Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 24
XXIV


Notas iniciais do capítulo

Olá! Trago mais um capítulo para vocês e espero que gostem. Jamais esperei ter tantos acompanhamentos e nós já somos 100! Faço o meu melhor para continuar postando e espero logo poder escrever novos capítulos, embora esteja ocupada com estudos e trabalho. Muito obrigada e espero vê-los nos comentários! ♥



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Mesmo que repousada numa poltrona anatômica e acolchoada na Biblioteca real, as costas da Feiticeira Escarlate doíam, ou talvez a pesada sensação fosse o restante de seu ego. Era início da tarde e ela passara a manhã com Shuri e as Adoradas na arena de treinos.

Elas, no pouco que falaram e o fizeram em inglês, foram gentis, mas riam em wakandano. Seus bastões e golpes foram rijos e rápidos. Brutais e eficientes. Wanda sentiu-se uma rata nas garras de um bando de panteras, que deliciaram-se com a novidade. Como Shuri havia lhe dito, “Estrangeiros eram apenas para diversão.”

Em seu íntimo, sabia que os risos ligeiramente debochados e os olhares compadecidos das Adoradas eram mais do que justificados. Jamais seria páreo para o grupo de elite daquela nação num combate corpo a corpo, mesmo que passasse o resto de seus dias treinando ao Sol.  Era simplesmente ridículo.
A princesa, em um momento de bondade, lhe deu orientações de como firmar as pernas no chão e movimentar seu corpo com mais destreza. E então deslizou o pé esquerdo para trás, a perna direita se flexionou. Wanda assistiu o joelho dela atingir inevitavelmente a lateral de seu corpo, assim como dias atrás.

Ela caiu, de novo.

E ao levantar, Wanda teve certezas de duas coisas:

As Adoradas, trajadas em cores fortes e com lanças que poderiam fazer as nuvens sangrarem, tinham a mente e os músculos disciplinados. Eram fortes, confiantes. Conheciam cada palmo de seus limites, e este era o infinito.

E ela nunca provaria deste sabor.

Wanda piscou, percebendo que sua mente vagueara. Não era a primeira vez essa tarde que sua consciência voara longe, mas não era para esta memória ou para este alguém que ela queria voltar. Saber que ansiava por estar no mesmo cômodo em que James estava lhe provocou estranhamento e rubor, a ponto de tentar focar-se em algo diferente.

Ouvia-se  o som de cliques, anotações e páginas sendo viradas, mas a cabeça de Wanda estava dividia entre seu costumeiro tumulto e a fadiga. À sua frente, longos tratados e artigos sobre neurociência e química. A verdade é que não tinha compreendido tanto quanto gostaria ou deveria, mesmo com um caderno de anotações, o tradutor automático da biblioteca e Shuri a sua frente. Gostara dos trechos integrados de psicologia e até mesmo arriscara ler um tanto de psicanálise, mas logo as palavras se misturavam e aquilo parecia ser uma grande perda de tempo.

Era uma tentativa de desvendar o funcionamento dos poderes telepáticos de Wanda e como aquilo poderia ter transportado-a para uma memória de forma física, mas não achava que Shuri  a ajudaria desta forma. Delegar a direção por onde começar ou o que ler à princesa de Wakanda era desconfortável, tratando-se de que era mais sobre si própria que ela queria descobrir. Infelizmente, ela voto vencido sobre tal tema. Tanto Steve, quanto Sam acharam que seria uma boa ideia pesquisar mais sobre como os poderes dela funcionavam em tal nível, uma vez que na base em Nova York eles se preocupavam mais em como rajadas de energia rubra poderiam incapacitar inimigos.

— Não estamos chegando a lugar algum. — Disse Wanda, com um suspiro incontido.

— O que você achava? Alguma resposta milagrosa só porque estamos em Wakanda? Ainda temos que estudar e ler, Maximoff.

— É, eu meio que esperava isso mesmo. Você me deu falsas expectativas.

Shuri interrompeu sua leitura apenas para encará-la com uma carranca.

— Se acha que estamos na estaca zero, diga isso só por você. Minha formação é mais específica em engenharia e estratégia militar, então é posso dizer que estou estudando matéria extra.

— Ah, é isso? Decidiu me ajudar porque vale pontos para seu semestre?

— Unimos o útil ao agradável. —Sorriu. — Agora, vamos lá. Acredito que se cruzarmos as informações aqui com o que já temos do seu histórico da joia kimoyo, podemos ter alguma resposta.

Ela empurrou outro livro, enquanto Wanda soltava um estalo com a língua, em desaprovação.

O interior dentro de si rugia selvagem, pois nenhuma letra ou autor poderia explicar sua natureza etérea e impaciente. O Caos rosnava para que a cor escarlate banhasse sua visão e seus dedos, sabendo que o corpo de Wanda sentia sede do borbulhar magmático de suas veias, mas o lado racional dela respondia, afagava-o, suplicava. Havia um corte em sua mão e inexplicavelmente saltara no tempo, portanto agir com seu instinto era algo estúpido e perigoso. O Caos, sem seguida, ronronava mais manso.

Por enquanto.

— Nossa,  — Wanda murmurou, tentando conversar de forma amigável para matar o tempo. — Eu só consigo falar isso com esforço consciente. Neuro.. Neuroanatomofisiologia.

— Só chame de NAF, e pelo jeito é uma ótima matéria. Não a ofenda na minha frente.

A outra esboçou um sorriso, por mais que a princesa estivesse falando sério. Voltou seus olhos às janelas, às estantes, à pulseira azul em seu pulso. Encarou a pilha de livros e as anotações estranhas, decoradas por rabiscos indistintos.

Era dia 31 de Dezembro e estava enfurnada ali, um lugar que deveria ser um santuário. Perguntava-se quando finalmente a princesa se ausentaria para conduzir uma possível cerimônia de Ano Novo, se é que eles festejavam isso, mas a outra não parecia sequer pensar nisso. Wanda só queria sair, talvez comemorar um pouco com Steve e Sam, depois daquele susto que dera ao sumir e depois voltar ferida.

Apesar de aborrecida e entediada, lançou sua mão a pilha de livros descartados ao longo da tarde, revirando os primeiros que Shuri lhe dissera para ignorar. Eram obras comentadas de livros sobre espiritualidade e religião locais, que ela pegara por mera curiosidade e depois por real interesse.

— Não, esse não, Maximoff. — Shuri permaneceu em sua posição folgada, com um óculos na ponta do nariz e um volume aberto no colo. Bateu as pontas das unhas em outra edição de capa dura, sem desviar o olhar:  — Pegue outro da Seção 3, talvez deste autor aqui. Queremos respostas concretas sobre o que aconteceu, não...Pseudociência.

Ela puxou o livro mesmo assim, com ainda mais vontade.

— Por quê não podemos dizer que tudo isso foi magia? Sabe, as pessoas me chamam “Feiticeira Escarlate”.

— Por que é uma resposta barata. Quer explicar uma viagem no espaço e tempo através de memórias pela­­... Não sei, Cabala? Me poupe.

Algo zuniu elétrico dentro dela.

— Em primeiro lugar, sua equipe de ponta do Laboratório, como você tanto gosta de se gabar, não descobriu o que aconteceu até agora. Segundo, se quiser ir pelos fatos e ciência, tudo bem. Não precisa falar da minha religião.

Shuri levantou o queixo, ajeitando o óculos.

— Eu não quis... Pareceu menos ofensivo na minha cabeça.

— É, tenho certeza que sim.

Um dos funcionários da Biblioteca chamou-lhes a atenção pela enésima vez naquela tarde, exclamando um “sshh” antes de voltar a organizar uma prateleira. Aparentemente tal gesto era universal.

Wanda desviou o rosto e a outra fez o mesmo.
 Era difícil lembrar a razão de estar ali enquanto Shuri continuava a lhe dar doses homeopáticas de sarcasmo e um quê de crueldade. Passou de livro à outro, sem bem ler os títulos ou as frases contidas nas páginas que certamente não compreenderia sem a ajuda do tradutor. Suas mãos tremiam.
Não havia pó em contraste aos raios de luz que vinham das janelas altas, não havia o cheiro familiar de livros, por mais que a Biblioteca estivesse repleta deles. A todo instante e em todo lugar havia o lembrete de que ali não era seu lugar.

E o onde seria seu lugar? Seu país, destruído pela guerra?

De alguma forma, ela se lembrou da montanha com qual sonhava e com a música. E por lembrar disso, lembrou-se de muitas outras coisas das quais ela tinha saudades.

Estava sozinha.

De seus olhos escaparam lágrimas silenciosas e também uma fraca luz rubra. Odiou-se por estar assim, com o coração sensível demais e a mente tão aguçada quanto. Demorava a acalmar-se, tentando controlar sua respiração e sua vontade de ir na garganta da princesa. O Caos que compunha cada fibra de seu ser tumultuava-se, desperto, vivo e escaldante.
Com a visão embaçada, ela tateava os batimentos de alguns funcionários da Biblioteca, sentia o sabor do vento batendo no vidro, aspirava o amargor de ressentimento próximo, vindo de Shuri.

E aquilo foi estranho. Guiada por sua intuição, ela pegou outro livro qualquer e voltou lentamente a fazer anotações falsas, substituindo o rancor por curiosidade. Escondia suas íris cintilantes entre uma piscada e outra, abaixando os olhos e aparentando indiferença, desinteresse.

Tal qual um geodo, a mente de Shuri era dura de se abrir, mas Wanda a sondava aos poucos, aplicando doses controladas de força em busca de um ponto de vulnerável, uma fenda. A princesa moveu-se na poltrona, trocando o lado em que se apoiava, ajeitou os óculos, soltou um suspiro. Parecia desconfortável, mas até aí poderia ser o fato de estar constrangida por ter trocado farpas com a estrangeira.

As mãos de Wanda inquietaram-se pelo silêncio.

Havia um pedido de desculpas suspenso no ar, mas orgulho o ancorava pesado na boca. Com um gesto simples, Wanda deslocou a fraca névoa vermelha até o corpo de Shuri, captando as palavras presas pelos seus dentes.

E então, uma rachadura.

Ali a Feiticeira Escarlate aplicou mais força, envolvendo-a em vermelho translúcido, imperceptível aos olhos da wakandana, e encontrou nada mais do cristais.
Eram pensamentos brutos, pontiagudos. Ressentimento rígido por Wanda ser quem era e pelo o que tinha feito, um broto controverso de empatia por ela logo ao lado e inúmeras estalactites de vaidade. Tudo reluzia, verdadeiro e transparente.

Ela sentia muito, mas não conseguiria pedir desculpas. E não iria, de qualquer forma.

Do outro lado existiam cacos familiares à Wanda, fragmentos de algo sólido que fora implodido. Era luto, ira, desamparo. Dor.

Ela piscou, desligando-se de Shuri.

— Você se desapegou de Bast e Sekhmet pelo que houve em Abril. — Wanda foi direta. — E não acredita mais em muita coisa, não?

— Já disse que não quero que entre na minha cabeça!

A princesa de Wakanda quase rosnou, levantando de sua cadeira, enquanto a outra somente deu de ombros.

— Eu poderia pedir que você pensasse mais baixo, mas essa não é a questão. Cansa discutir com você, sabe? Porque não vai levar a nada.

— Está tentando simpatizar comigo? Nós não somos iguais. — Sua expressão foi de nojo. —Podemos ter perdido nossos pais, nossa... Religião, mas eu não sou igual a você!

A calmaria de Wanda foi inabalável. Ela assentiu com a cabeça, sem nem mesmo comprimir os lábios ou desviar o olhar. No fundo, queria contra-argumentar citando o dia em que se encontraram no Laboratório de Criogenia, pois na ocasião a princesa deixara implícita a ideia de igualdade entre as duas, uma órfã homicida e uma princesa virtuosa. Admitiu seu plano de trabalharem juntas, uma dupla de garotas patriotas, poderosas e perigosamente subestimadas.

Wanda segurou a língua, embora seu jeito reticente só inflamasse os olhos de Shuri. Então, ela disfarçadamente tamborilou os dedos na madeira, abrandando as emoções da princesa. Era tão fácil quanto segurar um touro pelos chifres, mas a Feiticeira compreendia. Estava implodindo estruturas cristalinas de orgulho.

— Pare de constatar o óbvio. Eu sei que não somos iguais, e sendo sincera, nem eu quero ser como sou. Mas você precisa de mim, e eu preciso de você. Corte essa máscara.

Ela sentou-se novamente, derrotada e cansada. Talvez não pela magia de Wanda, talvez não apenas por sua exaustão. Mas ela se sentou e havia vulnerabilidade em seu tom.

— E eu meu irmão aprendemos a ser o contrapeso um do outro, de modo que até nossas formações se complementam. Ele é um visionário, e eu uma tradicionalista da minha cultura... Apesar de minha deusa não ter me trazido conforto agora.

Lágrimas insistiram em brotar de seus olhos, mas Shuri não as deixou cair. Certamente havia algo a mais ali, algo antigo que por enquanto a Feiticeira não era capaz de ler ou supor. A princesa desviou o olhar, sua voz hesitou. Wanda inclinou seu tronco sobre a mesa e segurou sua mão esquerda, surpreendendo-se por ela se permitir ser tocada e amparada. E aquilo partiu seu coração.

— Eu não queria que eles viajassem. Briguei com meu pai. — Ela deu de ombros, um sorriso triste escapando de seus lábios. — E eu estava certa.

Se fez silêncio, para alívio de certos funcionários de Wakanda.

— É. — Wanda disse, tirando sua mão sobre a dela. Reparou na sua e na pulseira dela, agora realmente parecendo pulseiras da amizade.  — Eu também iria querer bater nas pessoas.

— Você meio que já fez isso, mas quase causou genocídio.

E então ela riu com falso deboche.

— Eu te odeio.

— Talvez não muito. Você poderia ter explodido meu cérebro de dentro pra fora, mas não o fez.

— Ainda. — Não conseguiu irritar-se. — Talvez seja só porque você é cabeça dura ou porque eu queira aprender mais sobre suas tradições para dar um golpe de Estado. Sabe, eu tenho aprendido wakandano. Já sei pedir orientação para ir ao banheiro. Nunca se sabe.

Shuri só cruzou os braços e levantou uma de suas sobrancelhas.

— Certo. Quer que eu te dê um biscoito?

— Não. Eu quero que me deixe sair. Daqui a pouco já vem o final da tarde e vou acender o Menorah. — Shuri assentiu, silente. — Já quebrei muitas regras do Shabat e não quero me atrasar hoje. Aliás, você não deveria sair para comemorar o Ano Novo? Ou vocês usam um calendário diferente?

— Não, eu... Bem, nos não usamos o calendário gregoriano, se é essa a pergunta, mas existe um Festival hoje a noite. A comemoração faz parte dos deveres da Coroa, mas... — Ela suspirou, revirando os olhos. — Não estou no clima. No fundo eu queria uma desculpa para não ter que ir.

— Quer que eu te dê um soco na cara?

Wanda só pode imaginar o tamanho do susto e do ódio do mesmo homem que lhes pedira silêncio ao ouvir mais uma vez a risada da princesa.

— Você pode tentar me dar um soco na cara. Ênfase no “tentar”.

As duas organizaram os livros e anotações, guardando o que usariam mais tarde e conversando sobre coisas superficiais. Enquanto caminhavam pelo longo corredor até à saída, Shuri comentou:

— Nós, wakandanos, fomos expostos a radiação de meteorito há muitos anos. Okuqala. Somos ligeiramente mais fortes e mais resistentes. — Ela devolveu uma pilha de livros na recepção, sem dar um segundo olhar para o funcionário, que as encarava com irritação. — Eu deveria perceber quando você lê minha mente, mas sempre noto tarde demais. E também me disse que eu “deveria pensar mais baixo”. Você parece muito sensível, huh?

— Eu... eu não sei. Pode ser efeito da pedra que me deu poderes ou, bom...

Wanda molhou os lábios, tomando tempo. Havia algo que não sabia se queria ou deveria dizer. Acreditara que a razão de sua sensibilidade aguda era a dor do luto somada ao lugar cheio cristais e minérios em que estava. Talvez isso contribuísse, mas já estivera em ambientes estimulantes demais sem nada ocorrer e também sempre estivera de luto, de alguma forma.
Poderia ser tudo aquilo, poderia ser o fato de agora saber coisas que não sabia antes. Coisas que  o Soldado Invernal a levara descobrir.

— Eu li um relatório da HYDRA, meu e de meu irmão: “Propensão genética dos voluntários a mutação”.

O queixo de Shuri caiu. Tomou sua mão e caminhou rapidamente para fora da Biblioteca, olhando lado a outro. Seguiu pela direita e desviou do trajeto principal, levando-a para um corretor estreito e afastado. Já estavam longe e sozinhas quando atreveu-se a perguntar:

— Você é mutante?

— ...Não sei. Não são sinônimos hoje em dia? Mutantes, aprimorados, já ouvi até inumanos. T’Challa disse que preferia o termo “meta-humano”.

— Primeiro, Majestade. — Ela disse, a testa franzida e a boca torta. — Segundo, realmente as pessoas usam como sinônimos, mas isso está errado. “Aprimorado” serve para quem foi vítima ou foi atrás de alguma intervenção. Steve Rogers com o soro, por exemplo.

— Certo, algo que se adquire por meios artificiais. Sei.

— Exatamente. Agora, mutante... Bom, mutante é outra história. Você nasce com isso. Houve uma onda de casos de mutação no fim dos anos 60 nos Estados Unidos, mas parece que tudo foi “resolvido” de repente. Gene-X, como diziam na época.

— Tá, e os “meta-humanos”?

— Ah, meu irmão só prefere este termo mesmo. Politicamente correto, de origens gregas. Sabe, orto, meta e para? Tipo Química.

Wanda soltou um longo suspiro, igualmente surpresa e irritada pelo súbito interesse da outra.

— Mutante e aprimorada. — Shuri murmurou sozinha. — Uma combinação e tanto.

— Eu não quero... Não quero que isso saia daqui. Eu só preciso entender o que eu sou e porquê raios eu atravessei uma memória.

A princesa deu de ombros, indiferente.

— Não vai sair daqui. Mas... Isso muda de figura porque são seus genes, Maximoff. Algo a mais do que simples NAF. Você funciona diferente, não adianta eu pesquisar sobre pessoas puramente humanas se você não for uma. Bom, nesse ponto você não é puramente humana de qualquer jeito. Eu não tenho realmente como te ajudar sem fazer testes e sem saber quem eram seus pais. Sabe se eles tinham algum poder?

Aquilo a confundiu. Nunca fora uma questão levantada por ela, em todos esses anos. E vivera mais sem seus pais do que junto a eles. Não conseguiu lembrar-se de algum evento que envolvia algo fora do comum, algo que não deveria estar lá.

O sonho da montanha e a canção martelaram seus neurônios, mas ela os ignorou.

— Não. Não até onde sei. Mas eu e Pietro não tínhamos poderes até 2012... Você acha que nossos poderes não foram dados? Foram ... Despertados?

— Aconteceu com muitos, mas não temos muito do gene-X aqui. Não os chamamos assim, para ser sincera. Posso pesquisar mais no Instituto Nacional, mas acho que terá mais respostas quando professor Xavier chegar daqui a quatro dias, Maximoff.

— Certo. — Ela respondeu, embora estivesse muito mais do que incerta. Shuri se afastava depressa, retomando o caminho para corredor principal daquela Ala, sem olhar para trás e sem parar de falar.

— Pelo menos terei algo melhor a pensar do que meu discurso de Ano Novo.

— Você vai ter que dizê-lo daqui há poucas horas de qualquer jeito.

— Eu sei. — Ela virou o rosto brevemente, exibindo um sorriso arrogante. — Até ano que vem, Maximoff.

Wanda parou.

— Até, — A expressão dela foi torta, desconcertada. — Vossa Alteza.

** **

Já era noite e os três estavam na varanda, escutando os ecos de música e luz que o vento trazia. Estavam distantes da Cidade Dourada, mas era possível sentir a vibração do festival que Shuri mencionara,em nítido contraste com o interior do Palácio.
Já acabara o Shabat, pois já não era mais sábado, no entanto haviam poucas luzes acesas dentro do dormitório e certamente a mais forte delas vinham do Menorah, na mesa. Eles já haviam comido um pouco de comida frita e bebido suco de uva, pois Wanda não podia beber vinho e Steve não era dado ao álcool, para a tristeza de Sam Wilson.

Inclinada sobre a mureta, Wanda brincava com a taça vazia e encarava o horizonte. Ao seu lado, Sam soltava um assovio de admiração. Os três trajavam uma peça ou outra em branco e prata, e naquela noite ela poderia dizer que pareciam anjos.

— Eu acho que estamos sozinhos. — Ela comentou, intrigada com a relevância da celebração. Seria algo religioso? Algo político? Ambos, já que Wakanda era regida por uma monarquia absoluta? Pietro imaginaria que levavam panteras de verdade para lá, como um estranho culto igual ao que pessoas tinham por gatos em redes sociais. Ela riu, imaginando isso também e como seria adorável, se tratando de pessoas sérias feito Shuri e T’Challa.

  — Esses caras sabem como dar uma festa.

— Eu aposto que sim. — Steve anuiu, tomando mais um gole de suco. — O que será que eles estão comemorando?

Não houve resposta, apenas um bip no relógio de pulso do Falcão. Ele deu um meio sorriso e desligou o alarme, depois virou-se para seus colegas:

— Falta um minuto. Despeçam-se de 2016. Digam “olá” à 2017.

Wanda soltou um bafejo breve, meio rindo. Houve suspense para o que diria em seguida:

— Que ano horrível.

— Bom, você jamais pensou que passaria a noite da virada em Wakanda, a nação em que ninguém, tirando Ulysses Klaw, saiu vivo depois de uma singela visita.

— Sam, — Capitão América franziu a testa. — T’Challa nos deu asilo político, não férias.

Ainda assim, riram. Outro alarme no relógio e Wanda voltou-se para seus amigos, citando Clint Barton:

— Feliz ano novo, seus babacas suicidas.

Se abraçaram, palavras desajeitadas pairando ao ar e pingos de suco no chão. Não houve o brilho e o barulho de fogos de artifício, não houve uma multidão tola e esperançosa dando as boas-vindas à algo impalpável e completamente arbitrário como uma nova data de um calendário. Existia o silêncio e pessoas que se importavam umas com as outras.

E isso era o suficiente.

Um terceiro alarme os despertou do momento de confraternização, mas não eram os mesmos bipes do relógio de Sam Wilson. Era um toque antigo e padrão de um celular, vindo do bolso do Capitão América.

Wanda banhou-se em aura escarlate ao ver o aparelho Nokia vibrando e zunindo, os olhos arregalados enquanto Steve o abria. Os únicos que tinham o número do Capitão América eram Natasha, Clint e Tony Stark, e a última opção a deixava nervosa. Somente seu sorriso de lado a fez relaxar, bem como a frase solta pelos seus lábios:

— Oi, Nat. Ainda na neve? — Ele virou o celular e o colocou no viva-voz.

— É. — Disse a espiã, com a voz rouca. — Neve. Bebidas. Luzes. Mas meu gato odeia os fogos.

— Espera, você tem um gato?

Wanda aproximou-se mais do telefone para ouvir a risada de sua amiga. O som ambiente do outro lado da linha era silencioso senão o som distante de música clássica, como se ela estivesse em casa e o tal gato dormisse em seu colo.

— O nome dele é Liho. — Foi possível ouvir um breve ronrom, talvez porque a agente tenha colocado o celular próximo ao felino. — Estranho estarmos na mesma faixa de fuso horário. Vocês estão na África e eu, bem... Opa. A África pode ser um lugar bem grande, mas eu não deveria ter dito que vocês estão aí pelo telefone. Acho que sou uma péssima espiã.

Natasha deu uma pausa, como se desse um gole do que quer que estivesse bebendo. Era óbvio que não concordava com o que acabara de dizer.

— Feliz ano novo, Natasha. — A face de Steve tinha uma expressão gentil.

— Feliz ano novo, fóssil. Ei, onde está Sam e porquê ele ainda não disse algo?

— Aqui, Nat. — Ele abaixou o rosto para falar diretamente no microfone do celular, o tom brincalhão e de falso flerte. — Só estou com inveja. Só tivemos suco de uva aqui.

— É melhor assim. Sei que passou vergonha no Natal e deu um péssimo exemplo para Wanda. Ela deve aprender com alguém que sabe beber. — E para ilustrar o argumento, ouviu-se um som de um longo gole e um suspiro refrescado em seguida.

— Como você...? — Sam pegou o celular das mãos do outro. Lembrara-se vagamente de tentar rabiscar no vidro da câmara criogênica com caneta preta permanente. Queria desenhar um monóculo e um bigode, mas felizmente foi impedido. — Steve te contou?

— Eu sou uma espiã, Wilson. Eu sei das coisas. Mas, pergunte à aranha que mora no canto do seu quarto. Ela pode saber de alguma coisa.

Foi a vez de Wanda pegar o aparelho.

— Ah, queria agradecer o suéter vermelho. — A voz dela tampou os protestos de Sam. — Eu adorei.

— Bom. Fiz grande para você usar com meias-calças e botas, aquelas que você tem que vão até aos joelhos.

— Hã, você não está esquecendo uma saia ou calça aí no meio? — Soltou uma risada nervosa. — Porque...

— Não, não estou. Vai ser um visual de matar.

Steve apressou-se em recuperar o celular, a testa franzida e rubor nas bochechas.

— Ela é uma criança, Nat.

— Você sabe que não é, Stevie. — O tom dela era jocoso. — Pare de ser tão retrógrado. Ah, é. Você nasceu em 1918.

Boa-noite, Nat.

— Boa-noite.

Ouviu-se uma risada de Natasha antes dela desligar de súbito. O silêncio retornara.

 Eles voltaram para dentro do dormitório, largando as taças e louças utilizadas na pia para serem limpas pela manhã. Sam, ao mesmo tempo em que organizava a cozinha, comentava que Steve deveria ligar para Sharon no dia seguinte. Ambos sabiam que talvez não fosse tão simples, mas gostavam de imaginar que sim.
Antes de ir até seu quarto, Wanda atreveu-se a dar uma última olhada através da janela, encarando o constelação de Órion.

Ela não sorriu, pois a saudade apertava forte seu coração, porém não chorou. Fez uma careta e sentiu se dissolver por dentro, mas nenhuma lágrima atravessara sua face e aquilo já era um avanço. Secretamente pediu para as estrelas Mintaka, Alnilan e Alnitak, que compunham o Cinturãode Órion, que protegessem seus amigos, pois eles eram o que lhe restava.

As graças que tinha em mãos neste instante eram poucas se comparadas à perdas do passado, embora estivesse viva e houvessem pessoas que se importavam com ela ao seu lado. Wanda soube ser grata ainda que existisse um quê de medo de perdê-los, pois as mesmas mãos que seguravam seus tesouros também geravam catástrofe.

Rubro, de interior negro, em luto. E ela sabia que não conseguiria lidar mais uma vez com tudo escorrendo pelos dedos.


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Notas finais do capítulo

Este capítulo demorou um pouco para sair devido a algumas pesquisas que fiz sobre alguns personagens e NAF hahahah
E gente, tem coisa melhor do que escrever falas da Nat? Ou diálogos entre Wan e Shuri? Adoro ♥ ♥ ♥



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