Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 51
LI


Notas iniciais do capítulo

Houve muita discussão sobre Bucky fazer a barba ou não hahah
Boa leitura.



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Bucky não soube reagir durante o jantar quando Sam lhe ofereceu seu segundo hambúrguer. Ele lhe deu sua porção extra de blini em troca. Wanda estranhou aquele instante de súbita e absoluta paz, lançou um olhar interrogativo para o James Barnes, depois para Sam. Como nada falaram, encarou Steve, que a distraiu com algum assunto aleatório sobre artes e como era traiçoeiro desenhar sem referência. Yelena apenas tomava mais um copo de vodka, já que honravam a cultura russa.

E ali comeram uma refeição metade americana, metade soviética e em puro armistício. Estavam seguros, afinal, conversaram inutilidades e fatos banais como se não fossem heróis, como se não fossem foragidos, como se o mundo em que vivessem não estivesse entrando em colapso.

Sam e Steve foram dormir primeiro, pois o último turno de vigília foi deles no trem e seria justo que descansassem primeiro. Não iriam entrar em contato com o rei T’Challa ou Romanoff ainda, esperariam mais um dia. O resto permaneceu acordado pela madrugada. Estavam à mesa na sala de jantar integrada à cozinha, também com janelas altas e móveis de madeira escura. Wanda se ausentou para colocar os pratos na pia, Belova colocou mais um gole de bebida em seu copo.

— Vou sentir falta desse apartamento. É um dos refúgios que mais gosto.

— Por ser uma espiã, eu esperava algo com menos janelas. — Ele se encostou com mais folga na cadeira, embora seus olhos tenham acompanhado a figura de Wanda por mais alguns instantes. Então ele se focou na mulher loira a sua frente. — Mas por ser você, também esperei mais purpurina. Laços. O que quer dizer com “vai sentir falta”?

Ela riu e tomou a vodka.

— Isso não foi feito para ser um lar, Barnes. É impessoal justamente por isso, e… Não dá pra desaparecer se você continua morando no mesmo lugar, sabe? E se pessoas sabem onde você está morando.

— Faz sentido.

Bucky queria dizer que ela não precisava mais se esconder de tal forma tendo aliados como Steve, no entanto se recordou que até mesmo seu amigo era considerado foragido de forças internacionais. Ainda que tivesse recursos como os oferecidos por T’Challa e apoio de muitas outras figuras notáveis, alguém como Yelena Belova teria dificuldades para se entrosar. Inimigos demais. Desconfiança demais. De certa forma, ele se sentia da mesma maneira e não podia culpá-la por querer dar um tempo daquele mundo insano de heróis e poderes. Talvez fosse uma ideia sábia.

Encarou Wanda de longe mais uma vez. Por vezes ele sentia que a Feiticeira poderia escapar-lhe pelos dedos quando estivesse distraído. Por vezes ele sentia que as frases dela soavam como um “adeus”. Algo em suas conversas dizia que ela tinha planos próprios, planos que também envolviam desaparecer. Não deveria ter lhe ensinado o truque da moeda.

Belova virou o queixo para trás, viu o que o captara sua atenção. Apenas Wanda lavando a louça com suas mãos magras e pálidas demais.

— Sabe, — Ela passou a ponta do dedo na borda de vidro do copo. — Eu não sei nada sobre encantos e conjuração, mas já vi alguns demônios bem de perto. Pergunte o que ela viu, Barnes. Ela me pareceu bem assustada.

A espiã levantou-se, deixando o copo e levando a garrafa.

— E diga que o quarto de hóspedes está livre pra ela, os meninos hoje vão dormir na sala, no sofá ou nos colchonetes. — Parou por um breve instante, deu um passo para trás. — E nada de fondue, vocês dois.

— O que diabos você e Steve estão com esse fondue?

— Boa noite.

 

Wanda aproximou-se enxugando as mãos em silêncio, seu rosto um tanto confuso pelas frases sem sentido entre ele e Yelena. Bucky comprimiu os lábios e desviou o olhar, tamborilou os dedos na mesa até perceber que era sua mão de metal. Não sabia exatamente o que significava fondue, mas podia sentir o que era. Não parecia nada puritano.

— Ela já foi dormir?

— Já.

— E levou a garrafa?

James deu de ombros.

— Russos.

Ela sorriu e andou até à mesa para pegar o copo, seus movimentos um pouco duros ainda. Sentia dor pela luta com os Sentinelas. Bucky pegou-o antes e se levantou, falando que iria lava-lo. Wanda não usou seus poderes para tirar a louça dele desta vez.

— O pesadelo. — Ele deu uma pausa ao enxaguar o vidro, o que a fez se virar lentamente em sua direção. — A história de Piotr. O que quis dizer com “É real”? Você… — Não soube como se referir aos poderes dela. — Viu algo?

Wanda tremia.

— Eu… Vi.

Bucky engoliu seco. Já tinha lavado o copo e o enxugava com lentidão. Isso lhe permita pensar por alguns instantes, ponderando se continuava ou não com aquela conversa. Guardou o copo no armário de cima, depois voltou-se à Wanda. Ele estava apoiado com a lateral do quadril na beirada da pia, ela na bancada de ilha no meio da cozinha.

— Bem, sabe quando… Vi suas memórias?

— Huh, sei.

— Então. — Ela passou as mãos nos cabelos e torceu o rosto numa expressão de dor. — Talvez ter ouvido a história tenha feito… meus poderes procurar respostas. Não sei. Ainda nao entendo como funciona exatamente, parece tão aleatório e caótico, ao mesmo tempo que me leva ao lugar que devo ir. O fato é que vi a Montanha Wungadore, duas mulheres tentando escapar. Luz. Algo… demoníaco. Exatamente como ele disse e como eu sonhei algumas vezes. Mas, — A voz dela estava embargada. — Nada explica o porquê uma das mulheres era minha tia e o porquê ela segurava duas crianças, filhos de uma mulher chamada Magda. Uma mulher que não era minha mãe. Uma mulher que cantava uma música que eu deveria me lembrar, mas...

— Você não lembra. A canção de ninar em polonês.

Wanda assentiu, sem conseguir segurar as lágrimas. Ele lembrava-se dela cantarolando uma música no laboratório da HYDRA, quando ambos ainda eram recursos, ferramentas, experimentos. No entanto, ela não parecia se recordar de algumas coisas.

— Eu sinto que… — Ela enxugou o rosto com uma das mangas da blusa, interrompendo os próprios pensamentos. Bucky sentiu seu estômago afundar. — E se tudo for uma mentira? E se não sou filha de quem eu achasse que fosse? Eu não sei mais que eu sou, James. Eu to com tanto medo.

 

Ele se adiantou no espaço que os separavam, ergueu seu braço direito para chamá-la e preparou seu tórax para recebê-la. Não soube se foi impulso, se até mesmo seu corpo respondeu a postura dela - que parecia tão frágil. Soube que em momentos assim, o contato físico entre eles não os incomodava. A abraçou forte, por longos minutos. Era ruim sentir o tecido de sua camisa se umedecer por conta das lágrimas dela, mas aos poucos a respiração de Wanda se acalmou. Inspirava e expirava, junto a ele. Bucky teve que se forçar a não depositar um beijo nos cabelos dela, tentou pensar algo para dizer. Nada parecia bom o suficiente.

Mas, por mais que as não-conversas fossem confortáveis, Wanda estava assustada demais para se acalmar com somente silêncio. Estava confusa, e ele não teria como ajudá-la sobre poderes, magias, sonhos e visões. Podia, ele divagou, estar ao seu lado quando precisasse. Fazer o que outros, até mesmo ela, fizeram por ele: reafirmar que mesmo o passado sendo tortuoso, insano, fragmentado e ao mesmo tempo eterno, ela podia seguir em frente.

Mas aquilo também era uma tolice, um devaneio cheio de ego. Ele não era alguém qualificado para aconselhá-la.

Embora quisesse realmente ficar ao seu lado.

Talvez fosse bom que naquele instante ela pudesse ler seus sentimentos, seus pensamentos. Poderia então ver também que, por mais que tais coisas não se traduzissem na boca da forma certa, ele se importava com ela.

— Você quer descobrir mais sobre isso?

— Sim.

— E você… Quer fazer isso sozinha?

— Não sei.— Ela disse, sua voz meio abafada. — Não sei se também consigo… Ignorar o assunto vai fazer com que ele suma. Parece que algumas coisas surgem de repente. Parece que algumas coisas me chamam.

Desenlaçaram-se.

— Então nós vamos descobrir. Ao menos procurar. Talvez não existam respostas bonitas. — Ele se recordou da própria história em descobrir quem era. Foram dois anos pesados. Deu de ombros, vendo que a jovem estava muito atenta ao que dizia. — Talvez não encontre nada. Mas… Você continua sendo a Wanda, que gosta de chás, silêncio e de ajudar os outros. E essa é uma pessoa bem legal de ser. E mesmo que descubra que não é exatamente a mesma pessoa, — Deu de ombros. — Tudo bem. Nós mudamos.

Por um instante ele achou que ela fosse chorar de novo e se perguntou se havia dito algo errado.

— Obrigada, James.

— De nada, boneca.

Ela sorriu.

 

Aquela madrugada foi estranha para James Barnes. Num colchão ao lado do sofá onde Sam dormia e ressonava, ele remoia suas próprias palavras. Dissera coisas tolas, é verdade. Mas ao menos ela parecia grata e tinha parado de chorar e aquilo também acalmou seu próprio coração. Ela estava em busca das próprias origens como forma de seguir em frente, ele de certa forma fez isso enquanto ficou sozinho durante dois anos. Tinha planejado a vida somente até 1944. De 2014 a 2016, ficou tentando entender quem era, tentou comer ameixas em paz até o instante em que o chamaram de terrorista e o Capitão América surgira em seu loft alugado. Hoje fazia apenas o que sempre fizera: Estava ao lado de Steve, sendo seu amigo esquisito dentre tantos outros amigos esquisitos.

Recordou-se das piadas sem graça no trem, momentos estranhos e o jantar que compartilharam.

Mesmo que o restante do mundo fosse insano, mesmo que não soubesse o que fazer no futuro, ele não se importava. Não se estivesse com seu melhor amigo e tantas companhias estranhas.

Não se ela também estivesse lá.

 

O que é isso?”

Ele ouviu uma conversa baixa, vinda da sala de jantar. Ele abriu os olhos lentamente, um pouco confuso. Seu cérebro não processara onde estava e de quem eram as vozes, embora reconhecesse o ronco ocasional de Sam Wilson no sofá. Virou o rosto, viu Steve no colchonete jogado ao lado do seu, seu corpo grande demais para a pose encolhida que dormia.

Bucky sentiu a sua própria respiração. Estava, literalmente, entre amigos. Sua pele não recebeu o tranco de adrenalina de uma fuga, nem sua barriga roncava com fome. Era interessante se sentir seguro e se permitir ficar ali deitado, apenas ouvindo. Retornou sua atenção para as duas mulheres conversando.

São roupas novas. Saí mais cedo hoje, aproveitei enquanto dormiam. Se vou devolvê-los pra casa, ao menos tenho que deixá-los apresentáveis.”

“É, confesso que estou horrível mesmo. Ao menos meus ferimentos estão cicatrizando.”

Veio o som de embalagens sendo mexidas, som de embrulho e sacos firmes de papel. Bucky podia distinguir tal som com precisão por conta da memória dos presentes que amava abrir no Natal. A conversa entre elas, porém, era trocada em russo e tal língua ele aprendeu de formas que ele preferiria esquecer.

“Hã, você acertou bem no tamanho. Acho que as roupas dos rapazes vão servir também. Como você…?”

“Eu sou boa em medir o tamanho das pessoas. Fica mais fácil para medir a cova delas.”

“Oh.”

Elas riram de um jeito incerto e fraco, embora não sem humor. Uma pausa. Bucky inspirou e expirou meia dúzia de vezes e imaginou que enquanto isso Wanda observava suas roupas novas, passando as pontas dos dedos no tecido com a delicadeza que ela segurava seus pensamentos. Imaginou-a de vermelho.

Foi Belova que quebrou o silêncio.

Lá na base de testes dos Sentinelas… Você falou meu nome. Você me conhece. Natasha?”

“Sim e não. Ela me disse muito pouco, quase nada. O resto… Eu vi. Vi o que houve no lago, através dos meus poderes. Sinto muito.”

Bucky lembrou-se daquela noite. Fechou os olhos, revivendo sem querer reviver aquele momento em que apertou o gatilho e atirou no gelo.

“Ela te procurou. Em Viena, no museu, ela foi atrás de uma foto de vocês duas.”

“Ah, é?” Uma pequena e seca risada. “Interessante. Você confia nela? Mesmo sabendo disso?”

“Não confiei nela no início. Eu… a feri. Muito.”

“Não parece algo que você faria.”

“Não foram ferimentos físicos, Belova. De qualquer forma, tive motivos para confiar depois. Somos como...”

“Irmãs?”

“Não sei dizer. Só se uma delas é muito distante, vive viajando e é melhor que você em tudo.”

“Parece exatamente como ser a irmã de Natalia, digo… Natasha.” Outra pausa. “Você confia em mim?”

“Tenho motivos para confiar.”

“E depois? Vai dizer que somos quase como irmãs?” Ela debochou.

Nao sei dizer.” Repetiu. “Espero sentir que é a irmã que vive viajando e melhor do que eu em tudo. Só não seja tão distante.”

Um último riso de Belova, um tanto triste e um tanto sarcástico. Bucky sabia que ela faria o que fazia de melhor: desaparecer.

 

Ele decidiu levantar-se um pouco depois, deixou a conversa esfriar no ambiente e em sua cabeça. Assustava ter parte de sua vida - melhor, sua existência - como Soldado Invernal logo ali, uma mulher crescida e sem tantos rancores. Ela poderia responsabilizá-lo por tudo. Matá-lo. E Bucky Barnes não tinha certeza se a culparia por isso.

Ao invés desses devaneios, Yelena o recebeu com uma saudação rápida. Entregou-lhe um pacote, deu-lhe toalhas. Disse que tudo o que precisava estava no banheiro principal que dava para a sala,mas que poderia chamá-la se precisasse de algo. Wanda já havia saído para o banheiro da suíte.

Os banhos que tomara em Wakanda eram mornos e agradáveis, mas a água quente no chuveiro pareceu ainda melhor depois de quase uma semana sem um banho decente. O aroma do sabonete subiu com o vapor e lhe preencheu os pulmões. O toque da toalha era agradável, tanto que sua pele estranhou a textura gentil. Ele encarou o espelho embaçado no imenso banheiro do apartamento, passou os dedos para poder ver o própria rosto. Viu o brilho opaco do braço metálico. Toalha na cintura, outra toalha sobre os ombros.

Um homem de cabelos molhados e escuros até os ombros encarou de volta, barba por fazer e um rosto não tão cansado quanto esperava. Ele virou o queixo, passou a mão pela face.

Quando mais jovem, tinha o cabelo longo o suficiente somente para que criasse ondas no topo da cabeça, pois seu pescoço ficava livre e ele sentia sempre o frio da noite do Brooklyn ao sair de algum baile, alguma noitada inocente. Barba religiosamente feita.

Bucky pegou a lâmina e a examinou com cuidado. Tentou se recordar seu ritual de higiene, embora isso envolvesse um pincel de creme de barbear grosso e uma navalha, muitas vezes numa barbearia e com gente por perto. Quis ter uma foto de referência sua para copiá-la, para voltar a ser o menino de charme jovial e leveza. Havia uma tesoura ali, também poderia cortar o cabelo.

Mas não era mais o mesmo rapaz. Não era também o homem-ferramenta, um recurso, o brinquedo criado para matar. Suspirou. Era alguém no meio disso. Quem?

Bucky Barnes não largou a lâmina de barbear, embora tenha apenas acertado os contornos e altura da barba. Passou desodorante, vestiu roupas limpas e confortáveis.

Parecia um começo.

 

Quando saiu do banheiro e se juntou ao grupo na sala de jantar, notou os olhos de Wanda sobre si. Era um olhar bondoso e tímido que dizia “bom dia” e ele sorriu de volta, respondendo de forma silenciosa. Steve entrara no banho por último e o resto decidia enquanto isso como avisar que estavam ali, seguros e esperando por resgate.

Belova tinha alguns equipamentos de espionagem, como o tal comunicador que estava posto sobre a mesa de madeira escura. Era um objeto médio, do tamanho de um livro talvez, com uma aparência um tanto ultrapassada e gasta. Ele reconheceu o objeto como algo semelhante com qual trabalhara no passado, pois tinha um excelente alcance se você soubesse para onde direcionar a mensagem. Sofria pouca interferência e geralmente não se procurava mensagens em nas frequências em que operava.

A espiã dissera para apenas mandarem logo as malditas coordenadas e falar que Rogers, Wilson, Maximoff e Barnes estavam bem, Bucky discordava. Argumentou que apesar de tal frequência ser pouco utilizada, seria óbvio demais caso alguém captasse a mensagem. Era um caminho longo até Wakanda e muitas agências de espionagem ao redor do globo procuravam por eles.

Wanda deu uma sugestão de mandar um pequeno trocadilho anexado às coordenadas:

A águia,

o falcão,

o pato

e a coruja estão no ninho do cisne.

Ele sentiu a doçura daquelas palavras, mas estranhou a menção ao pato.

De qualquer modo, a ideia foi descartada logo depois. E se não conseguissem sacar que se tratavam deles? Precisavam de algo que a pessoa certa pudesse entender. Uma dica, algo não tão óbvio mas óbvio o suficiente para quem os procurava.

— Belova, — Sam adiantou-se um passo. Bucky ficou levemente surpreso por vê-lo chamando-a através do sobrenome, uma vez que Steve lhe contara que nem por rei T’Challa mostrou respeito. Talvez fosse porque achasse o sobrenome dela engraçado. Era a única justificativa. — Me empresta o seu celular? Eu tenho algo perfeito.

— Espiões não tem aplicativos para troca de mensagem, nem redes sociais.

— Eu não vou twittar onde estamos, droga. Me dê logo esse celular.

Ela deu. Ele abriu um vídeo no YouTube.

A mensagem que chegaria até a equipe de Inteligência do Reino de Wakanda seria a latitude e longitude exatas do apartamento de Yelena Belova e o trecho de “Stayin’ Alive” dos Bee Gees.

Às onze horas e trinta e sete minutos da manhã, apenas meia hora depois da mensagem rer sido enviada, a resposta veio.

Telhado. 19h. Horário local.”  E mais um trecho de “We Are The Champions”, do Queen. Eles souberam então que estavam a salvo.

 

Eles tinham sete horas seguidas de paz e ócio.

Almoçaram no restaurante “Serbish Meat&Fish”, um lugar que a própria Yelena ainda não conhecia no centro de São Petersburgo. Comeram bem, passearam pelo bairro, entraram e saíram de diversas lojas e não foi exatamente uma tarefa árdua fingir que eram simples turistas, tamanha a empolgação de Sam Wilson e o fascínio silencioso de Wanda Maximoff. Eles riram, eles beberam. Apenas não olharam os noticiários e jornais, dizendo que a cada dia crescia a pressa de tomar medidas de controle da população mutante e a cada dia crescia a resistência. Algo vinha, os protestos diziam. Ele iria ressurgir, algumas bocas diziam. Pessoas fingiam que não viam o M vermelho, uma força crescendo. Bucky notou que quando passaram em frente a uma banca de revistas, Wanda parou um instante. Seus olhos piscaram vermelhos.

Ele sentiu seu coração pesar. Estava longe de ter poderes telepáticos, mas conseguia encaixar frases dela aqui e ali para montar um raciocínio. Pouco depois de ter acordado, Wanda lhe perguntou se recordava-se de algo envolvendo seu nome, seu parentesco. Ele lhe respondera que teve somente vislumbres de documentos, trechos de conversas, mas que os cientistas da HYDRA citaram semelhança entre o código genético dos gêmeos e de um outro experimento. Algo antigo e perdido. Ela mencionou a história tenebrosa de Piotr, o lenhador, sobre duas mulheres tentando sair da Montanha Wungadore. Wanda sonhou com elas, sobre uma mulher chamada Magda que segurava dois bebês, seus filhos. Agora ela não sabia mais quem era.

Bucky não sabia exatamente o que acontecia ou o que ela pensava, mas sentia uma ideia desconfortável brotar no peito, uma ideia que já criava escuras e profundas raízes em Wanda. Ela não era quem pensava que era, talvez nem filha dos pais que achava que tinha. Tal coisa era tão absurda que a resposta não era nada mais do que simples negação.

Mas eles não tiveram que pensar nisso quando Wanda provou kokoshiks numa loja de vestuários tradicionais russos. Ela tinha um sorriso no rosto e estava linda. Bucky quis congelar aquele instante em sua memória.

Yelena riu também, tinha a graça de uma bailarina ao andar nas ruas movimentadas e a desenvoltura de uma espiã em fazer com que eles evitassem câmeras, Polícia, ou algo que os deixassem em maus lençóis. Apenas não visitaram museus e galerias de arte, o que teria deixado Steve um tanto triste se ele não tivesse ficado tão impressionado com a arte de rua e a arquitetura da cidade. O clima estava agradável para um final de inverno na Rússia e eles aproveitaram as sete horas de folga, até que o sol se deitou e eles voltaram para o apartamento.

Esperavam no telhado, vestidos com casacos pesados para espantar o frio e o vento. Eram quase sete da noite e Yelena Belova soltou um suspiro no ar, que se condensou e virou uma névoa pálida e efêmera. Ela estava ao lado de Bucky Barnes, seu treinador em outra era, já Sam, Steve e Wanda admiravam mais a frente as luzes da cidade. Belova passou uma garrafa para ele.

— Para nos manter quentes.

Ele aceitou, talvez tenha rido pela ironia.

— Para nos manter quentes. — Uma pausa para um longo gole. Devolveu a garrafa a ela. — Obrigado. Por tudo.

— Coloco o fim dessa história nas suas mãos e de seu grupo. Sairão melhor do que eu para deter um homem sem corpo.

— Você poderia vir conosco, Rooskaya.— Ele franziu o cenho, estranhando bafejo exasperado dela. Nao entrava em sua cabeça que ela não entendesse que Steve, Sam e Wanda eram gratos, todos eles, e que talvez precisassem mais de sua ajuda. Haviam gostado também de sua companhia. — Veja o que fez por nós. Por pessoas que nem conhecia.

— Sei o que fiz. E sei tambem que nao existe lugar para mim com vocês. Mas aprecio o agradecimento.

O som da vida noturna em São Petersburgo veio lá de baixo, um tanto distante e inconstante pela direção do vento. Ela fechou as pálpebras durante alguns segundos, apreciando o barulho de uma vida comum que dificilmente qualquer um deles teria.

— Como que… Depois de tudo isso você continuou acreditando no melhor? Em fazer a coisa certa, mesmo que por debaixo dos panos, mesmo que… Que eu tenha atirado no gelo?

Yelena abriu os olhos.

— Então não se lembra exatamente de tudo. — Encarou o chão, colocou as mãos nos bolsos do casaco. Deu passos para o lado e para frente, ensaiando sua fala, depois aproximou-se de James Barnes. Com a mão direita tirou algo do bolso e o colocou na palma dele. Ela tinha lágrimas na beirada dos olhos, lágrimas aquelas que não iriam escorrer pela sua face. Em seus lábios, porém, uma verdade: — Porque você me tirou do lago.

Ele engoliu seco.

Não se lembrava disso. Não se lembrava disso. Não se lembrava disso.

Por que não se lembrava disso?

 

A memória começou branca, depois cinzenta. Talvez fosse o prata da água gélida, talvez o reflexo do seu braço de metal. Ele se lembrou do sopro da noite, os latidos dos cachorros que os carcereiros do Salão Vermelho soltaram para pegar as duas meninas que escaparam. Duas não, a mais velha apenas. A ruiva fingia. Natalia, a melhor delas. Pequena e dissimulada. Imprevisível e perfeita.

Ele já tinha dado o tiro e a menina loira caiu na água. As pessoas envolta retornaram a base,  levando os cães e a bailarina mais nova. O Soldado Invernal permaneceu ali, olhando, olhando e olhando. Até que pulou no lago.

As lembranças seguintes eram demasiado fragmentadas e quase sem som. Caminhou na neve com sua rooskaya nos braços, seu corpo frio e nariz sangrando, a levou até a enfermaria do Salão Vermelho. Não questionaram as ações do Soldado, ou não se importaram. Talvez tenha recebido ordens de não deixar a pequena bailarina rebelde morrer de hipotermia, ou se não fosse isso, uma ordem, tudo bem - logo ele encontraria seus adestradores para mais uma terapia de choque. No entanto, o que preocupou as enfermeiras do Salão Vermelho foi o momento quando o americano prendeu os cabelos molhados da menina com um laço bem feito.

E as monitoras, mestras do Salão Vermelho, não permitiam laços que não fossem de sapatilhas ou cordas para estrangular suas vítimas.

A imagem dos olhos semi abertos da menina deitada numa maca ainda estava nítida em sua mente, o brilho confuso e vivo em seu rosto abatido. Ela passou as mãos fracas em seus próprios cabelos e segurou o laço bem forte com os dedos enquanto ele era afastado delicadamente pelas monitoras para ser resetado.

Eram dois recursos com defeito, prestes a sofrerem reparos.

 

— Foi um bom treinador, Barnes. — A loira deu de ombros. — As vezes eu via o seu “eu” real. Geralmente era quando se passava muito tempo de uma sessão de lavagem cerebral a outra. Você conversava mais, ou ao menos tentava. Era mais calmo. No começo, nós não entendíamos porque nosso treinador se ausentava, ou o porque te levavam para um cômodo diferente. Depois entendemos que eram as sessões de eletrochoques. A missão na nevasca foi no meu aniversário e você fez uma panqueca maior pra mim. E o seu “eu” verdadeiro dizia que a menina loira sem futuro era melhor do que tudo aquilo. O seu “eu” agia de formas silenciosas. — Suspirou, olhou pra baixo. — Já te disse, Barnes. Havia algo que eles não podiam tirar de mim porque não conseguiram tirar tudo de você. E sou uma boa aluna, embora não uma excelente sniper.

Ela tremia, ele também achava que sim.

Bucky Barnes tentou responder, mas palavras não alcançavam sua língua, fosse em inglês ou russo. Ele piscou e piscou, encarando-a, até que um ronco grave no céu o distraiu. Virou seu torso em direção ao som, em direção a aeronave pequena que pousava no telhado do apartamento. Era escura e com poucas luzes, muito provavelmente fornecida pelo Reino de Wakanda. Steve e Sam aproximaram-se com naturalidade, Wanda estava logo atrás.

A porta da aeronave se abriu com um barulho grave e baixo, uma pequena passarela deslizou para traçar um caminho até o chão do telhado. Dali surgiu a figura preocupada de Natasha Romanoff, seus cabelos ruivos bagunçados pelo vento. Ela mal ouviu as saudações de Steve, não foi de encontro ao abraço amigável do Falcão. A espiã caminhou diretamente até Bucky Barnes.

— Quem era? Quem… Quem estava com vocês?

Como assim, “era”? Ele franziu a testa e se virou em direção a Yelena Belova, mas ela já não estava mais lá. Em sua lugar, apenas vazio e frio. Desaparecera como disse que faria.

Não esperava que fosse tão cedo, muito menos enquanto a aeronave pousava.

Rooskaya. — Respondeu, recebendo um olhar assustado dela. Natasha engoliu o ar, Bucky afinal encarou o presente que a pequena bailarina havia lhe dado e agora jazia em sua mão metálica: as chaves do apartamento. Ele ergueu o objeto bem a frente de seu nariz, observando o chaveiro pendurado: um laço de fita branca e perolada.

Bucky sorriu de lado. Ela era de fato uma boa aluna. Esperava que um dia percebesse que havia lugar para ela no mundo, pois ele aos poucos também encontrava o seu.


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Notas finais do capítulo

*Nós mudamos. Nós permanecemos os mesmos. Nós somos, somos o que? Somos, apenas.

*Esse capítulo encerra a participação de Yelena Belova; Não planejei nenhuma outra aparição da personagem e me encontro particularmente satisfeita de seu destino ameno, já que nas HQs ela passa por tanta coisa.

*O capítulo foi revisado, mas existe a possibilidade deste arquivo ser sabotado pela HYDRA. Caso encontre algum erro, favor reporte à Shalashaska