mesmo que não tivesse que se justificar para Wanda, achava que o momento pedia algo mais substancial.

E aquela massagem na nuca o deixava muito mais a vontade para esboçar um pensamento.Ponderou no que ia falar e por fim as letras saíram pela boca:

— Eu tenho me sentido enferrujado em Outer Heaven. Entre o aqui, o antes, sem saber o que vem depois.

Ele viu pelo espelho os olhos dela faiscaram.

Enferrujado?

— É, como se… Como se eu fosse uma máquina antiga que tenta trabalhar depois de anos no ferro velho, desgastada, obsoleta. Dói. Mesmo que eu sirva pra alguma coisa.

A jovem feiticeira baixou as mãos para mais perto do próprio corpo, sua voz muito frágil:

— Eu entendo...

— Procuro maneiras de tentar acabar com isso, mas parece tudo o que faço são só distrações. Posso estar no meio de uma luta, sangrando; no meio de uma conversa com Steve, mas ainda está lá. Alguma coisa, me… Ferindo.

Wanda se deslocou para frente dele, séria. Largou a tesoura na pia.

— James… É a penúltima palavra da programação da HYDRA. Enferrujado. Eu me lembro, pois anotei naquele meu antigo caderno. Talvez você esteja lutando contra isso, inconscientemente. Contra essa sensação.

Ele engoliu seco.

— Eu… Poderia ajudá-lo. Como no último dia em Wakanda, como em Coney Island.

— Por favor.

— Me dê suas mãos.

Ele obedeceu, suas pálpebras também se fecharam. Suas emoções chacoalharam dentro de seu tórax, aéreas e ao mesmo tempo liquefeitas. Seu corpo engoliu seco, mas a sensação física era distante demais para se importar por mais tempo. Parecia longe da própria carne, ainda que estivesse na realidade muito dentro dela: em sua cabeça, em sua psiquê. Memórias coloridas de sua infância alternavam-se com flashes opacos de coisas que vieram depois, assim como vozes lhe repetiram frases que seus ouvidos há muito já tinham escutado.

Estou com você até o fim da linha”

“Dobroye utro, soldat”

“Não puderam tirar tudo de mim, porque não conseguiram tirar tudo de você”

Gritos. Súplicas. Sangue.

 

Gruzovoy vagon

Vozvrashcheniye na rodinu

Dobroserdechnyy

Devyat’

Pech’

Rassvet

Semnadtsat’

Rzhavyy

“Eu te amo, James”

 

Mãos escarlates tocaram suas memórias, guiando-o entre fragmentos pontiagudos. Ele podia sentir aquele toque ameno, aquele cuidado terno ao desanuviar sua cabeça. Wanda, aquela aparição escarlate, encontrara os pontos que precisavam ser desfeitos porque ela mesma já tivera que se libertar de medo. Aquele sofrimento já havia sido seu, seu desgaste e sua dor, e naquele momento James Barnes enxergou que a feiticeira não alterava, nem substituía os horrores, mas sim trazia a tona o que deveria ser lembrado. A palavra-chave que resumia o comando da HYDRA tinha seu significado subvertido.

A cada vez que que o Soldado Invernal tinha sangue e pólvora nas mãos, uma memória amena o encobria. A cada vez que ele era humilhado, eletrocutado e reduzido a pó, recordações do contrário o deixavam de pé. James Buchanan Barnes, o herói de guerra. Bucky, o melhor amigo do honrado Steve Rogers. James, um homem bom. Não era só o desgaste da dor, mas também da vitória. Da resistência.

Viu, enfim, que Wanda lhe guiava pelo labirinto que era sua cabeça, usando poderes que para delinear um caminho carmesim e seguro entre rumos sombrios, esquinas perigosas. Tudo ainda estava lá, mas ele via por onde deveria ir. Era só seguir a cor escarlate.

Bucky abriu os olhos, enxergando direto os olhos dela.

— Wanda, eu… — Interrompeu o raciocínio. — Não queria que tivesse que se lembrar da própria dor para me ajudar, mas… Obrigado.

— Eu não luto contra ela sozinha. Você também não deveria.

— É pesado. Mesmo que não sejam coisas que me manipulem da mesma forma que antes, ainda doem.

—  Eu trocaria de lugar com você, mas a verdade é que há uma parte vazia em mim, apesar de tudo. Pietro não está mais comigo, eu fui responsável por coisas terríveis e… — Sua voz ficou embargada, havia vermelhidão nos seus olhos por causa de lágrimas, mas ela não as permitiu cair. — Há dias que eu não sei se tô fazendo tudo de errado de novo. Talvez você esteja certo, tudo talvez não passe de mera uma distração. Sei que fiz desse vazio inevitável um espaço para deixar coisas virem e partirem, como naturalmente fazem. Para outras coisas florescerem, como amizade. Como amor.

— Wanda…

Ele a abraçou forte, desequilibrando-se da cadeira. Ambos se tornaram uma bagunça no chão, num abraço tolo, sincero e um tanto choroso. Sem palavras, mas nem sempre os dois precisavam delas. E então, depois que mais uma vez ele provou do sabor do beijo da feiticeira, ela riu e disse:

— Talvez Ebony tenha razão.

— Sobre o quê? Que merecemos um ao outro? Que somos tolos? Que podemos virar artistas de rua, com o truque da moeda?

— Não. Sim. — Ela riu. — Sobre eu ser intensa demais. Uma bruxa boba.

Bucky sacudiu a cabeça.

— E o que Ebony sabe? É só um gato tonto.

 *

Organizaram a confusão no banheiro, a maior parte resolvida com magia. Wanda secou os cabelos de James Barnes com um feitiço seguro, eliminou os fios no chão com outro. Ele se olhou no espelho, ajeitou a jaqueta e passou as mãos nas próprias madeixas. Não tinha mudado tanto, apesar do cabelo mais curto. Não era exatamente o mesmo, assim como havia dito à ela em Coney Island e isso o fez sentir em paz.

Faltava apenas uma palavra para ser livre, afinal.

Ele se virou para Wanda distraída, encarou-a com gratidão e carinho. Pensou no que ela disse sobre vazios, sobre serem inevitáveis e sobre deixá-los florescer. James, uma criatura deveras mais próxima do inverno, sentia isso dentro de seu tórax e todos botões de flores que ali cresciam eram vermelhos.

Inspirou fundo, já na sala. Acabara de colocar a cadeira no lugar, guardou a seringa no estojo no bolso da calça, as chaves do apartamento no outro bolso. Olhou para o horizonte emoldurado pela janela, as cores do céu muito vivas e alaranjadas. O pôr do sol.

— Ah, droga. — Pegou o comunicador na bancada, embora não tenha colocado de volta no ouvido. Guardou o objeto num compartimento da jaqueta, esperando que Natasha não tivesse tentado se comunicar com ele durante a tarde. — Vou chegar atrasado no ponto de encontro com Natasha.

Wanda o abraçou por trás, beijando seu ombro.

— Tudo bem, James. Eu abro um portal para lá.

— Minha carona, huh? Consegue ler na minha cabeça onde é?

— Sim. E prefiro que me chame de “boneca” mesmo.

— Eu também gosto quando diz que sou seu amante. Nisso, Ebony está certo.

Bucky riu de lado, ficou de frente para ela e a puxou com delicadeza, seus lábios encontrando-se com os dela. Depois a beijou com maior intensidade, sorvendo de seu gosto, até que Wanda riu abafado e se soltou.

— Natasha vai ficar brava. — Suas bochechas estavam coradas, mas ela logo desviou o rosto e pegou um objeto em cima do encosto do sofá. Era o boné. Ajeitou-o na cabeça dele. — Tem outros compromissos hoje, Lobo Branco.

Ao ouvir o apelido, ele não pode deixar de se lembrar:

— O livro… — Se referia ao conto infantil que havia lhe presenteado em seu aniversário. — Você leu?

— Ah, James. Eu vivi. — Uma pausa, um sorriso. Uma jovem vestida de vermelho que encontrava um lobo que não era mau. De fato, familiar. — E o livro que eu te dei? Conseguiu ler?

— Li. Vivi também, de certo modo. Mas não tinha uma feiticeira.

Ela sacudiu o rosto, seus olhos logo brilhando rubros para abrir o portal. Um círculo vermelho rasgou o ar, mostrando as ruas de Bucareste - embora ninguém mais do lado oposto parecesse notar. Antes que Bucky partisse, porém, Wanda lhe segurou por mais alguns instantes. Seu tom era solene, seu rosto doce.

— Quando ver a cor escarlate e precisar de mim, eu estarei lá.

— Isso é um feitiço? — Ele repetiu o diálogo que tiveram na frente da loja de Agatha. Só não esperava a resposta diferente:

— É, talvez seja.

Bucky comprimiu os lábios, sua expressão indecifrável. Se aquele era um feitiço, ele faria sua parte:

— E quando precisar de mim, terá apenas que seguir o uivo no breu.

A Feiticeira Escarlate não resistiu em lhe dar um último beijo.

Tenha cuidado.

— Não sou eu que vai derrotar uma entidade numa montanha amaldiçoada. Mas vou tomar cuidado. — Suspirou, seus pés hesitantes em dar um passo para fora do portal. Ele olhou para baixo, encarou-a de novo. Sentia-se tão tolo quanto Ebony dizia que ele era, mas suas palavras saíam sinceras pela boca. — Nós podíamos ter vivido aqui. Por mais tempo.

Wanda engoliu seco. Ela entendia também o que ele não dissera: Que seriam felizes.

— Eu sei. Eu também queria. — Franziu a testa, lágrimas beirando os olhos. Disse mais baixo, sua voz incerta: — Ainda quero.

— Nos vemos em breve?

Sim. Eu vou voltar. Ainda temos que nos beijar na Wonder Wheel.

Ele saiu do portal, seu coração apertado e sua cabeça leve. Sabia que Wanda cumpria promessas.

— Até mais, boneca.

— Adeus, James.

Em um segundo, o portal se desfez e todo o som do trânsito encheu os ouvidos de James Barnes. Parecia ter sido somente um sonho, um delírio, mas um boné em sua cabeça era a prova que tudo aquilo tinha acontecido de verdade. Havia encontrado Wanda, sua boneca. Ela tinha voltado para ele.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

* O capítulo foi revisado, mas Zola ainda existe e pode tentar sabotar essa fanfic. Caso encontre algum erro, por favor reportar à Shalashaska.

* Nesse meio tempo, descobri outro restaurante bem legal em Bucareste. É tematizado do Van Gogh. Maneiro, não? Um futuro rolê para o casal.

* Será que o Ebony é amigo da Goose?

* Se possível, peço que deixem um comentário! Não precisa ser nada elaborado, de verdade, mas faria muito bem para essa escritora cansada hahah



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Vazios" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.