Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 78
Albedo


Notas iniciais do capítulo

11/02/2019
Olá, pessoas queridas. Espero que tenham gostado do capítulo anterior! Aqui vai mais um.



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A l b e d o

A rotina de treinamento fez Wanda sentir saudades dos socos pesados de Shuri.

Por passarem muito tempo na dimensão paralela dentro do grimório, parecia que o dia durava trinta e seis horas e pelo menos vinte e quatro delas eram gastas em exercícios de magia. O seu corpo se tencionava e suava, talvez jamais tivesse tonificado tanto seus poderes e seus músculos. Sua defesa tornou-se ampla, resistente; seus ataques eram ágeis e certeiros. A Feiticeira aproveitava as lições de persistência que aprendera com a amiga wakandana, bem como lembrava-se do que Clint Barton havia lhe dito sobre postura e pontaria. Nas sessões de magia silenciosa, quando não usava o movimento das mãos para executar feitiços, Wanda tinha a aura rosa de Natasha em mente, uma aranha tão quieta, adorável e fatal. Cada uma das cores que lembrava sustentava-a quando criaturas invocadas por Agatha avançavam sobre ela.

Mas não era só o físico que tinha trabalhado. Não escapou da rotina de leituras e questionários feitos por Agatha, tampouco da meditação e passeios em planos astrais. Padrões geométricos, desenhos e fractais coloridos acompanhavam sempre seus pensamentos. Wanda sabia que estava num ponto em que teria sido mais fácil lidar com a horda de trípodes em Zurique ou com o Sentinela em Bucareste com esses poderes desenvolvidos.

E foi por isso que doeu tanto quando foi derrotada pelo labirinto.

Passou uma semana se preparando para o desafio e agora gastava uma semana para se recuperar dela. Estava exausta, com o orgulho ferido e traumas acesos na sua cabeça. Naquele momento, batia a ponta da caneta na madeira da mesa enquanto seus olhos mal absorviam as palavras do livro, pois sua atenção voltava-se ao que tinha acontecido há seis dias. Sozinha na biblioteca durante a tarde e tentando estudar mais um volume de alquimia, o som da explosão no labirinto parecia ainda ecoar em seus ouvidos. Parecia ainda querer esmagar seu coração.

Suspirou. Tinha acabado de ler a página e não entendeu nada.

A proposta do desafio era simples. Entrar, recuperar o item perdido no centro, retornar. O labirinto começava no bosque à frente da casa de Harkness. Sua mestra avisara que andando em frente logo encontraria caminhos confusos e que não seria complexo perceber que gradualmente entrava na dimensão do labirinto. Seria aleatório, gerado pela própria magia para se adaptar à desafiante: Wanda. Foi o que aconteceu. Ela tomou o cuidado de desconfiar de tudo o que enxergava e acreditou apenas na metade do que ouvia lá. Poder latente não a ajudaria ali - e sim raciocínio. Esperava que sua experiência com o labirinto das memórias de James Barnes pudesse lhe trazer certa orientação na sua aventura, mas ela não demorou para descobrir que era algo diferente.

Não seguiu as vozes suaves que lhe seduziam para um caminho mais fácil; esmagou os demônios que saltavam de becos; protegeu-se de armadilhas espertas. O percurso era composto por árvores imensas, raízes altas e que cresciam ainda mais quando a Feiticeira tentava voar para ver o seu objetivo. Mesmo com o truque da vegetação, ela conseguiu chegar ao centro. Recuperou o item, que era um pequeno baú que cabia na palma da mão. O problema foi voltar.

Quando já estava na metade do caminho e os corredores de árvores tornaram-se mais baixos, a atenção de Wanda foi atraída por um brilho no céu que deixava um longo rastro. Não era nenhuma estrela cadente para realizar seus desejos, era um míssel. Com a garganta de repente seca, ela tentou ignorar a bomba assim como tinha ignorado as outras ilusões, mas não pôde ignorar o tremor do chão quando explodiu a trinta metros de distância, nem a sensação de calor em sua pele. Outros mísseis vieram depois. A noite ficou acesa, inteira estrelada e quente, enquanto Wanda voltava a ser só uma menina de Sokovia, fugindo da morte. Ela perdeu o baú. Se perdeu. Tropeçou e caiu no labirinto, parando de frente a um míssel fincado no chão, estático. Esperando para explodir, assim como há tantos anos.

Foi bem humilhante ser levantada por Agatha, tremendo e soluçando. Sua mestra disse que não era para ter medo, que estava segura, e que quase tinha conseguido vencer o desafio. Wanda não ficou totalmente satisfeita, tampouco aliviada. É claro que toda a situação não era culpa da bruxa, pois Wanda tinha insistido em aumentar o nível dos desafios e sabia o quanto teria que se esforçar para salvar a tia em Wundagore. Estava desanimada por ter se esforçado tanto e ainda assim falhado. Deveria ter levado a sério quando tirou as cartas de tarot naquela manhã e viu A Lua em dourado, alertando-a sobre ilusões. Somada a carta A Torre, com um grande raio vermelho atingindo-a, poderia ter imaginado algo grande vindo, algo que a derrubaria se não largasse a teimosia e começasse, de fato, um novo ciclo.

E derrubou.

A solução foi estudar melhor, com paciência afinal. Praticar. Não quis gastar mais tempo estagnada em auto piedade e não iria quebrar sua parte do acordo. Começou a ajudar na loja. Continuava com as lições chatas, o que incluía poções. E é por isso que estava há horas procurando uma resposta em livros antigos sobre como poderia purificar o líquido preto num recipiente de vidro. Era mais um pequeno desafio de Agatha e tal coisa vinha se provando difícil até então. O objetivo era deixá-lo incolor como água.

— Urgh. — Ela reclamou, espreguiçando-se. — O que eu faço com você?

Sua mestre não lhe dava dicas. Tentar destilar o líquido nas ferramentas de alquimia na cozinha foi infrutífero e demorado. Jogar outras substâncias para separar o líquido em fases pareceu escurece-lo ainda mais. Sabia que aquilo era um exercício de paciência, mas achava que estava mais perto - já que aparentemente sua provação tinha passado. Fechou o livro e juntou suas coisas. Se as respostas não estavam lá, tinha que procurar em outro lugar.

Ela caminhou com o frasco na mão. Foi até a beira do lago do lado de fora, passou alguns minutos contemplando o horizonte e as águas. Ebony estava por aí, já Agatha fazia uma consulta particular na loja e não requisitou seu auxílio. Ela tinha tempo para si e para pensar no tempo que escorrera desde que chegou a casa da sua mestra. Tinha tempo para escutar o vento e fingir que ouvia o riso abafado de James Barnes.

O frasco com o líquido preto pesou em sua mão. Wanda reconhecia os seus avanços  até o momento e não seria mais tola de apressar as coisas. Não iria mais incendiar a coragem insana de resolver tudo com só a força de vontade e raiva, pois as consequências costumavam ser desastrosas. Ultron lhe provou isso, Wundagore e o labirinto também. Sua estadia, no entanto, não era eterna e ela tinha que fazer as coisas valerem a pena. Como faria para purificar o líquido? Como faria para purificar a si mesma?

Decidiu, antes de tudo, tomar um banho.

Wanda acomodou o frasco de vidro na beirada da janela, que por sua vez ficava de frente para a banheira. À direita, colocou a carta A Lua, à esquerda A Torre— de modo que pudesse olhar tudo enquanto se banhava, na esperança de ter alguma ideia. Apesar de não ter nenhuma música ao fundo, coisa que era comum nas duchas de Wanda Maximoff, ela pôde se deliciar com o cheiro das velas aromatizadas e com a energia de cristais ali perto. Despejou sais de banhos na banheira com verdadeira cerimônia. Entrou na água e pediu que tal elemento acalmasse seus pensamentos e emoções  conduzindo sua intuição para onde ela deveria. Era um elemento apropriado para isso, afinal.

Inicialmente, conceitos alquímicos nadaram suaves nas memórias ao seu redor, porém logo desapareceram. Nenhum deles apresentou uma ideia nova sobre como poderia resolver o enigma do líquido preto, de qualquer modo. Ela então abaixou-se mais na água, deitando a própria cabeça no assoalho da banheira com os braços cruzados sobre o peito. Fechou os olhos. Expirava demoradamente o ar guardado nos pulmões, as bolhas subindo e estourando com um barulho engraçado. Ao contrário do proposto, a Feiticeira divagou sobre pessoas queridas, sobre as inúmeras cores que encontrara em sua jornada. Sobre o azul, amarelo, preto, rosa. Sobre o vermelho, dela e de seu verdadeiro pai. Sobre o certo e o errado. Wanda não negava o que tinha feito de mal, por mais que soubesse bem as circunstâncias de sua vida. Compreendia tais facetas e áreas cinzas, tomava-as para si. Estava mais consciente agora, mais objetiva, e podia afirmar que estava fazendo afinal o certo, da forma correta. Acima de tudo, de forma calma.

Ela poderia até dizer que seu coração não era tão violento, passional, quanto antes, mas isso parecia forçado. Sentia ainda o fogo dentro de si.

O que diria, portanto, para si mesma é que, assim como o sal naquela água, Wanda estava purificada. Consciente do passado, ciente do que deveria alcançar no futuro. Ascendendo.

Ergueu o próprio tronco, sentou-se na banheira para buscar o ar que faltou ao peito. Não emitira um engasgo desesperado, tampouco foi brusca em seus movimentos. Apenas sentou, água escorrendo de sua pele. Seus olhos logo bateram nas cartas de tarot e no frasco do enigma no meio delas. O líquido em seu interior estava incolor com água, reluzia feito um fractal. Wanda deu pulo sobressaltado da banheira, pegando-o sem acreditar.

Saiu do banheiro vestindo um roupão, quase derrapando nas poças que deixava no caminho de tão rápido que andava. Tinha algumas palavras para falar com Agatha e algumas delas eram xingamentos.

 

— Diz que você não encantou o líquido para ele ficar incolor só depois que eu tivesse já feito tudo o que pode imaginar de alquimia e, por mágica — Wanda falou a última palavra com deboche. — Só após eu ter uma súbita epifania sobre purificação e sobre mim mesma.

Agatha estava parada de frente ao balcão da loja, consultando o grosso livro que mantinha ali. Ela soltou um sibilo irritado, riscou algo com uma caneta. Não havia nenhum cliente presente, o que era bom para o momento, já que a feiticeira descera da casa ainda ensopada e descalça. Quando a bruxa afinal terminou as próprias anotações, apenas olhou a aprendiz de esguelha e se afastou com um pulo, colocando uma mão sobre o coração.

— Pelas trevas, que nudez é essa?

— O quê? — As palavras se embaralharam na boca. — Eu estou de roupão!

— Sim, só de roupão. Numa loja.  

— Agatha, isso é sério. Por acaso ouviu o que eu disse?

— Querida, posso até ser velha, mas ainda ouço bem. E, se for para dizer que não encantei o líquido, terei que permanecer calada.

Wanda não conseguiu fazer nada senão chacoalhar o frasco, frustrada.

— Agatha!

— Tudo bem, tudo bem. — Ergueu as palmas das mãos cheias de anéis, rendida. — Não foi bem assim. Wanda, você usa o branco agora, e não estou dizendo do roupão. É uma fase contemplativa de purificação, de forças opostas em equilíbrio; Não é uma fase exatamente ativa e tampouco se vive nela para sempre, mas ainda assim é uma etapa. Morrer e morrer não faz sentido, como conversamos antes. Não adianta passar pela fase anterior se não existe uma nova. De fato, eu encantei o líquido para que refletisse tal coisa e principalmente quando afinal a compreendesse. Sabia que entenderia, mais cedo ou mais tarde. Afinal, você imaginou conceitos interessantes ao só separar frutos de vigiadeira.

A mestra riu ao recordá-lo.

— Está dizendo que isso é basicamente uma representação visual do meu espírito? E que você esperava que eu tivesse um entendimento súbito sobre tudo isso?

— Não e não. Para sua primeira pergunta, digo não porque isso não vai afetar as cores seguintes. O encantamento foi lançado e quebrado, fim do enigma do frasco. — Agatha resumiu, provocando perguntas secundárias em Wanda. Quantas cores e fases eram, no fim das contas? — Para sua segunda pergunta, digo não porque eu sei que você já estava no entendimento destas ideias. Não posso tirar conclusões por você, ninguém pode. Mas eu sabia que todo o processo a faria refletir mais sobre as próprias ideias, sobre si… E sejamos sinceras, você precisava pensar. Não com pena da própria morte, mas com ideias novas subtraídas de impulsividade tola.

Wanda tomou fôlego sem saber o que dizer, enquanto a mestra voltou a sua atenção a um caderno menor, dando de ombros.

— Mas poderia ter o mesmo resultado com o chifre de unicórnio. Sabe das propriedades curativas absolutas dele. Pensei que seria uma das suas primeiras alternativas, na verdade.

A Feiticeira fechou a boca. Como pudera esquecer-se das disso, do chifre que estava na loja? Tola, tola! Passou as mãos nos cabelos molhados, colocando-os para trás. As afirmações de sua mestra eram sensatas e condiziam com tudo o que vinha pensando. Seria, portanto, um novo marco? Um batismo feito por si mesma, com água, sal e a cor branca? Se sim, qual era o próximo marco? Quem sabe a cor que bruxa pedisse para vestir pudesse lhe dar uma dica.

— Agatha...

— Sim, menina?

Obrigada. — Virou-se para partir, subindo as escadas que davam na casa, porém estacou no mesmo lugar. — E, Agatha… Vou ter que completar o desafio do labirinto hoje?

— Não, não hoje.

— Oh. — Assentiu em silêncio. — Ah, e o fato de eu ter resolvido o enigma de forma não exatamente intencional torna minha evolução inválida?

— Não, querida. Não era o frasco que era importante. E por favor, saia da minha loja! Está molhando tudo, pior que uma sereia se debatendo fora d'água. — Disse ela, rindo. — Vá colocar uma roupa!

* * *

Era tarde da noite quando Wanda saiu para um passeio com Ebony ao seu lado, a luz da lua projetando a sombra dos dois na grama. Ela ainda vestia branco, sua silhueta se misturava com a neblina cada vez mais espessa à beira do lago. Atravessaram as águas no barco, já  na outra margem onde a Feiticeira executou a cerimônia num manto negro.

— Por que estamos aqui, menina?

Os dois caminharam mais um pouco e ela também tomava o cuidado de iluminar o rumo com seus poderes escarlates. Com a mão esquerda apoiada de maneira distraída sobre o coração, trazia consigo o frasco de líquido incolor.

— Seguindo minha intuição.

— Chegaremos a um lugar assustador?

Ela parou ao ouvir a pergunta, pensando bem em como responder.

— Não mais.

O gato assentiu, satisfeito. Percorreram apenas mais alguns metros, chegando ao destino. O vento soprou, tremulando a grama e as vestes da Feiticeira, que fechou os olhos e deixou que a brisa envolvesse seu corpo. Ao abrir as pálpebras, suas íris emitiam um pálido brilho vermelho.

— Foi aqui que enterrei minhas lágrimas. Meu sofrimento. — Energia rubra projetou-se suave de sua mão direita, invocando um grande círculo mágico no ar. Logo tornou-se uma estrela para proteção, envolvendo ela mesma e o gato. Wanda destampou o pequeno frasco, derramando delicadamente o seu conteúdo na terra. — E agora, eu as purifico.


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Notas finais do capítulo

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela HYDRA. Caso encontre algum erro, favor reporte à Shalashaska.

*Comentários são bem-vindos.

* Albedo - Fase Alva na Alquimia. Fase de purificação, período de questionamento de preceitos antigos e preparação para a próxima etapa. Durante o texto, Agatha chega a explicar bem o conceito.



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