Coletânea memorável escrita por Maria Lua


Capítulo 2
Repentinamente andarilha




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Neste fim de manhã fora pedido aos alunos da matéria Criação Literária, do curso de Letras, que fizessem uma lista de tópicos que podem ser abordados no conto que irão fazer na semana posterior, que valerá três quartos da nota do semestre, com base em uma experiência particular deles. Um dos alunos levantou a mão e disse: não tenho certeza se tenho alguma experiência que valha a pena virar um conto. O professor então o respondeu pacientemente: aproveitem que hoje é sexta-feira e busquem por uma nova experiência durante o final de semana. Uma boa história não depende do fato, e sim de como ela é contada.

Amélia, da classe, pensou bastante sobre isso. De fato, a dúvida do colega também era a dela. Nada havia para escrever em sua vida, a não ser sobre o seu gato e sobre filmes. Amélia morava sozinha desde os vinte e um anos, focada na faculdade, com nenhum relacionamento duradouro ou amigo muito íntimo. Sempre pôs seu futuro como preferência imediata. Sobre o que escreveria? Que tipo de experiências teria em apenas dois dias para poder listar e entregar?

Pensou em sair de casa. Poderia ir ao cinema e observar as pessoas, como um psicólogo, investigando seus personagens. Poderia, também, ligar para um colega e marcarem de sair para beber. Ou até mesmo sair sozinha para dançar, conhecer pessoas pelas quais certamente renderia sentimento de arrependimento e decepção. Ou, quem sabe, de vergonha. Em todos os casos funcionaria. Ela teria uma história. A história de como ela saiu do padrão em sua vida, de como conheceu pessoas vistas apenas em filmes como Cães de Aluguel, Laranja Mecânica ou Trainspotting. Ela escrevia bem, poderia render nisso algo muito interessante. Poderia até mesmo transformar esse relato em uma ficção, em segredo.

Estava decidida, até ouvir alguns de seus colegas de classe combinando de fazer o mesmo um com o outro. Mas vejam isso... Ela seria mais uma aluna descrevendo as sensações da bebedeira e do descontrole corporal em uma farra juvenil e descabida. Não. Tinha que fazer diferente. Foi ao banheiro e limitou-se a olhar-se no espelho. Enquanto fixava seus olhos em suas próprias pupilas, teve uma ideia, e quando percebeu já falava sobre si para si mesma. Havia lido em alguma de suas movimentadas manhãs que é uma boa maneira de auto-reflexão. Talvez descobrisse algo interessante em si mesma.

— Meu nome é Amélia Lemos. Tenho vinte e quatro anos. Curso Letras na estadual e pretendo trabalhar em uma editora. Tenho um gato chamado Gato, homenageando a minha atriz favorita. Ele é branco e preto. Todos os dias eu volto para casa em horários bem confusos, sempre se modificando, onde leio, onde estudo, onde alimento o Gato e, nos dias de luxo, assisto a uma maratona de filmes.

Parecia fraco. Nada daquilo renderia uma boa história.

— Cresci no interior, e quando enfim tinha idade e dinheiro para ter minha casa quarto e sala na capital, acabei em uma rua teoricamente perigosa e acabada. Mas gosto de lá. Na maior parte do tempo é sossegado.

Ainda parecia ruim. Ela precisava detalhar mais, procurar enfoques mais interessantes.

— Pego todos os dias o ônibus em horários aleatórios. Nunca sei o horário fixo deles no ponto. Sempre fico esperando embaixo do orelhão, e quando está ocupado, fico por perto até o lugar estar vago. O que mais está faltando?

Ela não sabia sobre o que abordar. Sua vida era desinteressante, não tinha o que tirar dali.

— Quando estou no ônibus fico observando a rua, e consigo perceber uma rotina... Parece até que fico repetindo os dias, já que as pessoas fazem as mesmas coisas incansavelmente. – nesse momento uma mulher entra no banheiro. Constrangida, Amélia para de falar sozinha, pega seu celular que havia deixado na pia, e finge estar se despedindo de alguém. Logo, começa a simular que está teclando, esperando a mulher ir embora. Quando finalmente está só novamente, volta-se para o espelho e continua seu monólogo. – Primeiro, passo por uma rua onde as pessoas raramente estão na calçada do lado esquerdo. Sempre contornam o parque de areia. Nunca soube o por que, mas há crianças brincando por lá todos os dias, e elas são evitadas pelos moradores locais. Em seguida, passo na frente de um centro médico. Acabei reconhecendo algumas pessoas de tanto passar por lá, e sei que uma senhora e seu filho estão por lá todos os dias. Ela o põe no colo e o cobre com um lençol, para não pegar sol. Aparentemente, é um albino.

Amélia parou para pensar a respeito. Nunca havia se questionado o motivo daquilo, mas o deduziu por lógica. Passou a achar essa situação interessante e, agora, ao invés de refletir frente ao espelho, passou a escrever tudo em seu caderno, detalhando cada situação. Continuou de onde parou após passar a limpo o que havia dito:

Depois do centro médico, o ônibus vira à direita e sobe uma ladeira. Nessa ladeira há um mendigo. Mas não é um mendigo qualquer, ele tem apenas o tronco, basicamente. Suas pernas eram como mãozinhas saindo da parte inferior de sua barriga, e os braços não passam de dedos. Ele parece ter quase trinta anos, e não há explicação para a sua mobilidade. Sempre estava com um chapéu ao lado, cheio de moedas. Quem o movia, o alimentava, o ajudava com suas necessidades? Era um ponto em que nunca havia parado pra pensar.

Ao chegar ao fim da ladeira, havia uma casa bem humilde. Era verde clara, desbotada, e na janela sempre tinha uma senhora muito ranzinza que ofendia a todos que passassem em frente a sua casa. Ficava ali o dia inteiro tagarelando em faíscas, atacando até mesmo que passava longe. Já chegou a incomodar pessoas dos ônibus. O ponto era bem na porta da casa da senhora, mas Amélia sempre esperava o próximo. Preferia saltar um pouco depois de sua casa a saltar ali, que além de ter muito assalto, recebia ofensas gratuitamente.

No ponto seguinte, quando descia, ela tinha que voltar um pouco a pé, e sempre que chegava à porta de seu apartamento, ela ouvia umas músicas diferentes ao lado dela. O cheiro de incenso invadia o corredor, e a música assemelhava-se àquelas irlandesas, clássicas, com flautas e sons da natureza. Às vezes vozes femininas cantavam junto.

E, enfim, estaria em casa. Entraria em seu mundo, fecharia suas cortinas e ali ficaria, assistindo Hitchcock, Tarantino, Kubrick, e todos os seus favoritos. Lacrava as suas portas e janelas, impedindo tanto a luz quanto as vozes entrarem ali. Nada, além do miado do Gato e a voz de Frank Sinatra ecoavam lá dentro. E estava assim, limitando-se ao se tratar de experiências, vivendo enfocada em seu futuro acadêmico e satisfação de uma cinéfila abusiva.

Mas dessa vez era diferente. Amélia precisava viver para evoluir, para concluir o semestre com suas notas mantidas à beira do máximo. Decidiu, então, que assim que saísse do banheiro feminino iria direto ao ponto de ônibus. Mas não pararia debaixo do orelhão para esperar o seu transporte como de costume. Ela iria andando pela mesma rota que seguiria se fosse outro dia qualquer. E assim o fez. A pé.

Começou a andar, seguindo debaixo do sol do meio dia pela sombra. Sentia entusiasmo por estar fazendo algo novo, mas captava atentamente cada detalhe da rua, como por exemplo: uma padaria onde a mulher do caixa trocava longos olhares com o rapaz que embalava as compras; uma vendedora de colchões que simplesmente encostava-se neles e ficava conversando nas redes sociais; um hippie vendendo seus produtos artesanais em frente aos colégios; e finalmente o primeiro ponto que ela listou: o parque de areia. Ao contrário de todos os outros, que passavam longe de lá, ela resolveu passar por dentro, e não demorou a perceber o que realmente acontecia naquela zona de guerra: as crianças ou eram muito perversas, ou eram muito criativas. Gritavam e atiravam montes de areia, água ou, na pior das hipóteses, cocô de cachorro nela e em qualquer outro que se arriscasse pelo meio. Amélia gritou e correu para longe do parquinho, onde as crianças riam vitoriosas, divertindo-se. Após sacudir-se e tirar toda a areia suja de sua roupa e cabelo, sorriu. Ela não imaginava que esse era o motivo pelo qual todos evitavam passar por ali. E, logo, seguiu andando, admitindo ter sido divertido.

Atravessou a rua e avistou o centro médico. A fila, como de costume, enorme. E lá estava ela: a senhora de sempre com a criança de sempre. Eram os únicos pacientes que ela notara se repetirem sempre. Aproximando-se, apenas confirmou as suas teorias. A mulher claramente era sua mãe, afinal o menino era ela esculpido em carrara. Os mesmos traços, mesmas características, apenas com uma diferença. A mãe era morena. Não muito, mas era um tom genético chamado de mulato médio, bem característico. O filho, entretanto, era pálido como nunca havia visto na vida, com olhos e cabelo claros também. De fato, não havia melanina naquele garoto. Era albino, e parecia fraco. Diminuiu o passo, e ao passar perto da porta do centro médico ela conseguiu identificar uma placa escrita: DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS. Ali também informava que havia um limite por paciente, que era gratuito, porém limitado, e então Amélia percebeu. Estavam ali todos os dias para manter o garoto vivo, porque em um país tropical é difícil manter alguém basicamente “alérgico ao sol” saudável. E passou pela sua cabeça tudo o que eles passam ali, todos os dias, incluindo os dias com chuva ou com uma mini-desertificação. Com o coração na mão, seguiu andando.

Virou à direita e, lutando contra o calor, subiu a ladeira. No meio da ladeira encontrou o clássico morador de rua. Nesse horário não havia sombra que o ajudasse, e nem mesmo alguma pessoa. Impressionantemente, mesmo sem seus membros, luxo, riqueza ou até mesmo um teto, ele sorria para todos que passavam ali. Quando foi a vez de Amélia, ela parou.

— Boa tarde, moça. Será que “cê” podia me ajudar? Só um trocado já seria bastante coisa pra mim, nem que sirva apenas para um lanche, um suco... – ele pediu com um tom de voz sincero. Amélia sorriu e depositou todas as suas moedas em seu chapéu. Não era muito, mas com certeza era algo. – Muito obrigado, moça. “Cê” fica com Deus. – ele sorriu ao ver seu chapéu um pouco mais recheado.

— Por nada. – Amélia olhou em volta e viu, em frente ao rapaz, uma delicatessen. Dirigiu-se até lá e comprou um sonho para comer no caminho. Enquanto estava na fila não conseguia tirar os olhos do mendigo, que repetia a ação para cada um que passasse ao seu lado, mas nem sempre conseguindo o que queria. O senhor do caixa, ao atendê-la, notou sua curiosidade.

— O coitado fica ali o dia inteiro. Nasceu desse jeito, com má formação do corpo, foi praticamente rejeitado pelo pai. A família o põe no chão todos os dias de manhã e só o buscam de noite. Dizem que como ele não pode trabalhar, esse é o ganha-pão que conseguiu, e que se é a única maneira de ajudar em casa, que seja. Vez ou outra desequilibra, bate a cabeça com força, e nós o ajudamos. Coitado... Precisava de melhores cuidados. Dois e oitenta.

Amélia pagou e seguiu andando, enquanto comia, com a testa franzida. Ao chegar ao topo da ladeira ouviu os primeiros comentários da voz angustiada da senhora da janela:

— Ei, piranha! Isso aí é sonho, é? Devora! Vai, devora tudo! Por isso que fica gorda desse jeito. – ela gritou da janela. Amélia, pela primeira vez, a via de perto. Os cabelos estavam muito bagunçados, ela vestia algum trapo, tinha poucos dentes ainda inteiros na boca, e aparentava ter um dos olhos cegos. Elas se encararam por um tempo. – O quê que “tá” olhando? Perdeu o que aqui? Olha que eu vou aí, viu? Eu te quebro! – ela inclinou-se para fora da janela. Algumas pessoas ali fora riam da cena, assistindo de longe. Amélia não fez mais do que observar parada. – E você aí está rindo, é? Achou engraçado? Deixa meu marido chegar da Grande Guerra que ele te mostra o que é engraçado! Ele vai pegar vocês!

Foi então que Amélia arregalou os olhos. A senhora aparentava ter Alzheimer. Não ficou ali um só minuto a mais, seguiu seu rumo. Aquela mulher, que sempre aparentou ser uma louca, alguém que gosta de brigar, de má índole, não passava de uma mulher lutando contra uma doença que talvez nem saiba que existe! Confunde o seu passado e o seu presente e perde a noção do certo e errado. E mais uma vez naquele dia, as aparências chocaram Amélia.

Ao chegar a seu prédio, Amélia parou na portaria. Ela havia listado as coisas curiosas de sua rua e a última era a sua vizinha misteriosa, que nunca é vista saindo de casa. Com quem mais ela conseguiria informações sobre o assunto senão o porteiro?

— Com licença. Eu moro no apartamento 202 e queria saber... Bom, o que sabe sobre o morador do 201? Eu a vi uma vez, quando se mudou para o prédio, no ano passado, mas desde então não vejo mais sair. – perguntou.

— A D. Glória. Acho que você é a única que não soube. Ela teve um surto psicótico, se não me engano, e toma remédio controlado. Perdeu a mãe antes de se mudar, e depois de alguns ataques ela é mantida em casa com uma enfermeira.

— Está falando sério? Isso explica a música e o cheiro!

— Sim, parece que é a única coisa que a acalma. Ela é exotérica. Vez ou outra desce durante a madrugada para ver a lua cheia, traz nas mãos umas pedras coloridas... Algo assim. É meio pirada. – o porteiro riu, voltando ao serviço. Amélia subiu para seu apartamento.

Agora, estranhamente, nem o cheiro nem o som a incomodavam mais. Ao entrar no apartamento nem mesmo o cheiro da caixa de areia cheia do Gato a incomodava. Ela largou as suas coisas e foi direto ao notebook, escrever a sua história. Está certo que o professor solicitou apenas uma lista de temas para se abordar em um conto, mas ela não podia evitar querer escrever sobre tudo o que presenciou naquele dia. Escreveu. Escreveu durante a noite toda, o fim de semana todo, e na segunda-feira, quando estava com mais material pronto do que em toda a sua vida, ela estava indo, a pé, para a faculdade.

Ao chegar ela assistiu a todas as aulas de maneira ansiosa, apressada para comentar sobre seu trabalho na aula de criação literária. Havia planejado um texto para justificar os tópicos tão variados que escolheu e conseguiu.

Quando enfim a sua aula chegou, ela sentou-se nas primeiras fileiras, uma das primeiras a chegar. Quando o professor pediu para apresentarem suas idéias para os colegas, ela esperou a sua vez, em ordem alfabética. O primeiro foi Álvaro, contando para a turma sobre o dia em que seu avô morreu. Disse que escreveria sobre seus sentimentos naquele dia. Em seguida, Alexandre. Ele disse que escreveria seu conto com base em um rapaz que conheceu em um bar. Um rapaz que mantinha muitos segredos e mistérios em volta da sua vida particular. Amanda, em sua vez, nos contou sobre as dúvidas da mulher no dia-a-dia, quanto às vestimentas e as pessoas em sua volta. Em todos os relatos o olhar do professor permanecia neutro. Amélia o compreendia. Não fora isso que foi solicitado. Ele queria uma nova obra, e não uma redação para vestibular. Rapidamente, ela modificou um pouco de seu pensamento, e quando chegou a sua vez, apresentou.

— Bom dia a todos. Tive dificuldade em saber que experiência poderia escolher para hoje. Quis fazer algo diferente da minha rotina, mas acabei repetindo o mesmo de todos os dias, porém de uma maneira diferente. Com outros olhos. Infeliz ou felizmente tenho mais capacidade escrevendo em terceira pessoa, e só seria uma experiência própria e minha se eu a tivesse nesse mesmo papel. Não aguentei esperar e já escrevi crônicas sobre tudo o que vou citar, que foram coisas observadas por mim na tarde de sexta-feira. São coisas cotidianas, muitos de vocês devem identificar de quem ou de onde me refiro, mas... Vamos prosseguir com a listagem, que é o que importa: letra a) o parque de areia com crianças terroristas, b) o sacrifício diário dos pais para com os filhos menos afortunados no quesito saúde, c) a exploração de deficientes físicos e, de qualquer maneira, a sua resistência, d) as impressões insanas passadas por uma vítima do Alzheimer, e) as justificações e adaptações da vida por uma pobre surtada, e f) o isolamento de uma aluna de letras vernáculas que não enxergava que havia um mundo além de Audrey Hepburn e Clark Gable. Obrigada.

Ao voltar para o seu lugar, tremendo após a falácia maior que a de seus colegas, Amélia olhou para o seu professor. Independente de ela ter explorado ou não o sugerido por ele, ela estava certa de que o sorriso no canto de seu lábio não a incriminava por isso, enquanto chamava por André, o próximo aluno.


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